Leia a edição de maio/22 da Revista E na íntegra
Foi de um orelhão embaixo do prédio de Clarice Lispector, na capital fluminense, que uma jovem universitária nascida em Irati (PR) ligou para pedir-lhe uma entrevista. A audaciosa garota em questão é Denise Stoklos, então, aos 17 anos, e esse curioso episódio se deu no final da década de 1960, quando cursava a Faculdade de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Esse acontecimento, somado a um adormecido desejo de encenar textos de Lispector, despertou na atriz, diretora e coreógrafa no ano do centenário da autora de Perto do Coração Selvagem.
Junto ao dramaturgista Welington Andrade e ao diretor Elias Andreato, criou Abjeto-Sujeito: Clarice Lispector por Denise Stoklos, que estreou e fez uma temporada entre os meses de março e abril no teatro do Sesc 24 de Maio. Esse espetáculo – costurado por canções consagradas na voz de Elis Regina – marca o retorno da artista solo-performer às apresentações presenciais depois de um período restrito ao ambiente online. “Assisti a inúmeras peças e tive muitos insights que são próprios do teatro. Adorava ver colegas fazendo seus melhores trabalhos, muitas vezes, nas suas casas, nas suas cozinhas e transformando aquilo no possível, num ato de resistência e de coragem”, conta.
Premiada por dezenas de trabalhos realizados ao longo dos últimos 52 anos, Stoklos esculpiu sua carreira com as ferramentas do Teatro Essencial, linguagem que ela construiu e que dá prioridade máxima aos recursos do ator – voz, corpo, inteligência e intuição. Hoje, aos 71 anos, a artista segue em constante processo criativo, provocando reflexões no público a partir do movimento sutil das palavras e do corpo.
Fui fazendo escolhas de textos da Clarice que me tocavam profunda e pessoalmente, e de músicas da Elis Regina que eu adoro e pelas quais tenho uma paixão enorme. Aliás, todos os meus espetáculos têm canções da Elis – já fiz um, especificamente, só com canções dela, coreografado [Elis Regina, 1982]. Para montar esse espetáculo [Abjeto-Sujeito], chamei alguns amigos em que confio muito, entre eles, Welington Andrade, que é dramaturgista, professor de literatura e diretor da Faculdade Cásper Líbero, o diretor Elias Andreato e a professora de literatura que, infelizmente, perdemos no ano passado, durante o processo, Sônia Régis, da PUC, que era até amiga pessoal da Clarice e conhecia profundamente sua obra.
Mas todos eles me disseram que não estava legal do jeito que eu tinha feito, que estava faltando uma conexão, que estava muito solto tudo aquilo. Eu já tinha até decorado textos. Aí, desmontamos tudo, minha assistente Cristina Longo dizia: “Não é possível! Jogar tudo fora”. Daí nós começamos com uma consistência muito maior que foi esse olhar do Welington que foi para o lado do abjeto-sujeito, de quando essas coisas, esses insetos são uma forma, uma maneira, um caminho de se chegar à individualidade, ao sujeito em si.
Também deveria haver uma coerência na escolha das canções da Elis, por quem Welington, assim como eu, também era enlouquecido. Começamos esse trabalho e quando ele estava praticamente pronto para estrear – chegamos a vir ao Teatro do Sesc 24 de Maio e ensaiar – estourou a pandemia. Tivemos que parar por dois anos e deixamos o espetáculo sem mexer. Até que, enfim, foi dada a partida de que nós poderíamos recomeçar. Aí, então, viemos e estamos realizando esta temporada em que as pessoas têm nos recebido muito bem.
Esse é um espetáculo extremamente denso e acho que isso é importante neste momento pós-pandêmico, se é que podemos falar assim, mas neste momento específico em que tantas coisas estão acontecendo: guerra na Ucrânia, a dificuldade do nosso governo nacional com a cultura e tudo mais. Neste momento bem sensível parece que a densidade é algo que as pessoas estão mais prontas [para receber] do que textos mais fáceis ou mais simples. Então, nós optamos por fazer um espetáculo em que o texto tem um tempo para ser absorvido. Ele não é jogado como uma coisa claramente decifrada.
Ele é dado para que se tenha uma receptividade reflexiva sobre ele. Esse tempo todo, o Elias Andreato fez questão de trabalhar comigo para que eu não acelerasse nunca, porque nós todos estamos precisando desse tempo. Então, temos realizado assim e parece que as pessoas, realmente, têm essa busca porque elas têm vindo ao teatro e se relacionado de uma maneira muito bonita, muito receptiva.
Eu morava no Paraná e estava fazendo Jornalismo na Universidade Federal, também estudava Ciências Sociais na PUC e ainda fazia teatro. Eu era extremamente ativa aos 18 anos, com uma energia muito grande, e escrevia bastante. Quando me deparei com dois livros de Clarice: A Legião Estrangeira e, em seguida, A Paixão Segundo G.H., tudo revirou. Foi aí que a literatura apareceu, de repente, como o grande espelho, o grande convexo das coisas, a grande identificação do indizível através da própria palavra. Essa contraposição que ela fazia de tocar naquilo tão sensível justamente com algo tão concreto como palavras e frases, isso me deslumbrou absolutamente. Eu fiquei siderada pelo universo dela e, então, conto na peça que tive a oportunidade de ir para o Rio e lá, busquei o endereço dela. Com aquela ousadia da idade, pedi uma entrevista para o meu jornalzinho da faculdade de Jornalismo e ela me recebeu.
Mas ela me recebeu tão bem, que até hoje eu não me lembro de quase nada de tão transpassada que fiquei com a figura dela, com a generosidade dela por estar prestando atenção numa universitária de 18 anos, com tanta gente que poderia estar ali naquele lugar, e me dando um tempo dela extremamente precioso, dentro do seu apartamento, me recebendo dentro de sua intimidade. Foi algo que acredito que construiu fundamentos que, sem dúvida, fazem parte da intimidade deste espetáculo, uma forma de reverência, não de superficialidade, porque ela não deixava que nada ficasse muito simples.
Eu espero que tenha isso [a matéria natureza humana] em meu trabalho, porque é o mínimo que a Clarice merece: que esse espetáculo tenha fundamentos da Clarice Lispector naquilo que se toca dela. Que não fuja daquela cerimônia incrível com que ela trata o ser humano por sabê-lo tão especial, profundo e indecifrável. Há também outros escritores que já tive coragem de levar em cena como Jorge Luis Borges, quando montei a peça Elogio (1996), com meus dois filhos – Thais Stoklos, que é artista plástica e tem feito todos os meus cenários, e Piatã Stoklos, pequenos ainda, com 15 e 17 anos –, com a cantora Cida Moreira e o ator, figurinista e cenógrafo Fábio Namatame. Nós fizemos essa peça baseada no livro Elogio da Sombra, de Borges, que é de um universo extremamente peculiar, aprofundado e que mexe com questões que todos nós tocamos
e não sabemos dar nome.
Trabalhei também com textos do Julio Cortázar em Vendo gritos e palavras (2015), um espetáculo em que havia várias menções a textos dele, até falar da poesia em si, da importância da poesia. Quis fazer uma homenagem à poesia que Cortázar nos trouxe e que, mesmo morando na França, é uma poesia tão latino-americana. Já tinha feito Carta ao Pai (2015), de Franz Kafka, que também mexe em questões difíceis da nossa natureza humana. Nesse caso, da relação de Kafka com o pai, para quem escreveu uma carta e nunca enviou, mas que o mundo inteiro leu. Em todas essas peças, eram utilizadas metáforas, mas no da Clarice não há metáfora. Nós usamos o texto dela limpo, cru, com a certeza de que o público está pronto e quer ouvir Clarice Lispector. Isso é uma coisa que se destaca nessas outras peças que mencionei, com textos de autores que me tocaram.
“É MARAVILHOSO VIVER. E VOU REPETIR AQUI A RESPOSTA: PORQUE A OUTRA OPÇÃO É AQUELA DA QUAL NÃO SE PODE VOLTAR NUNCA MAIS”
Denise Stoklos
Eu penso que foi extremamente válido e penso que havia, sim, fricção. Era o que nós tínhamos e nós buscávamos como espectadores. Eu assisti a inúmeras peças e tive muitos insights que são próprios do teatro. Adorava ver colegas fazendo seus melhores trabalhos, muitas vezes, nas suas casas, nas suas cozinhas e transformando aquilo no possível, num ato de resistência e de coragem. Acho muito rico e necessário e parabenizo a todos os que fizeram. Eu tive a graça de fazer pelo Sesc Pompeia As Palavras Gestuais [assista no canal do YouTube do Sesc São Paulo], uma leitura de trechos de vários dos meus trabalhos, para a qual, no final, eu escrevi um texto especialmente valorizando as peças online, valorizando o fato de que as pessoas que estão em casa podem receber, ao menos, aquilo que elas não poderiam receber de outra forma.
Eu sempre me recordo do que disse um professor de teatro da Bahia. Ele me contou que na Grécia Antiga, o teatro era considerado curativo. Simplesmente. As pessoas quando doentes iam a seus xamãs, recebiam suas poções, mas também lhes era recomendada a peça a que deveriam assistir para que ela impulsionasse sua cura. Porque ali, dentro daquela peça, estava alguma questão humana que lhe estava causando a doença. Então, isso me marcou demais e tanto para que eu nunca esquecesse que o teatro tem essa possibilidade da cura. E no teatro online isso aconteceu também do ponto de vista material: artistas e outros profissionais que trabalham com teatro puderam sobreviver.
Enquanto na Alemanha, a ministra Angela Merkel estava distribuindo verba para que os artistas sobrevivessem durante a pandemia, aqui foi o contrário, houve uma insuficiência absoluta. Então, artistas também puderam ter no teatro online essa outra saída.
“EU NUNCA ME SINTO SOZINHA NO PALCO (…) ESTOU COM CADA UM QUE ESTÁ NO TEATRO”
Denise Stoklos
Durante esse tempo em que a peça ficou suspensa, na pandemia, é claro que fiquei trabalhando em outros projetos porque o de Clarice também estava suspenso. Então, encontrei uma tese de Ricardo Aparecido Dias, professor de Osasco, em que ele fala de uma forma absolutamente genial, com um cuidado técnico, científico e humanista maravilhoso, sobre essa questão da idade. Ele mesmo tem um livro sobre idade, e já está com mais de 70 também.
No livro, ele trata o envelhecimento de forma positiva, digamos. Fiz questão de mencionar isso na peça da Clarice, inclusive com o próprio nome dele em cena. Porque, sim: 71 anos nos dão toda a decrepitude corporal que acompanha o envelhecimento, que é natural, e dão, sim, uma experiência de vida no sentido de alguns discernimentos. Não acredito que você fique mais sábio, porque eu não me acho sábia, de jeito algum: cada vez eu me acho mais ingênua.
Mas, eu tento acompanhar essa diferença imensa que há, por exemplo, entre a minha geração e a de meus filhos, que estão com 43 e 42 anos, e a das minhas netas, que estão com 10 e 13 anos, e que é outro mundo. Minhas netas são extremamente receptivas a tudo meu. Então, eu não vejo dentro do meu núcleo familiar separações por causa da idade. Tenho, talvez, a felicidade particular de não encontrar isso. E, por enquanto, não tem havido qualquer decrepitude que me impeça de fazer coisas.
Naturalmente, isso acontecerá. Eu brinco, na peça, que fico com o texto na mão lendo porque não consigo mais decorar. Isso não é bem verdade. Eu não gosto muito de decorar, e isso é verdade. A gente resolveu isso como uma decisão do Elias Andreato e do Welington Andrade: esse texto ficaria presente como um hipertexto.
Esse texto era a Clarice em cena, era a máquina de escrever dela. Era a barata, o ovo e tudo que se pode pegar de Clarice. Então, ela está ali presente como letra, escrita, datilografada e nós fizemos essa leitura de concretizar a encenação com o texto presente em cena. Isso evitou que eu tivesse que decorá-lo, algo de que eu não gosto. Gostaria que isso ficasse como uma mensagem: a todos que têm essa idade avançada ou que convivem com pessoas de idade avançada, não há nenhuma perturbação com a idade, além de se saber que o tempo está passando. E que bom, porque estamos vivos e conhecendo mais coisas, e tendo mais possibilidades e talvez mais reflexões profundas. Acho que essa é a função de todo aquele que vive muito tempo.
Meu pai era extremamente libertário. Eu não contei para ele, nem para minha mãe, que ia estrear minha primeira peça [em 1968] e à noite, eu recebo um telegrama: “Feliz estreia. Papai”. Quer dizer, meu pai do interior do Paraná viu num jornal, porque ele lia muito o jornal, e me mandou essa autorização. Todos os meus escritos, ele também guardava. Quando comecei a escrever, ele me deu uma máquina de escrever e um quartinho.
Eu me fechava ali e me sentia a escritora: escrevia aos 15 anos para o jornalzinho da cidade. O editor foi um grande incentivador do meu trabalho e publicava tudo o que eu escrevia. Dizia: “O que não se publica não existe”. Havia uma responsabilidade, um compromisso político com aquilo do qual eu nunca mais me libertei. Estamos todos realizando um trabalho que nos transforma a todos e toca a cada um. Então, é importante que aquilo tenha algum dado de desenvolvimento, que aquilo traga algum desenvolvimento.
Já minha mãe, ela era uma performer nata. Tudo que ela contava era uma piada, ela contava diversas vezes e a gente ria sempre. Aprendi com ela isso, essa coisa clownesca. Então, em casa sempre me davam muita força para eu fazer meus trabalhos. Minha mãe contava que eu chegava em casa da matinê, depois de assistir a filme de faroeste, e eu fazia o cavalo, o mocinho e o bandido, tudo ao mesmo tempo. Coisa que depois eu fui fazer no meu trabalho de solo-performance: vários personagens ao mesmo tempo. Como em Mary Stuart (1987), que foi uma peça importante na minha vida e que já começa com duas personagens que eu mesma fazia e que até se desdobravam em outras.
Foi muito importante ter essa repercussão familiar. Hoje, minha neta de 13 anos já faz filmes, dirige e coloca a irmã como atriz. As duas se dedicam e fazem aula de teatro. É importante e necessário a gente ver e dar a essas pessoas que começam no teatro a noção de quanto elas são capazes de fazer o seu teatro do seu jeito. E que a sua personalidade é o teatro.
“A LITERATURA APARECEU, DE REPENTE, COMO O GRANDE ESPELHO, O GRANDE CONVEXO DAS COISAS, A GRANDE IDENTIFICAÇÃO DO INDIZÍVEL ATRAVÉS DA PRÓPRIA PALAVRA”
Denise Stoklos
Não. Eu nunca me sinto sozinha no palco, principalmente por essa questão que falei, essa questão política. Porque cada um que está na plateia está ali para se ver, para pensar sobre aquilo que está acontecendo no palco e sair do teatro com uma possibilidade melhor sobre aquela experiência. Então, eu estou com cada um que está no teatro. Cada um está junto comigo. Não tem nenhum momento solitário.
E essa última opção agora, dos 71 anos, nessa minha comemoração de maturidade, de chamar Welington Andrade e Elias Andreato na direção, depois que fui dirigida pelo Antônio Abujamra, eu achava que nunca mais ia encontrar um diretor na minha vida que fizesse tanto sentido. E, felizmente, as coisas são contínuas. O Elias é um diretor que me traz tudo que eu realmente preciso. Ele que me deu a marca final do espetáculo, o arremate e mil outras coisas. Ele é responsável por muitos acertos da peça. Os erros são todos meus.
É maravilhoso viver. E vou repetir aqui a resposta: porque a outra opção é aquela da qual não se pode voltar nunca mais. Então, a vida é uma beleza.
A EDIÇÃO DE MAIO/22 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!
Neste mês, refletimos sobre o retorno da atividade turística a partir de novos mapas que fomentam a economia local e valorizam a diversidade cultural de uma região. Ao repensar o turismo, convidamos você a dobrar a esquina, descobrir outras narrativas e visitar novos universos dentro da sua própria cidade. Aproveite para conferir as novidades do processo de retomada dos roteiros do Turismo Social do Sesc São Paulo.
Além disso, a Revista E traz outros destaques em maio: uma reportagem que defende a importância do livre brincar como ação essencial para o desenvolvimento das crianças; um papo com a atriz e performer Denise Stoklos sobre processo criativo, velhice e família; um passeio visual pelos figurinos do CPT_SESC, centro teatral criado por Antunes Filho no Sesc Consolação; um depoimento com Sebastião Salgado sobre sua imersão na floresta, o que gerou a exposição Amazônia, no Sesc Pompeia; um perfil de Maria Firmina dos Reis, fundadora da literatura abolicionista no Brasil; um encontro com Adriana Barbosa, fundadora da Feira Preta e uma das principais vozes do empreendedorismo negro no país; um roteiro por espaços e projetos que praticam o acolhimento materno na capital paulista; o conto inédito As Substitutas, do escritor João Anzanello Carrascoza; e dois artigos que abordam conquistas e desafios da presença das mulheres indígenas na literatura.
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