Envelhecimento, Família e Cuidados: o que nos revelam os dados da pesquisa Perseu Abramo/Sesc-SP sobre a Capacidade de Cuidar 

09/08/2024

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Solange Maria Teixeira
Docente da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Assistente social e doutora em políticas públicas, com estudos sobre envelhecimento e políticas sociais para pessoas idosas. solangeufpi@gmail.com 

1 Uma versão ampliada deste artigo, compõe a obra Velhices: perspectivas e cenário atual na Pesquisa Idosos no Brasil. São Paulo: edições Sesc: FPA, p. 46-63, 2023.

Resumo 

O objetivo deste artigo é problematizar o lugar-comum posto pelas estruturas de gênero de que o cuidado de idosos(as) é atribuição exclusiva das mulheres das famílias e apontar que o reforço do familismo pelas políticas sociais deve ser superado, considerando que o cuidado é um direito social. É preciso levar em conta as mudanças na composição das famílias, o crescimento dos grupos de idosos(as) de mais idade e as dificuldades de cuidado pela família. Trata-se de um estudo teórico de base bibliográfica e com dados secundários da pesquisa realizada em 2020, pela Perseu Abramo em parceria com o Sesc São Paulo. Conclui-se que os(as) idosos(as) entrevistados(as) contam, a cada levantamento de dados, com menos apoio, ajuda e cuidados dos familiares, além de ocorrer um crescimento de pessoas idosas que moram sozinhos sem redes informais de apoio, o que remete para o reforço da necessidade de políticas públicas de cuidados. 

Introdução 

A gerontologia internacional é uma das responsáveis pela difusão da ideia de que o melhor lugar para envelhecer é em família ao propagar o pacto intergeracional como saída para o atendimento das necessidades das pessoas idosas, da assistência e dos cuidados das políticas públicas em domicílio e em parceria com as famílias, como forma de evitar a institucionalização e garantir uma qualidade de vida na velhice. 

Esses ideais quase sempre mascararam que a família é contraditória e ambígua; que uma parte considerável de pessoas idosas não tem suporte familiar próximo para contar; que as famílias estão em processo acelerado de mudanças e que a luta por sobrevivência domina seu tempo de existência; e que as políticas sociais têm traços familistas que sobrecarregam as mulheres e as famílias, principalmente na periferia do sistema capitalista. 

Essas constatações nos levam a problematizar: quais mudanças podem ser observadas na família contemporânea, especialmente nas famílias de ou com idosos(as)? Qual o lugar das relações familiares nas fontes de apoio para os(as) idosos(as) brasileiros(as)? O que o estado civil, a quantidade de membros familiares no domicílio, as pessoas mais próximas, o acolhimento familiar e as ajudas recebidas nos dizem sobre a capacidade de suporte das famílias às pessoas idosas? 

Para responder a essas problematizações, o texto utilizou os dados da pesquisa Idosos no Brasil II: Vivências, Desafios e Expectativas na Terceira Idade, realizada em parceria entre o Serviço Social do Comércio de São Paulo (Sesc/SP) e a Fundação Perseu Abramo, em 2020, e que se fundamentou numa revisão da literatura sobre envelhecimento, velhice e família. Nessa perspectiva, o objetivo do capítulo é analisar, a partir dos dados empíricos da referida pesquisa, as mudanças na família, especialmente a de idosos(as) e com idosos(as), e o lugar das relações familiares no envelhecimento e na velhice dos brasileiros. 

Envelhecimento Humano e Diferentes Velhices: Processo Biopsicossocial Marcado por Heterogeneidades e Homogeneidades 

Como destaca Beauvoir (1990, p. 17), “a velhice não é um fato estático; é o resultado e o prolongamento de um processo”. Enquanto etapa da vida, parte do ciclo vital, ela é o período que condensa, expressa e torna visíveis os efeitos de um processo mais longo, que atravessa a existência humana, que é o envelhecimento.

O envelhecimento é um processo biopsicossocial dinâmico, gradativo, acumulativo, histórico-social. É da “natureza” social dos homens e não meramente um fenômeno natural, como se características biológicas não fossem afetadas pelas condições psicossociais, macrossociais e culturais de cada época histórica e tipo de sociedade. Basta ver que os cortes etários que definem os diferentes momentos do ciclo de vida são construções sociais e que esse ciclo é vivido de formas diferenciadas pelos indivíduos. 

Todavia, a forma como a gerontologia social se desenvolveu enquanto campo científico hegemônico tem aproximações com a geriatria, com os referenciais positivistas e biomédicos, o que, na maioria das vezes, isolou os elementos do fenômeno do envelhecimento e hipervalorizou as dimensões biológica e fisiológica do processo, naturalizando um fenômeno determinado socialmente. 

Porém, entre essas mediações determinantes do processo do envelhecimento (biológico, psicológico e social) há interdependências, imbricamentos, circularidade e dialética que o torna um fenômeno sui generis, formando uma totalidade que não é resultado da junção ou soma das partes. Logo, “não basta, portanto, descrever de maneira analítica os diversos aspectos da velhice: cada um deles reage sobre os outros e é afetado por eles; é no movimento indefinido desta circularidade que é preciso apreendê-la” (BEAUVOIR, 1990, p. 16). 

O homem não vive em estado natural, mas ao contrário, é sempre um ser social, que constrói suas condições de existência e reprodução social. Envelhecer, nessas circunstâncias, implica considerar não apenas como contexto ou pano de fundo a realidade social em que se vive, constrói e reproduz, portanto, em que se envelhece. A influência dos fatores socioeconômicos e socioculturais indica os limites da gerontologia tradicional, quando ela define biologicamente a senescência individual, pois, como destaca Beauvoir (1990, p. 47), “a involução senil de um homem produz-se sempre no seio de uma sociedade; ela depende estreitamente da natureza dessa sociedade e do lugar que nele ocupa o indivíduo em questão”. 

Concordamos com a autora quando nos diz que “se a velhice, enquanto destino biológico, é uma realidade que transcende a história, não é menos verdade que este destino é vivido de maneira variável segundo o contexto social (…)” (BEAUVOIR, 1990, p. 16). Essas vivências variadas ocorrem entre diferentes sociedades e também dentro de uma mesma sociedade. 

Segundo Haddad (2017), a produção do conhecimento sobre o envelhecimento e a velhice na perspectiva positivista é também ideológica ao propagar uma visão de mundo que mascara a realidade concreta. Ao popularizarem uma visão generalizante que mascara a velhice trágica da classe trabalhadora, apagam e invisibilizam os efeitos deletérios do envelhecimento de quem só possui sua força de trabalho. É comum, segundo a autora, “a velhice ser considerada independente das condições materiais de existência dos seus protagonistas, possuindo, portanto, suas representações, o caráter de pseudoconcreticidade (…)” (HADDAD, 2017, p. 85). 

A vida em sociedade e na sociedade capitalista é estruturada por relações sociais que têm peso de relações de produção pela sua capacidade de determinação das formas de existência – classe, gênero e raça/ etnia – que não apenas são demarcadoras de diferenças sociais, mas se transformam em reprodução de desigualdades, de hierarquias e assimetrias de poder, em que se soma a exploração com as diferentes formas de opressão, gerando imbricações em que é maior a incidência de desigualdades sociais, o que Safiotti (2004) denomina de nós simbióticos. 

Beauvoir (1990) já destacava uma das mediações fundamentais, o lugar dos indivíduos nas estruturas produtivas que criam as classes sociais: “Tanto ao longo da história como hoje em dia, a luta de classes determina a maneira pela qual um homem é surpreendido pela velhice; um abismo separa o velho escravo e o velho eupátrida, um antigo operário que vive de pensão miserável e um Onassis” (p. 16). A maneira como os homens envelhecem tem a marca de classe, o que interdita visões homogeneizantes, generalistas, ainda que ancoradas na biologia. 

Teixeira (2021) aponta que a vivência de classe também é diferenciada no interior de cada classe fundamental e antagônica, composta de frações de classes. Neste artigo, a autora analisa as diferenças dentro da classe trabalhadora, apontando maiores desigualdades no envelhecimento dos trabalhadores que compõem o excedente de força de trabalho, que vivem da informalidade, dos bicos, na pobreza relativa ou absoluta que incide de formas variadas no envelhecimento intraclasse. Mas, a autora destaca ainda que as classes têm sexo, sexualidade, cor da pele e origem étnica, decorrentes das inserções socioculturais das pessoas. 

Nas sociedades capitalistas, o envelhecimento e a velhice não podem estar dissociados das estruturas socioculturais e socioeconômicas que geram diferenças nas formas de envelhecer. Mas essas heterogeneidades nas formas de envelhecer devem superar o singularismo, a pseudoconcreticidade, como se cada forma de envelhecer e de velhice fossem únicas, ancoradas em trajetórias de vida, comportamentos e hábitos, comuns nas visões gerontológicas comportamentalistas. Assim, os demarcadores estruturais também promovem homogeneidades, porque há relações do envelhecimento singular e individual com a totalidade dos modos de envelhecer e a totalidade social da formação daquela sociedade. 

As estruturas geradoras de opressões, de subalternidades são o capitalismo, o patriarcado moderno e o racismo estrutural. Nessa perspectiva, os estudos interseccionais, ou parte considerável deles, são importantes para desvendar a aparência singular do fenômeno envelhecimento nas sociedades burguesas. 

Essa perspectiva interseccional é compreendida por Crenshaw (2002, p. 180) como interseccionalidade que se refere a “uma conceituação problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação de dois ou mais eixos de subordinação”. Essas intersecções, mais do que se somarem, se atravessam, formando os nós. 

A divisão sexual do trabalho, o patriarcado, a dualidade entre o público e o privado produzem o gênero. Mas ele também é vivido de forma variada entre as mulheres, tanto por sua posição de classe, como também pela raça e etnia. Assim, não se pode falar de mulheres no sentido abstrato, mas de mulheres reais, como “mulheres trabalhadoras”, “mulheres negras”, “mulheres imigrantes”, “mulheres velhas, negras e trabalhadoras ou donas de casa” – diferenças que desnudam e põem em xeque os privilégios e as hierarquias. 

Concordamos com Biroli (2018, p. 14, grifos da autora) quando afirma: “ela [divisão sexual do trabalho] é determinante da posição desigual de mulheres e homens, mas seu efeito só poderá ser compreendido se levarmos em conta que ela produz o gênero – no entanto, o produz de modos diferenciados, em conjunto com outras variáveis (…)”, ou seja, com outras mediações determinantes, como classe e raça. 

Para Biroli e Miguel (2018, p. 41), “a convergência entre essas variáveis estabelece uma pirâmide na qual a base é formada por mulheres negras, com o posicionamento em sequência de homens negros, mulheres brancas e, por fim, no topo, homens brancos”. Com base nessa premissa, Teixeira (2022) afirma que renda, escolaridade, postos de trabalho, condição de saúde, mas também a inserção nos espaços, o respeito, os contatos são diferenciados por essa pirâmide. As classes, o gênero e a raça/etnia não incidem da mesma forma sobre todos os indivíduos sociais. 

A divisão sexual do trabalho se imbrica com a divisão racial do trabalho, como denuncia Gonzalez (2020, p. 34), decorrente do racismo enquanto construção ideológica e conjunto de práticas, que “denota sua eficácia estrutural na medida em que estabelece uma divisão racial do trabalho e é compartilhado por todas as formações socioeconômicas capitalistas e multirraciais contemporâneas (…)”, promovendo subalternizações e opressões cruzadas, difundindo formas de vidas estigmatizadas e utilizadas pelo capitalismo para superexploração ou para excluir pessoas ao acesso a bens e serviços produzidos socialmente. Essas condições objetivas e subjetivas de vida incidirão no processo do envelhecimento, interagindo e se imbricando com os determinantes biológicos e psicológicos. 

As velhices são diferenciadas, inclusive se elas são vividas com boa saúde ou não, em contexto familiar ou não, com apoios formais das políticas públicas e/ou informais da família, vizinhança e amigos, sendo essas variáveis condicionadas pelas diferenças de classe, gênero e raça/etnia.

Família e Relações Familiares: Ambiguidades e Contradições 

Adentrar no universo da família implica superar as visões do senso comum e de parte da ciência, que a naturaliza, e desvendar ou trazer à tona sua “natureza” social. Como destaca Bruschini (1993, p. 50), “o primeiro passo para estudar a família deve ser o de dissolver sua aparência de naturalidade, percebendo-a como criação humana mutável”. 

Para Teixeira (2016, p. 30), “a família não é uma instituição natural, mas social e histórica, podendo assumir configurações diversificadas em sociedades ou no interior de uma mesma sociedade, conforme as classes e grupos sociais heterogêneos”. Como os estudos de Engels (2002) demonstraram, o matriarcado e o patriarcado deram origem a diferentes tipos de família, cuja mediação fundamental foi a propriedade privada. A família moderna passou por novas mudanças com a sociedade burguesa, que comportou modelos tomados como ideais, determinados pelas novas relações sociais, e outros decorrentes das diferenças de classe, gênero e raça. Essas outras formas de vida familiar foram por muito tempo invisibilizadas, consideradas desestruturadas e estigmatizadas. 

Segundo a definição de Biroli (2018, p. 91), “família toma forma em instituições, normas, valores e práticas cotidianas. Sua realidade não é da ordem do espontâneo, mas, sim, dos processos sociais, da interação entre o institucional, simbólico e o material”. E essa interação nos diferentes estágios do capitalismo a transforma em um espaço de ambiguidades e de contradições, porque instituições como a família, por exemplo, geram, mantêm e reproduzem a ordem ao difundir valores, ideologias, normas e modos de vidas atravessado pelas hierarquias e assimetrias, especialmente as de gênero. 

Mas a família é espaço de movimento, de práticas que também criam resistências, instituem o diferente da norma, fazendo-a conviver com as diferenças, torna-se reduto contra o mundo externo, gera sentimento de pertencimento, convivência grupal. Logo, uma instituição social contraditória e ambivalente. De um lado, como destaca Biroli (2018, p. 91), “o universo das relações familiares é feito de afetos, cuidado e apoio (…)”, de outro lado, “de exploração do trabalho, do exercício da autoridade e da violência”. 

Isso porque as desigualdades de gênero são reproduzidas pelas famílias, que não atuam desconectadas da realidade social e cultural de determinada época histórica e social, como já destacado anteriormente, apesar de não serem apenas espaço de conformismo. Elas são analisadas em conexão também com o Estado, as políticas públicas e as leis que atuam normativamente, produzindo as desigualdades ou minimizando-as. 

Os ideais normativos dos papéis sexistas, da maternidade, de cuidadoras e administradoras do lar sensíveis e frágeis serviram historicamente para controlar e domesticar, manter as mulheres no mundo privado e explorar seu trabalho gratuito na reprodução social. Mas, como destaca Biroli (2018, p. 100), “não existe posição nem vivência comum entre todas as mulheres”. As mulheres negras não vivenciam a proteção e o tratamento especial nos ideais de domesticidade e nos estereótipos da fragilidade, como mostram os estudos sobre escravidão no Brasil, e a composição da população negra livre, como classe trabalhadora, da realidade de trabalhos fora de casa e no lar dessas mulheres negras e de periferia para garantir a sobrevivência do grupo familiar. 

O trabalho doméstico e de cuidados familiares, na reprodução social, ainda é definido como atribuição de mulheres na família, ainda que elas também trabalhem fora de casa, sobrecarregando-as e restringindo sua participação em outras esferas da vida, enquanto libera os homens dessas responsabilidades, podendo se dedicar integralmente ao trabalho remunerado e pago. Isso, segundo Biroli (2018), se transforma em fator de vulnerabilidade para as mulheres, gerando empobrecimento, dependência econômica dos companheiros, levando a não denunciarem maus tratos e violências sofridos pelos seus filhos, dentre outros. 

Evidentemente que a família é espaço de pertencimento, logo, de inclusão social, de apoios, autoajudas, afetos, solidariedade. Quando o indivíduo é excluído das relações de trabalho e ainda tem a família, ele pode ter uma âncora, uma fonte de apoio, quando ele não tem mais laços de família, a exclusão é ainda maior, ele fica em situação de risco social. Mas visões idílicas e romantizadas das famílias podem ocultar formas de dominação e opressão, como a violência e o autoritarismo machista sobre os mais vulneráveis, geralmente mulheres, crianças e pessoas idosas.

Porém, as famílias estão em constante processo de mudanças, gradativamente incorporadas pelas leis e políticas públicas. No Brasil, essas mudanças apontam para a diminuição das famílias do tipo nuclear tradicional – do casal heterossexual com filhos – que ainda é predominante, mas convive com outros tipos de organizações familiares. Por exemplo, o Censo de 2010 já apontava o crescimento das famílias monoparentais (em 2000, 13,1%; e, em 2010, 14%), domicílios unipessoais (em 2000, com 9,2%, atingindo, em 2010, 12,1%), casais sem filhos (em 2000 com 13%; em 2010, 17,7%) e famílias recombinadas (2010 com 16,3%) (IBGE/CENSO, 2012). 

Dados do Observatório Nacional da Família, do Governo Federal, apontam também mudanças no tamanho dos grupos familiares. Em 2018, o tamanho médio das famílias chegou a 3 membros; em 2008, eram 3,3; em 2002, 3,62. Isso expressa as alterações nas taxas de fecundidade. Conforme dados do Observatório Nacional da Família, a taxa de fecundidade no Brasil decaiu de 6,28 para 1,87 em 50 anos (1960 a 2010) e deve chegar ao patamar de 1,5 em 2030. Essas médias escondem as diferenças. Segundo Biroli (2018), de 2003 a 2013, os 20% mais pobres da população ainda mantinham taxas elevadas de fecundidade, porém também em queda, pois a mudança foi de 2,73 para 2,01. 

A inserção da mulher no mercado de trabalho, o aumento da sua escolaridade e os casamentos mais tardios são apontados como determinantes das mudanças. Mulheres com mais de oito anos de estudo têm, em média, metade do número de filhos das que têm até três anos de estudo, segundo Observatório Nacional da Família. 

Em relação à predominância do tipo de família, na fase do ciclo da vida em que é composta de idosos(as), muitos trabalhos acadêmicos reforçaram a tese dos “ninhos vazios” – termo utilizado para referir-se à família de idosos que vivem sozinhos ou em casal com a saída dos filhos de casa para constituírem novas famílias. Essas famílias são representadas por um casal de idosos, sendo que eles ou não tiveram filhos ou se os têm não vivem com eles. 

Os estudos de Camaraño e Ghouri (2003) caracterizam as famílias de idosos em dois grupos: família de idosos – é aquela em que o idoso é o chefe do domicílio; e família com idosos – aquela em que os idosos moram na condição de parentes do chefe ou do cônjuge da família. Os autores rediscutem as teses de dependência dos idosos em relação às gerações mais novas e reforçam a ideia de interdependência. Assim, comprovam que houve uma diminuição no período de 1981 a 1999 nas famílias com idosos e que houve um crescimento da família de idosos e deles como chefes do domicílio. 

Não obstante os conflitos, a família é única em seu papel no desenvolvimento da sociabilidade, da afetividade e do bem-estar físico e psíquico dos indivíduos, sobretudo durante os períodos da infância, da adolescência e da velhice (PRADO, 1981). Por essa razão, contrapomo-nos à institucionalização como modelo hegemônico de resposta às refrações da questão social que atravessam as velhices da classe trabalhadora e defendemos um modelo de políticas públicas que ofereça assistência e cuidados sob a perspectiva do direito à convivência familiar e comunitária da pessoa idosa, cuidados em domicílios e serviços diurnos para atendê-los e a suas famílias. 

Mas o que os estudos da pesquisa Idosos no Brasil II: Vivências, Desafios e Expectativas na Terceira Idade, idealizada e realizada pela parceria Fundação Perseu Abramo e Sesc São Paulo, apontam acerca das relações familiares dos idosos(as) entrevistados(as)? 

Relações Familiares de Idosos no Brasil: Dados Recentes da Pesquisa da Fundação Perseu Abramo e Sesc São Paulo 

A pesquisa de opinião pública da parceria Sesc São Paulo e Fundação Perseu Abramo, realizada em 2020, entrevistou 4.144 pessoas em diferentes municípios brasileiros, sendo 1.775 pessoas não idosas, de diferentes faixas etárias, correspondendo a 19%; e 2369 pessoas idosas a partir de 60 anos de idade, correspondendo a 81% dos entrevistados. 

A pesquisa apontou mudanças na composição das famílias brasileiras, já que elas estão menores, sendo que a média da quantidade de moradores por domicílio foi de 3,5 pessoas; dentre os que moram sozinhos foi de 8%, mas, entre as pessoas idosas, o percentual foi de 17%. Os dados agregados indicam que essas taxas são maiores entre idosos do sexo masculino e pretos, chegando a 21%. Os domicílios com duas pessoas são maiores para os homens idosos brancos (37%) do que os pretos (26%); os com três pessoas também são maiores entre os idosos brancos (20%) do que os pretos (18%); os com quatro pessoas, entretanto, são maiores entre os idosos pretos (21%) do que os brancos (13%). 

O crescimento dos percentuais de pessoas idosas sozinhas está relacionado à etapa do ciclo de vida das famílias e das pessoas na velhice, sendo comum a saída dos filhos de casa para a composição de novos núcleos familiares e a morte do(a) cônjuge. O acesso à renda, via política pública, tem permitido que essas pessoas se mantenham em suas casas e vivam com certa autonomia e independência. Mas o percentual de homens idosos negros sozinhos tem implicações sociais, especialmente pelas características familistas das políticas sociais brasileiras, o que pode significar desproteção social quando precisarem de assistência e cuidados. Esse dado é preocupante em termos de arranjos de proteção social, especialmente porque o percentual de homens idosos solteiros pretos é de 14%, enquanto o total da amostra é de apenas 9%; e dos idosos brancos de 7%. Entre as mulheres idosas, a taxa é de 11%. 

Estudos denominados Saúde e Bem-Estar e Envelhecimento (Sabe), com dados colhidos em 2000, 2006 e 2010 com idosos(as) do município de São Paulo, também apontaram resultados similares, ou seja, maior proporção de solteiros entre os pretos idosos do sexo masculino, maior proporção dos que não tiveram filhos, dos divorciados ou viúvos, o que Silva et al. (2018) denominam de maior condição de vulnerabilidade no que concerne à rede de apoio social, pois cônjuges e filhos são figuras essenciais no apoio às necessidades das pessoas idosas, fazendo com que os solteiros fiquem em desvantagem. 

Os autores destacam que as pesquisas que conseguem incluir as informações de gênero e raça (cor) têm ajudado muito nos desvelamentos das desigualdades sociais que demarcam o envelhecer das pessoas e apontam que a população negra (pretos e pardos) tem piores indicadores de escolaridade, inserções nos piores postos de trabalho, menor acesso aos bens e serviços sociais e menores expectativas de vida, logo, atuam diretamente sobre a sua longevidade e qualidade de vida ao envelhecer. 

Esses dados agregados têm sido instrumentos para comprovar as teses da heterogeneidade das formas de envelhecer e das aproximações entre diferentes grupos de pessoas idosas que a ideia de população idosa como um todo esconde, pois as velhices são atravessadas por diferenças de classe, gênero e raça/etnia. 

A pesquisa da Fundação Perseu Abramo e Sesc São Paulo de 2020 apontou que a maioria da amostra é de casados (67%). Aqui a desigualdade de gênero é gritante, pois 67% dos homens idosos brancos e 60% dos homens idosos pretos são casados, porém, apenas 40% entre as mulheres brancas estão nessa condição e com taxas menores estão as mulheres idosas pretas (32%). A situação de viuvez também é maior entre as mulheres, 40% entre as mulheres idosas brancas e 52% entre as idosas pretas. Homens idosos brancos e pretos são, respectivamente, 18% e 14%. 

Assim, as mulheres vivem mais por terem expectativa de vida maior que os homens, mas vivem essa etapa na viuvez, pois ainda é comum os homens conseguirem se casar novamente ou ter uma nova companheira mesmo na velhice (69% dos homens idosos moram com cônjuge), situação interditada para a maioria das mulheres, por serem consideradas assexuais, desinteressantes e velhas demais para novos relacionamentos. O ageísmo ou etarismo tem maior incidência sobre as pessoas idosas do sexo feminino do que a do sexo masculino, em que os cabelos brancos são considerados um charme para eles e desleixo para elas. Sobre composição familiar e pessoas residentes no domicílio, 53% são maridos/esposas ou companheiros/companheiras ou filhos(as), sendo maior a incidência de mulheres idosas que moram com netos (31%), e, para os homens idosos, o parente é geralmente a esposa ou a companheira (69%). Nesses modelos familiares, geralmente a pessoa idosa é a principal responsável pelo domicílio, mas considerando as diferenças de gênero associadas à trajetória de vida das mulheres, especialmente o acesso ao trabalho estável e formal, à escola, à formação profissional e aos traços patriarcais e sexistas em que há papéis normativos nos quais o homem é provedor e a mulher é cuidadora, elas são chefes do seu domicílio em apenas 40%, contra 63% dos homens idosos. 

Entre as pessoas mais próximas, com as quais a família pode contar no seu cotidiano, para 60% dos homens idosos é a esposa/companheira; para as mulheres, o cônjuge refere-se a apenas 28%, devido ao alto percentual de solteiras, viúvas, separadas/desquitadas. Para 42% das mulheres idosas pretas, essa pessoa é o(a) filho(a); já para as mulheres idosas brancas, o percentual é de 37%; e, para os homens, apenas 14% dessas pessoas é um(a) filho(a). 

Essas composições familiares dizem muito sobre a capacidade de troca, de apoios mútuos, das fontes de ajuda e cuidados com quem as pessoas idosas podem contar ou não. Em relação ao sentimento de família, de acolhimento e amparo, eles variam quanto ao nível de escolaridade e de renda. Em geral, 79% dos(as) idosos(as) entrevistados(as) se sentem acolhidos(as) pelas suas famílias. Esses percentuais são maiores entre os que têm escolaridade de nível superior (87%) e entre os que têm renda entre 2 e 5 salários-mínimos (86%), mas 21% se sentem mais ou menos acolhidos, têm queixas sobre esse acolhimento, ou são pouco acolhidos e/ou se sentem um fardo para a família. 

As razões para a maioria se sentir acolhida são de ordem afetuosa, destacada por 55% dos entrevistados, tais como sentimentos de carinho, amor, atenção, cuidados, preocupação com a saúde, dentre outros. Outros 43% ressaltaram também harmonia e união na família; 11% destacaram respeito. Os mais ou menos a poucos acolhidos destacaram como razões exatamente a falta de união e harmonia e o desrespeito. Esses dados apontam exatamente para o fato de que a família não pode ser visualizada como necessariamente harmoniosa, numa perspectiva idílica, sem conflitos, mágoas e desavenças; que essas famílias são ambíguas e contraditórias, mas que podem ser fonte de suporte e amor, como aponta a maioria dos entrevistados. 

O lugar que a pessoa idosa ocupa na família, sua participação nas decisões coletivas do grupo, visitas que faz ou recebe, lugar dos encontros com amigos diz muitos das relações interpessoais construídas, mas também das determinações sociais e do lugar que pessoas idosas ocupam na sociedade capitalista. Os dados da pesquisa Perseu Abramo/Sesc São Paulo, em 2006, apontaram que apenas 39% dos(as) idosos(as) entrevistados(as) são sempre ouvidos(as) ou convidados(as) a dar opinião nos assuntos familiares, recebem visitas esporadicamente e a maioria dos encontros ou visitas eram em sua própria casa, o que significa a reprodução das visões e representações dominantes sobre a velhice. 

Considerando que as relações familiares são importantes nas fontes disponíveis de apoio e de ajuda, elas também vêm acompanhando as mudanças nos modelos de famílias e modos de viver na sociedade contemporânea. Com o aumento de idosos(as) que vivem sozinhos(as) ou apenas em casal (ninho vazio), dos estados de viuvez, da redução da quantidade de pessoas no domicílio, que varia conforme o gênero e a raça, diminuem também as fontes de ajuda e suporte com que os(as) idosos(as) podem contar. A comparação entre a pesquisa realizada em 2006 e a de 2020 denota redução geral nas fontes de atendimento de necessidades das pessoas idosas, desde as tarefas domésticas – lavar, cozinhar – a ir ao médico, tomar remédios, manter-se financeiramente, resolver problemas em bancos, documentos e em órgãos públicos, dentre outras. Em muitas dessas ajudas, a queda foi de quase 30%, conforme demonstra o gráfico a seguir: 

Isso pode estar relacionado não apenas à quantidade de membros familiares no domicílio, mas às necessidades de sobrevivência dos mais jovens, à inserção das mulheres no mundo do trabalho e à falta de cuidadores(as) em tempo integral, além de laços intergeracionais mais fluidos e com pouca reciprocidade, o que aponta para a necessidade de políticas públicas protetivas e inclusivas, seja para os(as) idosos(as) independentes como para os(as) dependentes de cuidados em seus domicílios ou em unidades públicas de atendimento nos períodos diurno ou noturno. 

Considerações Finais 

O envelhecimento, as velhices e as famílias são fenômenos sociais que sofrem determinações da estrutura social de específicos tipos de sociedade. O tratamento generalizante – independentemente das variações postas pelos determinantes socioeconômicos e socioculturais ou sua individualização excessiva, desconectada das estruturas que geram vivências comuns (capitalismo, patriarcado e racismo) – incorre em erros metodológicos na apreensão dos fenômenos na sua totalidade, como no caso do envelhecimento. 

Entretanto, o mesmo se pode dizer da família, pois a a-historicidade abstrata com que vem sendo tratada e abordada leva a representações idealizadas e estigmatizadoras de outros modelos fora do ideal. A família real é contraditória, o que não significa que não seja fonte de apoio, de ajudas, de amor incondicional, de reciprocidades. 

Os dados da pesquisa analisados neste texto apontaram que há uma parte considerável de idosos(as), geralmente negros(as), que têm menor possibilidade de contar com os apoios das redes informais, por serem viúvos(as), solteiros(as) ou separados(as), e que essas diferenças têm marcas de gênero e raça (cor), e que mesmo os(as) casados(as) e com filhos têm contado cada vez menos com as fontes de apoio das famílias, o que está relacionado a mudanças demográficas, familiares e no mundo do trabalho. 

Todavia, a maioria dos(as) idosos(a) se sente acolhida por sua família, e destaca desde motivos afetivos a instrumentais nas ajudas que necessita, embora um número considerável de idosos(as) aponte a desarmonia, os conflitos e a falta de respeito como entrave nesse acolhimento, o que comprova a tese das contradições e ambiguidades da família e a necessidade de políticas públicas de suporte nos domicílios, com prioridade para os que não contam com suporte familiar e, para os que contam com esse suporte, uma política para apoiar os familiares, com serviços e benefícios.

Referências 

BEAUVOIR, S. de. A velhice. Tradução Maria Helena Franco Monteiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1990. 

BIROLI, F. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. 

BIROLI, R.; MIGUEL, L. Gênero, raça, classe: opressões cruzadas e convergências na produção das desigualdades. Mediações, Londrina, v. 20, n. 2, p. 27-55, jul.-dez. 2015. 

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