Com 4 apresentações, o espetáculo “Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca” fez parte da mostra “Cidade para pessoas”, que integra o projeto “Isto não é um mapa”.

“Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca”, da “A Digna Coletivo Teatral”, é um trabalho interativo e itinerante com dramaturgia assinada por Victor Nóvoa e encerra a “Trilogia do Despejo”. Composta por outras duas peças – “Condomínio Nova Era” e “Entre Vãos” – a tríade foi construída em quase 10 anos de pesquisa a partir da observação de como os modos de vida foram se alterando com a gentrificação da cidade.

A encenação, nada convencional, atravessou diferentes ambientes cênicos. Para compor a história concebida pela companhia, foram necessárias telas, carros, apartamentos e um público muito atento ao redor. No entanto, antes mesmo de entrar em contato físico com o elenco, o público foi impactado com trechos da narrativa.

Ao cadastrar seu WhatsApp na hora da compra do ingresso, o espectador passou a receber mensagens dos moradores desse condomínio, revelando diferentes aspectos sobre suas histórias e personalidades.

No transporte, feito por motoristas contratados pela companhia, o público foi levado até aos locais onde acontecem as cenas e provocado através da relação entre o “micro”, da vida pessoal das personagens, e o “macro” das urgências da cidade.

“Essa transição entre o micro e o macro sempre foi a cara da nossa pesquisa. Então, a apresentação se dá pelos vídeos também, que chegam hoje no celular ao longo do dia. Até antes de chegar no carro, a pessoa já recebeu informações. Quando faz o trânsito, ela tem lembranças desses vídeos, desse “micro” combinado com as imagens da cidade”, afirmam os artistas do coletivo teatral.

A escolha de motoristas que buscam os espectadores é, propositalmente, parte do enredo, que estabelece reflexões sobre as condições de trabalho nas grandes cidades como São Paulo. Durante o trajeto, o público pôde acompanhar as relações entre os modos de vida na cidade com a precarização do dia a dia dos trabalhadores.

“A gente fez muita questão que fossem motoristas de verdade. Não faria sentido ter atores e atrizes fingindo que eram motoristas de aplicativo. Temos no elenco motoristas, atores e atrizes que estavam e que estão até hoje, de fato, trabalhando com isso”, explicam os artistas da “A Digna”.

Além dos carros, o percurso também foi acompanhado pelo coletivo “Senoritas Courier”, que representa fisicamente as pessoas que trabalham nos aplicativos de entrega e, diariamente, se deslocam pelas ruas da capital paulista. O espetáculo, dessa forma, esteve sempre atravessando e, ao mesmo tempo, compartilhando diferentes perspectivas da atualidade. 

Nos apartamentos da grande cidade

Se a cidade em sua forma física foi discutida em todo o trajeto, as relações entre pessoas, memórias e moradia foram debatidas nas cenas em vídeo que aconteceram nos apartamentos do bairro fictício “Ilhas dos Sonhos – Perdizes”. 

O público, na hora de adquirir os ingressos, precisou optar entre duas cenas oferecidas: “Apartamento Mãe e Filha” e “Apartamento Casal”. De forma provocativa, ao decidir por uma das cenas – que são transmitidas por meio de TVs instaladas em um dos locais de parada – não é possível assistir a outra. Isso, implicitamente, mostra como alguns dos caminhos tomados na dramaturgia são determinantes para a forma na qual os espectadores serão impactados.

Os enredos das cenas em vídeo, inicialmente, não parecerem ligados ao tema central do espetáculo, mas para a companhia é justamente a oposição entre o privado e o coletivo que demarca discussões emergenciais para a cidade.

“É preciso entender que existem necessidades que são coletivas e que a gente não pode colocar como regra para tudo a lógica do dinheiro, essa lógica do individual. Porque assim vamos entrando num lugar onde não existe respaldo para aquilo que é comum, para aquilo que é coletivo. Quem vai cuidar desse coletivo?”, explicam os artistas da companhia.

A dificuldade em pensar coletivamente, de escutar o próximo e fazer das necessidades do outro parte do relacionamento, foi refletida nas cenas do “Apartamento Mãe e Filha” e “Apartamento Casal”. 

As personagens não são boas ou ruins, não apoiam ou mesmo questionam a cidade como esse espaço de urgência coletiva, mas propõem reflexões sobre os modos de viver que podem ser identificados e, até certo ponto, reconhecidos em quem assiste ao espetáculo.

Quando explode é bom para quem?

Se macro e micro se confundem e se entrelaçam durante todo o percorrer do enredo, é no chamado “Coro dos de fora” que a temática foi levada ao ápice e faz o nome do espetáculo ser compreendido por todas as pessoas. 

Na finalização da obra – que aconteceu no bairro da Barra Funda – motoristas, entregadores e artistas se uniram para debater e trazer à tona todos os corpos que ficam “de fora” da lógica individualista da cidade.

Para a companhia, é impossível não estabelecer uma relação direta entre a precarização do trabalho na cidade com a forma que os artistas vivenciam o processo político dos meios de produção.

De acordo com os artistas do coletivo, “É essa precarização dos meios de produção que também nos afeta diretamente e com muita força. Então, esse trânsito a gente acredita que é um convite à reflexão mesmo, de como a gente não quer ficar em uma das pontas só. Nem só das relações individuais, daquela do que é micro, do que é pessoal, mas também não só no grande, no político, que pode parecer não tão humanizado, não tão incorporado ao corpo unificado.” 

O coro final tem não apenas a função de impactar ou dar sentido ao processo percorrido, mas de interligar todos os pontos da narrativa e posicionar “Estilhaços de Janela Fervem no Céu da Minha Boca” como um debate de diversas camadas.

Ao encerrar a experiência, fica ainda mais claro a personagem principal do espetáculo: a cidade que se transforma e se comporta de diferentes formas, especialmente para quem pode ter o privilégio de prestar atenção.

Cidade para pessoas

De março a maio, a mostra “Cidade Para Pessoas” deu continuidade ao projeto “Isto Não é um Mapa”, realizado pelo Sesc Bom Retiro. Com foco no Direito à Cidade, desta vez a programação apresentou uma série de cartografias afetivas, poéticas, sociais e micropolíticas em múltiplas linguagens, que exploraram e refletiram sobre os diferentes desdobramentos temáticos que dizem respeito à discussão sobre a cidade. Saiba mais aqui.

Fotos utilizadas na matéria: Renata Teixeira