Eu jogo, eu brinco, eu danço, eu sinto o outro, então eu sou

29/04/2025

Compartilhe:

Participantes da festa do Nego Fugido, na comunidade quilombola de Acupe, distrito de Santo Amaro (BA) (foto: Fabiano Maranhão).

Leia a edição de MAIO/25 da Revista E na íntegra

POR FABIANO MARANHÃO

Como falar de algo tangível, corpóreo, que as palavras não conseguem dimensionar? Como falar de cosmopercepções gestadas no vivido? Decidi compartilhar a voz do corpo–território, compreendido aqui como uma maneira de perceber o mundo a partir de si mesmo, das sensações e escrevivências de um campo onde as palavras são gesto e ato. Trago a perspectiva da compreensão negra, interessada em explicitar legados e tecnologias africanas, negritar saberes ancestrais, reverenciar a existência negra. A ancestralidade refere-se ao presente, não ao pretérito. É nossa responsabilidade individual e coletiva. 

Nessa perspectiva, compartilho minha experiência com a festa do Nego Fugido, patrimônio cultural da comunidade quilombola de Acupe, distrito de Santo Amaro (BA). Em 2024, tive a honra de vivenciá-la em seu local de origem. Tudo foi encantado: a organização e a articulação da viagem, o percurso, a chegada em Acupe, a acolhida em uma casa da comunidade, a ativação da rede local, os olhares curiosos sobre um corpo novo no pedaço, abraços, sorrisos. Embora fosse minha primeira vez ali, a sensação foi de reencontro.  

Participei do que foi permitido, não deixei passar nada, nem histórias contadas pelas pessoas mais velhas ou pelas crianças. Auxiliei no transporte de utensílios, no “cuidado de menino” – cuidando das crianças – na organização do espaço, caí no samba. Na preparação da festa, o samba corre solto. Aprendi, no seio familiar, que a responsabilidade de cada pessoa é a realização de todas, e assim se gesta o sentimento de pertença. Com esse cuidado e abertura para viver o ato, senti que as pessoas queriam me preparar, instruir, cuidar, iniciar.  

Fui convidado a apanhar folhas de bananeira. Pede-se agô – licença – para entrar na mata, pede-se agô para retirar as folhas secas dos pés de bananeiras, canta-se para amarrá-las e, com elas, se faz os saiotes utilizados na festa. A bananeira cumpre um papel importante na comunidade. Acupe foi e é uma região de resistência e luta. Entre as histórias, me contaram que, no período colonial, os senhores de engenho sacrificavam pessoas escravizadas “rebeldes”, e sacerdotes e sacerdotisas africanos, pessoas entendidas, enterravam seus corpos no fundo das fazendas, plantando uma bananeira em cima. A ideia era que a alma não fosse para o orum – céu  –, mas ficasse na comunidade para ser invocada nas batalhas. A invocação da ancestralidade na busca da liberdade.  

Nego Fugido é jogo, dança, ritualização, sentimento, afirmação da existência. Mais que uma expressão cultural negra, um sopro de resistência contra o esquecimento e o apagamento histórico. Cada passo dado e cada batida de tambor são afirmações do espírito de liberdade, de luta e de renovação. O Nego Fugido é uma revolução de corpos e almas que vai além do visível. A festa e a celebração se destinam a renovar a força, a reviver os saberes, o culto, o rito. Jogando e brincando, se territorializa o corpo, realimentando-o de força cósmica, do poder de pertencimento a uma totalidade integrada. 

Parafraseio Leopold Sédar Senghor (1906-2001), uma das figuras mais importantes da negritude, movimento que buscou afirmar a identidade negra diante da colonização e da opressão ocidental, com a frase que dá título a este texto: “eu jogo, eu brinco, eu danço, eu sinto o outro, então eu sou”. Ela ilustra a relação das pessoas africanas e de seus descendentes com o mundo, a relação entre o Eu e o Outro fora dos parâmetros da racionalidade europeia. Para a pessoa africana, há a simbiose, o conhecimento do outro. “Eu penso, então eu existo”, escreveu Descartes (1596-1650). Na cultura africana, se diz: “Eu sinto o outro, eu danço o outro, então eu sou”. Ora, dançar é criar, sobretudo quando a dança é a dança do amor. É esse, em todo o caso, o melhor modo de conhecimento. Jogar, brincar, dançar, celebrar, sentir são a democratização da existência, e experimentar em vez de falar sobre é o melhor caminho.  

Fabiano Maranhão é brincante, graduado em educação física, mestre em educação e integra a equipe da Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo. 

A EDIÇÃO DE MAIO DE 2025 DA REVISTA E ESTÁ NO AR!

Para ler a versão digital da Revista E e ficar por dentro de outros conteúdos exclusivos, acesse a nossa página no Portal do Sesc ou baixe grátis o app Sesc SP no seu celular! (download disponível para aparelhos Android ou IOS).

Siga a Revista E nas redes sociais:
Instagram / Facebook / Youtube

A seguir, leia a edição de MAIO na íntegra. Se preferir, baixe o PDF para levar a Revista E contigo para onde você quiser!

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.