“A paixão se regula na cor” – entrevista com Walter Firmo

09/08/2024

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Por que virei um colorista? Porque eu sou um apaixonado pela cor e a paixão se regula ou se desregula na intensidade, na força da paixão, na cor.

Nascido em 1937 no Rio de Janeiro, Walter Firmo ingressou no fotojornalismo em 1955, como aprendiz, no jornal Última Hora, e nunca mais parou de fotografar. Atualmente, com 86 anos, conversou com a Revista Mais 60 – Estudos sobre Envelhecimento sobre seus projetos profissionais e pessoais para o futuro, bem como sobre sua trajetória.

Trabalhou em diversos jornais e revistas, como Jornal do Brasil, revista Manchete, Veja Rio, Isto É, entre outros. Construiu uma carreira longeva que completa 72 anos, reconhecida por diversos prêmios. Um deles foi o Esso de Reportagem, em 1963, conquistado por “Cem Dias na Amazônia de Ninguém”, matéria publicada no Jornal do Brasil com fotos e texto seus. Sua carreira e seu olhar foram transformados por um episódio racista vivido em Nova York, mas que o fez ver com mais clareza o racismo em seu próprio país. Conheceu o bairro do Harlem, descobriu o jazz e decidiu ajudar, com sua fotografia, a formar uma consciência negra no Brasil. 

Chamado de “mestre da cor”, é autor de retratos marcantes de ícones da música brasileira como Pixinguinha, Dona Ivone Lara e Cartola. Outra vertente bastante conhecida de seu trabalho são as imagens de festas populares registradas por todo o Brasil, do Carnaval do Rio de Janeiro ao bumba meu boi do Maranhão. Desde 2018, o Instituto Moreira Salles (IMS) abriga, em regime de comodato, aproximadamente 145 mil fotos feitas por Firmo ao longo de várias décadas. 

Maestro Pixinguinha (Alfredo da Rocha Vianna Filho) no quintal de casa, Rio de Janeiro, RJ, 1967. Foto: Walter Firmo.

Mais 60 – Como foi o começo da sua carreira? 

  • Walter Naquele tempo não tinha faculdade de jornalismo. Então você ficava seis meses em uma redação, e o chefe, vendo a sua vivência profissional, se você era categórico ou não, ele te cortava ou jogava água na sua plantinha. E dizia: “OK, esse vai trabalhar com a gente”. E aí eu sou jornalista na minha carteira de trabalho, porque o meu viés é por meio da fotografia. É um condicionamento do jornalismo, como fotógrafo. Então eu fui repórter fotográfico, jornalista. 

Mais 60 – De que modo o senhor desenvolveu seu olhar fotográfico? 

  • Walter Eu via com 15, 16 anos, quando comecei, que no fotojornalismo faltava uma essencialidade em relação à amorosidade. Eu via o jornalismo não só como uma fábrica de tragédias. A vida era um inferno no fotojornalismo. O avião pegando fogo, o sujeito saltando do edifício em chamas, o outro correndo com um objeto perfurante atrás da sua vítima e por aí. Era só tragédia, era só fato, e eu queria alguma coisa de enternecimento, alguma coisa que dosasse, que mostrasse que a vida vale a pena ser vivida através do enfrentamento. E foi assim que me tornei fotógrafo, fotojornalista, tentando mudar essa maneira de ser, trazendo para os jornais uma espiritualidade na maneira de olhar, na maneira de sentir. 

Mais 60 – Um dos grandes preconceitos contra a pessoa que envelhece é achar que ela não tem futuro e, portanto, não tem planos para o futuro. Quais são seus projetos para o futuro? 

  • Walter Bom, além do reconhecimento, não jogue flores sobre o caixão, mas bata palmas, aplauda quem durante sua vida viveu com dignidade, respeitando o outro e fez da sua atividade profissional um buquê de rosas. Eu me qualifico dessa maneira, mas concluindo sua pergunta, eu tenho planos com 86 anos de idade. Eu quero escrever um livro sobre o que senti, sobre o que vivi nesses anos. Tenho 72 anos de carreira de jornalista. Eu tenho muita história para contar sobre mim e as pessoas com quem convivi, não só na questão da esfera política e das artes em geral. 

Mais 60 – Como é possível, na sua opinião, ter uma trajetória de 71 anos ininterruptos dentro de uma área como o fotojornalismo? 

  • Walter Você tem que sonhar, você tem que ter um entendimento de vida que vale a pena, a gente, através de um querer, de um objetivo, tenta fazer sempre mais e mais, você veio para viver não para dormir, mas para viver a essencialidade da vida em todo seu esplendor. Eu quero ainda mudar minha maneira de glorificar a fotografia depois de trabalhar com tantas pessoas, com tanta gente. Quero trabalhar mais, agora, com outra questão, outro organismo, que é a natureza. Se a sorte me favorecer e eu viver mais uns cinco anos, mudar meu modo de fotografar e ver o mundo, trabalhar com árvores, com troncos, com coisas que o mar devolve e ficam soberanas na praia, e tolhidos sem nenhuma envolvência com o movimento. Então, isso é um outro viés de ver a fotografia como arte. Eu estou tentando ver isso em versão preto & branco. Essa é uma das intenções. Vamos ver se de repente isso confabula com meu desejo e me faça viver mais. É aquilo que, respondendo ainda sua pergunta, entrando nesse túnel do tempo de querer fazer com que eu possa ser mais longevo. 

Mais 60 – O senhor sentiu o racismo quando foi trabalhar em Nova York no escritório de uma revista brasileira. Poderia nos contar o que aconteceu e como esse fato mudou seu olhar? 

  • Walter Bom, eu trabalhava para a Bloch Editora, na revista Manchete, lá em 1968. Eu trabalhei nessa editora de 1966 a 1971. Virei, assim, um caixeiro viajante, o sujeito que conhecia o Brasil através da sua profissão. E convivi com muitos artistas ligados à musicalidade, Cartola, Pixinguinha, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus e tantos outros. O Instituto Moreira Salles comprou minhas fotografias e fez uma identificação do meu trabalho através de uma exposição fantástica de 264 fotos que está rodando aí pelo Brasil. Já esteve em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Brasília, agora está em Salvador e, em 29 de junho, vai estrear em Poços de Caldas, onde começou o clã do Walter Moreira Salles. Mas [o que] você tinha me perguntado? 

Quero trabalhar mais, agora, com outra questão, outro organismo, que é a natureza. Se a sorte me favorecer e eu viver mais uns cinco anos, mudar meu modo de fotografar e ver o mundo, trabalhar com árvores, com troncos, com coisas que o mar devolve e ficam soberanas na praia, e tolhidos sem nenhuma envolvência com o movimento. 

Mais 60 – Sobre um episódio de racismo que aconteceu em sua carreira. 

  • Walter Minha mãe tinha o referencial, de Portugal, pele clara, meu pai tinha a pele escura por conta da miscigenação da pele indígena e da negritude e, dentro desse híbrido, eles se conheceram no Rio de Janeiro e fizeram essa coisinha fofa, que sempre contente viveu. Minha mãe me falou que quando ela me esperava, a vizinhança deixou de falar com ela porque ela esperava um filho de um homem negro. Qual a razão de qualificar uma pessoa pela cor da pele? E isso ficou na minha cabeça. Depois, eu nunca me senti vilipendiado dentro do meu país. Um pouco de inocência, né? Eu só fui perceber em Nova York, quando trabalhava na redação da revista Manchete. O diretor de lá, falou: “Walter, tem uma mensagem de uns colegas seus lá do Rio que não estão muito satisfeitos com sua vinda aqui”. Eu fui ver o fax, era a época do fax, tinha lá uma frase que foi mais um capítulo dentro dessa coisa de agonia em relação às pessoas e da cor da sua pele. O texto era mais ou menos assim: “Como vocês contrataram um fotógrafo tão ruim, analfabeto e negro?”. Eu levei um tapa na cara, porque não esperava isso de um colega meu. Fiquei lá mais um ano, depois voltei para o Rio, deixei meu cabelo crescer, politizei a minha fotografia de forma que dignificasse o negro, contextualizando-o numa condição quase impossível na época. As pessoas negras que fizeram este país no ombro, no calor, nas lágrimas, na dor, entende? E sendo vilipendiadas dessa forma. Então, eu comecei a traduzi-las numa forma encantada. Meus totens, pessoas amorosas, chefes de família, enfim, pessoas como todas as outras. Eles são o encantamento dentro de minha filosofia visual, porque eu sou um deles, olha aqui: pixaim, nariz chato, dizem que boca de negro carnuda é boa pra beijar, então…

Eu ando preferindo o silêncio cada vez mais, racionalizar tudo que eu fiz, é como se eu pusesse um farol alto não na frente do meu carro, mas lá atrás ((risos)), como se visualizasse meu passado. E para que isso aconteça eu preciso estar sozinho. Eu gosto muito de estar sozinho. Perdi um pouco do entusiasmo que eu tinha com as pessoas, de ser mais uma delas. Minha vida é simples. 

Mais 60 – Voltando um pouco para a questão do envelhecimento, o senhor consegue enxergar de que maneira a passagem do tempo o transformou? Se mudou, o que mudou? 

  • Walter Muito mais de um ano para cá, eu vejo um sobrepeso que eu não tinha. A questão física de andar na rua por exemplo, eu já tenho que ter alguns cuidados. Eu andava todo dia uns 40 minutos. Em razão da covid, eu deixei. Perdi o entusiasmo, e quando era para andar eu já não me sentia à vontade. Não é difícil eu andar, mas sinto a minha dorsal, tenho um sobrepeso ventral, minha barriga ficou bem proeminente, embora eu tente através de dieta escolher os alimentos, mas com a idade, quem tem já oitenta e poucos anos, é difícil retroceder, mas de qualquer forma eu tento. Eu sinto, por exemplo, quando tenho que subir uma escada, pego no corrimão para evitar quedas, quando eu desço também. 

Mais 60 – Tem alguma coisa que melhorou do seu ponto de vista? 

  • Walter Sim, eu ando preferindo o silêncio cada vez mais, racionalizar tudo que eu fiz, é como se eu pusesse um farol alto não na frente do meu carro, mas lá atrás ((risos)), como se visualizasse meu passado. E para que isso aconteça eu preciso estar sozinho. Eu gosto muito de estar sozinho. Perdi um pouco do entusiasmo que eu tinha com as pessoas, de ser mais uma delas. Minha vida é simples. Minha comida é simples, meu arroz com feijão, uma saladinha, carne, mas antes, uma branquinha mineira cheirosa, transparente. Que mais? 

Mais 60 – Outro preconceito contra quem envelhece é que a vida afetiva termina. O senhor poderia nos contar como conheceu sua atual companheira? 

  • Walter Eu sou muito chorão. Eu trabalho com a emoção. Aconteceu. Há 16 anos conheci essa criatura, [mas] estamos longe. Fui fazer uma matéria, com mais de cem fotógrafos, de visualizar o país por meio dos estados e ela trabalha no Sesc, na cidade do Parnaíba, no pouco litoral do Piauí. Muito bem, eu escolhi o Pantanal, mas já tinha outro fotógrafo, e eu, “poxa, mas eu queria fazer um pouco de paisagem, mas vou ficar com a paisagem humana” e me lembrei de uma frase da revista Cruzeiro, que indagava: “O Piauí existe”? E eu com todas as andanças pelo Brasil já tinha passado pelo Piauí, sabia que existia, foi como jogar “onde você vai passar suas férias?” Tá… caiu no Piauí e eu fui para lá. E lá conheci, nessa cidade, essa moça. Eu tinha 70 anos de idade e ela tinha 39. Ela se aposenta agora no segundo trimestre. Possivelmente, quase certo, nós ficaremos juntos, três meses lá e ela três meses aqui. Mas então eu conheci essa moça. Sabe aquele filme francês onde a heroína se vestia toda de rosa, ela usava um sapato alto, e eu pensei que ali estava a minha fada e queria namorar essa moça. E aconteceu. E estamos até hoje. Eu gosto de escrever, tenho um prêmio nacional que não é de foto, é de texto, Cem Dias de Amazônia, de 1963. Isso me faz um pouco trabalhar com as palavras, escolher as palavras, é de nós, embora eu seja um fotógrafo. 

Mais 60 – O senhor se lembra das pessoas idosas da sua infância? Qual a importância delas pra você? 

  • Walter A minha avó Tereza, que me criou até os cinco anos. O casal preto e branco do subúrbio do Rio queria viver abraçado e não queria testemunha e a minha mãe me colocou para ser criado com a mãe dela, minha vó Tereza, querida. A melhor parte do frango era para mim. Ovos nevados eram para mim. Mas isso me encurralou nos meus primeiros cinco anos e eu não ia brincar com as outras crianças. Talvez eu tenha sido feito poeta nessa época também, através dessa prisão, porque eu via a vida confinada de dentro para fora. Via como prisioneiro a vida lá fora, onde acontecia, e eu não podia brincar. 

Mais 60 – E Walter, dessas pessoas idosas que você fotografou, tem alguma foto que te marcou? 

  • Walter Pixinguinha. Essa foto virou um ícone na minha vida. Todo mundo quando vê essa foto reverencia sua imagem. Uma vez eu perguntei a uma senhora em uma exposição: “Mas por que vocês adoram essa foto?”. Daí uma das senhoras falou para mim: “Ah, porque ali existe a felicidade”. 

Eu vou em alto e bom som dizer. Entre a classe social que representa os idosos, nós estamos no abandono do poder público. Abandono no sentido literal da palavra. E já, já, o Brasil será um país de envelhecimento. Eu nunca pensei nisso, mas alguma coisa terá que ser feita.

Mais 60 – Através de seu olhar tão apurado para a questão social no Brasil, como o senhor analisa o que é envelhecer hoje em nosso país, pelo que se observa nas ruas? 

  • Walter Eu vou em alto e bom som dizer. Entre a classe social que representa os idosos, nós estamos no abandono do poder público. Abandono no sentido literal da palavra. E já, já, o Brasil será um país de envelhecimento. Eu nunca pensei nisso, mas alguma coisa terá que ser feita. Eu não, mas sei que tem uma ordem de idosos como eu que não tem o que comer, que não tem onde morar, vive ao léu, ao abandono, dentro da sua família, que também não pode fazer nada por ele. Eu acho que devia ter procedimento correto de quem faz e de quem manda nesse país de melhorar a vida deles. 

Mais 60 – As pessoas falam que o senhor é o mestre da cor na fotografia. Conte um pouco para a gente sobre isso. Você trabalha conscientemente com a cor? 

  • Walter Eu comecei no preto & branco como legítima defesa, naquela época de aprender fotografia não tinha cor com toda essa euforia. Só depois, com minha personalidade, percebi, uns cinco anos, uns dez anos depois, através de um americano chamado David Drew Zingg1, ele está sepultado aí em São Paulo, ele se apaixonou pela luz solar tropical e vi nas fotos dele uma força invulgar em relação à vida, à constituição filosofal do poder de ver a natureza que eu não via em outras populações do país que não viam o sol. Tanto quanto a linguagem preta & branca, são poderosas nas questões ambientais. Por que virei um colorista? Porque eu sou um apaixonado pela cor e a paixão se regula ou se desregula na intensidade, na força da paixão, na cor. E a cor tem um semblante para mim. É um tal de respostas dessas atitudes, onde não se pensa muito, mas se sente. Já no preto & branco, que gosto de fazer também, eu procuro vestir outras roupagens. 

Mais 60 – O senhor tem alguma mensagem que gostaria de passar para as outras gerações? As que estão vindo depois da sua? 

  • Walter Eu tenho uma mensagem que é minha, não sei se eles vão adquirir esse contexto, porque tudo depende da maneira de ser de cada um, né. Por exemplo, da maneira que sou, tranquilo, eu sublimo, procuro sublimar tudo, uma façanha existencial, por que nós viemos, o que nós viemos fazer aqui? Eu acho que tentar um entendimento com o outro, construindo paz, exaltando uma filosofia para o bem-estar é a principal função de um existir. Penso sempre que a felicidade reside no entendimento, numa fração em que os poderes são equânimes, onde a balança não pende para nenhum dos lados, mas sim por uma razão filosofal, onde o sol nasce para todos, o beber de uma água também, e isso nos alimenta de uma forma universal. Eu nunca tive esses poderes e quereres, só quero ser, só, e viver na minha plenitude de entendimento com os outros. Mas sem nenhuma filosofia, acho que [isso] é estar com Deus. E é uma maneira de se contemplar, de nos contemplar no outro. 

O Trabalho Social com Pessoas Idosas do Sesc busca promover a sociabilização e o pensamento sobre a longevidade, com o intuito de contribuir para o bem-estar, estimulando a autonomia e o fortalecimento do protagonismo das pessoas idosas. Saiba mais sobre o TSPI – Trabalho Social com Pessoas Idosas aqui.

A Revista Mais 60 (inicialmente chamada A Terceira Idade: Estudos sobre Envelhecimento) é uma publicação multidisciplinar, editada desde 1988 pelo Sesc São Paulo, de periodicidade quadrimestral, e dirigida aos profissionais que atuam na área do envelhecimento. Tem como objetivo estimular a reflexão e a produção intelectual no campo da Gerontologia; seu propósito é publicar artigos técnicos e científicos nessa área, abordando os diversos aspectos da velhice (físico, psíquico, social, cultural, econômico etc.) e do processo de envelhecimento. Saiba mais sobre a Revista Mais 60 aqui.

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