Do latim ex-voto suscepto (“pela promessa realizada”), o termo “ex-voto” refere-se a pinturas, esculturas e outros objetos que pessoas devotas oferecem às suas divindades, em templos e locais de peregrinação, como forma de agradecimento à cura de uma doença – por isso, por exemplo, as esculturas de madeira na imagem acima, que remetem a partes do corpo afetadas por enfermidades – ou a outras graças alcançadas
A saúde, a fé e a arte vêm se encontrando e se atravessando no interior das mais diferentes culturas do planeta deixando, ao longo da história, um legado de artefatos e obras que constroem imaginários socialmente compartilhados e estéticas que, por vezes, perduram por gerações.
O Acervo Sesc de Arte Brasileira, a coleção permanente de arte do Sesc São Paulo – com obras alocadas nas unidades de todo o estado, em uma ação educativa contínua junto ao público –, conta com alguns trabalhos construídos no encontro desses três aspectos da experiência humana: a saúde, a fé e a arte.
No Sesc Guarulhos, por exemplo, há um painel (veja imagem acima), na área de convivência da unidade, com 183 cabeças, pés, mãos, pernas e braços esculpidos em madeira. Produzidos, provavelmente, entre as décadas de 1970 e 1980, essas peças tem um motivo religioso em sua origem.
A esses artefatos a historiografia da arte dá o nome de ex-votos – uma abreviação do latim ex-voto suscepto (“pela promessa realizada”). Nessa categoria, incluem-se pinturas, estatuetas e outros objetos “doados” às divindades como forma de agradecimento por um pedido atendido – ligado especialmente a questões de saúde, mas também a pedidos de outras naturezas, como aqueles que tem a ver com o sucesso no trabalho ou na vida amorosa.
Pintados, esculpidos ou modelados, ex-votos são imagens expressivas feitas com traços, por vezes, imprecisos. A autoria das peças dificilmente pode ser identificada pois a imensa maioria delas é confeccionada por “riscadores de milagres” e santeiros, pessoas que, em geral, não consideram a si mesmas artistas ou artesãos.
Detalhe de “Sem Título (Ex-Votos)” (1970/1980) | Esculturas em Madeira | 150 x 300 cm | 183 peças
“Cada peça é única por estar narrando uma história específica. Não há registros de ser ter visto uma ‘tabuinha votiva’ que fosse igual a outra, o mesmo ocorrendo nos ex-votos quando feitos em madeira. Dessa maneira, o fazedor de ex-voto se distancia do artesanato, no que diz respeito a seriações. Vale também acrescentar, que a arte dos milagres se configura como uma forma de expressão da arte popular. Nessa direção há a prevalência do senso estético criativo, também referenciado nas cenas do cotidiano,” explica a artista plástica e professora Ana Helena da Silva Delfino Duarte em sua tese de doutorado pela PUC-SP, Ex-votos e poiesis: representações simbólicas na fé e na arte.
É comum que museus e instituições de arte exibam ao público coleções de peças votivas. Essas composições muitas vezes não se prendem aos aspectos formais de cada peça, nem às questões técnicas do uso do material, mas sim à expressividade que esses objetos possuem.
Quanto aos ex-votos escultóricos, em particular, o Brasil é possivelmente o maior centro de excelência nessa forma de representação. São raros os santuários fora do país que possuam peças (pés, mãos, braços, cabeças e demais fragmentações do corpo) feitos em madeira.
Muitos artistas deixam-se influenciar pela categoria dos ex-votos na produção de suas obras. No Acervo Sesc de Arte Brasileira, há pelo menos três artistas que trabalham essa temática em suas criações: Macaparana, Geo e Iaperi de Araújo.
Maracapana
“Ex-Votos” (1983) | Macaparana | Pintura sobre tela colada em madeira | 50,5 x 65,3 cm
O pintor, desenhista e escultor José de Souza Oliveira Filho (Macaparana-PE, 1952), mais conhecido pelo nome de sua cidade natal, inicialmente pintava a aridez do sertão pernambucano nos anos 1970. A coleção do Sesc conta também com algumas produções do artista desse período.
A partir de 1973 – e por quase 10 anos –, suas obras passaram a apresentar a temática do ex-voto. No entanto, na obra de Macaparana, este objeto de devoção não é tomado como símbolo da religiosidade nordestina, nem mesmo como aproximação das manifestações culturais brasileiras, mas sim como uma pesquisa pictórica dos elementos de madeira cuja visualidade e materialidade encantam o artista.
Gradativamente, o tema do ex-voto é abandonado e Macaparana passa a reproduzir na tela somente as texturas da madeira, num processo crescente de geometrização.
Na tela acima, pertencente ao Acervo Sesc de Arte Brasileira, nota-se a preocupação do artista com a reprodução das texturas e nuances da madeira em sua pintura. Além da figura central do ex-voto, em que são perceptíveis os veios e sulcos da madeira, é possível notar que o fundo da obra também reproduz as rachaduras características de tábuas pintadas.
Geo
“Ex-votos (Capela e Santuário)” (2016) | Geo | Bordado sobre tecido | 90 x 111 cm
Geolagens Oliveira (São Mamede-PB, 1958), conhecido simplesmente como Geo, tem uma produção voltada à pintura, tomando como base a pintura em cerâmica e também o bordado. Suas obras buscam inspiração na cultura popular nordestina e nas tradições familiares.
Estimulado por gerações de sua família que praticavam o ofício do bordado, Geo aliou suas habilidades com linhas e agulhas às suas criações artísticas. Em 2016, recebeu o prêmio Destaque-Aquisição da 13ª Bienal Naïfs do Brasil (Sesc Piracicaba) pelas obras “Favela” (2014) e “Ex-votos (Capela e santuário)” (2016) – ambas de bordado sobre tecido.
A inspiração formal e estrutural da obra “Ex-votos (Capela e santuário)” (veja a imagem acima) provém dos objetos votivos de regiões da Paraíba muito conhecidas pelo artista. Nesta obra, elementos da memória pessoal e cultural estão presentes em cada um dos 20 fragmentos do painel têxtil. As linhas tracejadas de Geo aludem às capelas e igrejas que se tornaram locais de pagamento de promessas e dedicação de oferendas às graças alcançadas.
Iaperi Araújo
“Ex-Voto de Padre Cícero” (1998) | Iaperi Araújo | Acrílica sobre tela | 40 x 30 cm
Desenhista, gravador, crítico de arte, escritor e médico, Iaperi Soares de Araújo (São Vicente-RN, 1946) costuma trazer em sua produção artística representações de milagres, contos e relíquias da devoção popular. Na pintura acima, por exemplo, pertencente à coleção do Sesc São Paulo, notam-se elementos de proximidade com quadrinhos votivos.
Esses trabalhos costumam ser executados em pequenos formatos, quase sempre com dimensões inferiores a um metro. Os mais comuns apresentam tamanhos entre 30 a 40 cm, como é o caso desta tela, e, por isso, são conhecidos como “quadrinhos” mesmo – quando o suporte é a tela ou tecidos – ou “tabuinhas votivas” – quando o suporte é a madeira ou folhas metálicas.
Um dos elementos muito importantes também nas composições pictóricas votivas são as legendas, já que, em sua maioria, elas contextualizam o motivo da promessa, o intercessor e o agraciado. Note que a obra de Iaperi traz uma legenda no quadrante inferior direito da tela: “Mandado pintar pelo Dr. Gutemberg Costa em honra do Padre Cícero Romão Baptista”.
As pinturas votivas são essencialmente figurativas, privilegiando a representação da figura humana, seja do agraciado ou do intercessor, sendo mais comum o primeiro; e as composições, em sua maioria, sugerem cenas ou narrativas que acabam por ocupar boa parte do espaço compositivo. Percebemos essas características nesta obra de Iaperi.
Fotos: Everton Ballardin
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