Escultura e movimento: da representação à cinética

19/03/2021

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Alçapão de lagosta e cauda de peixe (1939), de Alexander Calder

*Por Thiago Ruiz

O século XX marca a rápida transformação dos modos de produção e das relações sociais, o que também abala as tradições no campo das artes. O surgimento das várias correntes artísticas de vanguarda (como o cubismo, o futurismo, o concretismo etc.) opera uma revolução nas linguagens artísticas, que passam a sofrer profundas alterações nos seus meios e procedimentos. Em especial na linguagem escultórica, os elementos formais anteriormente observados, como inalterabilidade e permanência, são colocados em xeque, alterando os meios de representação usados pelos artistas, o que irá possibilitar a experimentação de elementos de forte caráter temporal.

Contudo, antes de observarmos como essas mudanças impactaram as práticas e os procedimentos artísticos, iremos discorrer brevemente sobre o movimento e seu pensamento na representação da escultura tradicional. 

Ao longo dos séculos e em diferentes culturas, a escultura pretendeu representar o movimento a partir das tensões implícitas pelo volume geométrico de formas estáticas, cujos suportes se baseavam em uma materialidade perene, como o mármore ou o bronze, pensados para resistir à passagem do tempo.

A apreensão de uma ideia de continuidade, por um meio que não pode contar com o fator temporal para desencadear suas ações, buscou esquemas que escapassem ao estado visualmente estável do eixo vertical ou horizontal, através de uma série de convenções que trouxessem dinamismo para representar a presença do movimento (Fig. 1). 

Laocoonte e seus filhos

Fig. 1. Hagesandro, Atenodoro e Polidoro de Rodes. 
Laocoonte e seus filhos (c. 175-50 a.C.)
Fonte da imagem: Wikipedia


Desse modo, na representação escultórica tradicional o movimento de um corpo em relação a si próprio ou cena é apenas sugerido. Tal alusão recorre a estratégias para condensar na matéria imóvel a impressão de um desdobramento temporal conseguido pela síntese da forma; consequência de análises baseadas na experiência e subjetividade de cada artista quanto à escolha do instante perfeito para ser referenciado na obra (Fig. 2). 

Hércules e Licas

Fig. 2. Antonio Canova. 
Hércules e Licas (1795-1815)
Fonte da imagem: Wikicommons
 

Aqui, cabe salientar que, além do momento fixado na imagem tridimensional pelo ato criativo e os artifícios do escultor, outro fator preponderante para que a obra adquira o sentido almejado passa pelo observador, pois, é no conjunto das qualidades da imagem esquematizada a partir do dinamismo impresso em suas formas, junto às memórias, conhecimentos e contextos culturais trazidos pelo espectador, que a impressão do movimento na escultura tradicional se completa.

Assim, a totalidade do movimento na representação tradicional perfaz a soma e o jogo entre as qualidades dinâmicas da composição e a reconstrução mental do observador, segundo o repertório cultural de sua época (Fig. 3). 

O Homem que anda

Fig. 3. Auguste Rodin
O Homem que anda (1840-1917)
Fonte da imagem: Museu Rodin
 

Com a intensificação da industrialização e a aceleração dos processos tecnológicos que marcam as transformações sociais no início do século XX, o pensamento estético e os procedimentos artísticos são impactados profundamente. Velocidade e dinamismo são palavras que passam a invadir o imaginário criativo europeu, permitindo novas reflexões que fazem expandir o conceito de movimento e as técnicas empregadas em sua representação, como os estudos desenvolvidos pelas vanguardas artísticas do cubismo e do futurismo, que abrem novas possibilidades de abordagem formal quanto ao tema. 

Se o cubismo buscou por uma representação da imagem escultórica a partir da fragmentação e decomposição parcial ou total dos volumes e relevos, dando origem à uma visão simultânea do objeto (Fig. 4), no futurismo a forma expande e se prolonga no espaço como um modo de apreender o deslocamento total do objeto, o que demonstra um desejo pela ação e pela mudança enquanto essência da representação (Fig. 5). 

Guitarra

Fig. 4. Pablo Picasso
Guitarra (1912-1914)
Fonte da imagem: MoMA 

Formas únicas de continuidade no espaço

Fig. 5. Umberto Boccioni
Formas únicas de continuidade no espaço (1913)
Fonte da imagem: Wikicommons
 

Além disso, o concretismo foi outro movimento artístico de vanguarda importante para compreendermos o desenvolvimento do movimento nos procedimentos artísticos da escultura, sendo influenciado pelo valor plástico da velocidade do futurismo italiano, porém, com críticas ao rigor formal que aplicavam à representação e seu confinamento estético. 

A estratégia adotada pelo artista construtivista buscou a experimentação estética influenciada pela exploração científica com o interesse interdisciplinar entre os campos da arte, da arquitetura e da tecnologia industrial, permitindo abordar o tempo e espaço como fenômenos integrados.

Nesse contexto integrante entre arte e ciência, surgem as primeiras estruturas cinéticas que trazem o movimento real para dentro da obra possibilitado pelo uso de novas técnicas e materiais, se afastando dos postulados tradicionais da escultura.

Logo, na escultura cinética, o volume não é um dado concreto correspondido por suas coordenadas geométricas de altura, largura e profundidade, mas experienciado como uma sensação visual criada pelo movimento da forma em uma dada área do espaço (Fig. 6), deslocando assim a relação anteriormente estabelecida pelo volume escultórico como síntese do movimento, então interpretado segundo o ponto de vista do observador. 

Fig. 6. Naum Gabo
Construção Cinética (1919–20, réplica de 1985)
Fonte da imagem: Tate
 

Com isso, o espaço para a imagem cinética é, portanto, o lugar em que ocorre o movimento e a alteração da forma. Isso passa a implicar a concepção da obra enquanto um processo, e não somente na disposição de um objeto.

No entanto, as primeiras obras cinéticas que buscaram a ação através de mecanismos e engenhos elétricos para que o movimento fosse evidenciado, nem sempre eram realizáveis devido às limitações mecânicas da época, muitas vezes gerando distorções entre a adaptação do trabalho ao maquinário.

Por conseguinte, uma das soluções encontradas para lidar com o problema foi a introdução do ar como força geradora do movimento, de acordo aos princípios de equilíbrio e inércia em estruturas móveis, possibilitando o desenvolvimento de uma obra cinética capaz de ser posta em permanente movimento (Fig. 7). 

Fig. 7. Alexander Calder
Alçapão de lagosta e cauda de peixe (1939)
Fonte da imagem: Wikiart
 

Essas estruturas receberam a denominação de móbiles; cuja característica herdada do suprematismo russo utiliza formas geométricas desvinculadas de um caráter figurativo, favorecendo a percepção do movimento real como uma qualidade constituinte da obra.

Por isso, nos móbiles – bem como na arte cinética em geral –, o tempo adquire um papel essencial, articulando processos e tornando-se parte integral no trabalho, apresentado como um sistema em transformação em que as mudanças ordenam e controlam a organização interna do todo.

Ademais, os mecanismos que regulam o movimento e a consequente organização dinâmica das estruturas cinéticas encontram na luz artificial um dado perceptivo muito importante, em especial nos trabalhos que absorvem o efeito luminoso como a obra em si, e em diálogo com o espaço circundante (Fig. 8), o que, a partir dos anos 1950, perfaz o interesse de práticas que retomam o uso dos engenhos mecânicos, em parte devido à superação das limitações técnicas das décadas anteriores, e em parte pelo enfraquecimento das objeções quanto ao uso da tecnologia como objeto artístico. 

Fig. 8. Abraham Palatnik
Aparelho cinecromático (1955)
Fonte da imagem: Enciclopédia Itaú Cultural
 

Com efeito, a luz passa a modular o espaço imaterial de mudança da forma como o elemento primordial na percepção do movimento, estabelecendo um ambiente sensório onde o espectador não apenas observa o trabalho, mas é envolvido por ele, o que, em linhas gerais, irá cooperar para o desenvolvimento de novas práticas artísticas tridimensionais cujas proposições são ativadas enquanto processos estabelecidos pelo público (Fig. 9). 

Esculturas de um minuto

Fig. 9. Erwin Wurm
Esculturas de um minuto (1997)
Fonte da imagem: Tate
 

Por fim, o breve recorte até aqui discorrido nos permitiu observar como o movimento participa na concepção da escultura, de acordo com as transformações históricas ocorridas na sociedade e os novos meios de produção disponíveis, segundo as intenções de cada artista, seja pelo desejo em capturar a expressão vívida de um momento vertido em matéria inerte – quer pela síntese da forma ou a expansão simultânea do objeto –, seja pela observação do fenômeno temporal acionado por fluxos mecânicos ou naturais em estruturas móveis que animam o espaço criado, ou criam espaços animados.

Referências consultadas

ARGAN, Giulio C. Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992 (trad. de Denise Bottmann e Federico Carotti).
BRETT, Guy. Kinetic Art: the language of movement. London/New York: Studio Vista/Reinhold, 1968.
JESUS, de Eduardo (org.). Walter Zanini: vanguardas, desmaterialização, tecnologias na arte. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.
KRAUSS, Rosalind E. Caminhos da Escultura Moderna. São Paulo: Martins Fontes, 1998 (trad. de Julio Fischer).
MARTÍN, Paris Matía; GONZÁLEZ-MENEZES, Elena Blanch; AMO, Pablo de Arriba del; GÓMEZ, José de las Casas; MUÑOZ, José Luis Gutiérrez. Conceptos Fundamentales del Lenguaje Escultórico. Madrid: Ediciones Akal, 2006.

*Thiago Ruiz é educador do Espaço de Tecnologias e Artes (ETA) do Sesc Vila Mariana. Graduado pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e Mestre em Processos e Procedimentos Artísticos pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP. Também é artista e pesquisa diferentes articulações da criação sonora com as artes visuais.

No FestA! – Festival de Aprender 2021, Thiago ministra a oficina online “Escultura e Movimento: da Representação à Cinética”, nos dias 25 e 26/3 (as vagas já estão esgotadas).

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