Autor de peça inédita, em cartaz no Teatro Anchieta, fala sobre processo de criação de seu primeiro texto para teatro e da parceria com a diretora Daniela Thomas e a atriz e codiretora Bete Coelho.
Em entrevista ao Sesc Consolação, Caetano W. Galindo, autor da peça Ana Lívia, destrincha o processo de composição de seu primeiro texto para teatro. Galindo é professor universitário, escritor e tradutor de literatura e fala sobre as peculiaridades de escrever uma dramaturgia, especialmente uma obra metalinguística. Assista ao vídeo completo. O texto da conversa está disponível na íntegra logo abaixo.
Sesc Consolação: Caetano, esse é o seu primeiro texto para teatro. O que tem de diferente no processo de composição de uma obra dramatúrgica?
Caetano W. Galindo: O processo é uma viagem e é a melhor parte de todas. Você escreve, você acha que fez alguma coisa, mas na verdade o trabalho está começando ali. E daí que foi para os ensaios, foi para as leituras, foi para a direção, foi para a participação de um monte de gente e vai virando outras coisas. E essas outras coisas, pelo menos nesse projeto, são invariavelmente melhores.
Até, para mim, tradução, por exemplo, eu gosto da tradução pelo o que ela tem de coletivo, de não acabar em mim. Vai passar para o preparador, vai passar para o revisor, vai passar para o editor, e com o passar do tempo eu fui aprendendo a ficar cada vez mais feliz com isso: Com o quanto esse processo apaga os meus cacoetes, a minha assinatura e se transforma numa coisa muito maior do que a minha “voz” ou o que quer que fosse. E isso aqui foi colocar tudo isso ao cubo, né? Virou uma coisa que eu nem podia imaginar, o tamanho que isso podia ter.
Sesc Consolação: Poderia comentar sobre a afirmação da diretora Daniela Thomas de que “Ana Lívia é um teatro sobre teatro”?
Caetano W. Galindo: Essa peça foi se escrevendo de jeitos muito estranhos. Veja, eu não tenho grande trânsito no mundo do teatro, né? Eu tenho tido recentemente algum envolvimento com dramaturgia e tal. Mas não é uma coisa que eu possa dizer que tocou a minha vida toda. Mas enquanto eu ia escrevendo, eu fui percebendo que eu tinha muitos pontos de fascínio pela experiência teatral, pelo texto teatral, como leitor de teatro, especialmente, e pela coisa da cena. E a peça foi mudando e foi mudando inclusive quando eu ia vendo os ensaios, ia vendo a peça acontecendo, e isso foi crescendo, e foi crescendo essa ideia de que eu precisava falar sobre isso. Sobre essa coisa maluca de estar reunido numa espécie de culto de tempo em que algumas pessoas estão fingindo que são outra coisa e a gente tá participando daquilo. Isso foi me fascinando enquanto eu fazia e acabou virando um tema muito maior. E na mão da Daniela [Thomas] virou ainda uma proporção muito maior.
Sesc Consolação: O que mais te encanta no gênero teatro e como você buscou incorporar isso a sua obra?
Caetano W. Galindo: Eu tenho um fascínio muito grande e muito antigo por diálogo. E mesmo como tradutor, eu tenho a impressão que os meus momentos de segurança como tradutor são traduzindo livros que têm muito diálogo. E especialmente diálogo mais contemporâneo. Eu gosto de fazer, eu tenho muitas opiniões muito sólidas sobre o que às vezes as pessoas não entendem bem, de como funciona os diálogos, como as pessoas falam e como as pessoas trocam réplicas. Como elas se interrompem, o que elas dizem uma para a outra em cada momento, isso é uma coisa que sempre me fascinou demais. Eu escrever para teatro, para mim foi deixar solto esse lado que me agrada muito. Mesmo quando eu escrevi ficção, as coisas que eu escrevi frequentemente são só diálogos, são só pessoas conversando. Eu gosto da ideia da conversa. Eu gosto da ideia de representar pessoas conversando e do quanto é difícil transmitir informação através de diálogo, porque as pessoas desviam, elas mudam de ideia, elas se interrompem, elas vão para outro lugar. E essa dinâmica toda, o ruído do diálogo, me fascina demais. Então teve uma coisa que para mim foi muito chegar em casa, poder escrever para palco. E por outro lado, eu não tenho a mecânica de como é que isso ia funcionar. Saber se isso ia caber na boca das atrizes, na dinâmica do texto, mas eu sabia que eu tava de mão dada com esse nível de profissionais, né? Eu sabia que isso ia chegar a bom termo. Então, foi um processo muito bacana também de confiar que o resultado sairia superior ao que quer que eu fizesse, que eu precisava só alimentar essa fogueira e que esse pessoal ia fazer esse negócio brilhar.
Sesc Consolação: Como a linguagem joyciana e o uso do discurso indireto livre — para se alcançar o fluxo de consciência das personagens — foi trabalhado em Ana Lívia? Como fazer isso em cena?
Caetano W. Galindo: Acho que é o grande fascínio, né? É o grande barato. Como é que você lida com um meio em que tudo ao que você tem acesso é o que sai da boca das pessoas. E no entanto o grande interesse da literatura é o que está dentro da cabeça das pessoas. Como é que você lida com esse choque? O teatro vem fazendo isso das mais variadas maneiras. Desde que o teatro é teatro, né? Do coro das peças gregas aos monólogos dramáticos elizabetanos. Como é que você lida com expor conteúdo interno? E aqui a gente tem uma chance, que é: E se eu pegar duas pessoas que são como que facetas da cabeça de uma só pessoa? Eu tô como que dramatizando conteúdo interior, tô acessando o conteúdo interior. Esse barulho. O barulho que é um tema da peça. Desde o começo, esse barulho que elas ouvem, esse som do oceano, esse com que atrapalha a cabeça delas está presente o tempo todo. Então a gente está de certa forma dentro da cabeça de alguém.
Sesc Consolação: Quais as relações poéticas de Ana Lívia com o elemento água?
Caetano W. Galindo: A personagem principal do “Finnegans Wake” se chama Anna Livia e ela é, em muitos sentidos, um rio. Ela é o rio que corta a cidade de Dublin. Ela alterna entre ser uma versão feminilizada do rio ou ser um rio. É uma coisa muito louca. Eu já sabia que o rio estaria ali. Desde o começo da peça, entrou essa imagem do ruído do oceano como uma espécie de metáfora para o incômodo da cabeça de uma delas. E aí foi entrando, tem oceano, tem chuva, tem lago, tem rio. Isso foi virando uma espécie de tema que une a peça toda. Talvez a única coisa que una a peça toda sejam as imagens de água, sejam os corpos d’água, e daí a Daniela conseguiu transformar isso, para quem for ver, num elemento cênico, num super golpe de cena que de fato traz a água para o palco, né? Mas a princípio vem do Wake, vem dessa imagem do Wake, do rio que corta Dublin.
Sesc Consolação: Como o texto foi se transformando ao longo do processo de montagem?
Caetano W. Galindo: Eu entreguei uma versão dessa peça em março e eu, estúpido, pensei: “entreguei o texto”. Isso que está aqui agora, acho que é a versão doze ou treze depois daquela. Entre reescritas menores e reescritas totais. A peça diminuiu muito de tamanho, alterou de ordem, trocou personagem, inclusive trocou a psicologia de uma para a outra em vários momentos. A peça foi profundamente reescrita, alterada por percepções minhas quando eu vi alguma coisa, e muito por a Daniela dizer: “Olha, vamos olhar de novo para esse final. A Beth dizer: “Isso aqui está funcionando pior do que poderia”. E a gente foi reagindo a essas sugestões. E foi isso que me deixou especialmente satisfeito: o fato de que agora eu vejo um pedaço do ensaio e eu nem lembro. Fui eu que escrevi isso? Quando que eu escrevi isso? Tava na versão anterior e elas recuperaram para agora? Ou isso tinha caído, mas voltou? É super, super, super fascinante a ideia de que a assinatura do autor é bem menos presente do que em um poema, por exemplo.
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