Por Andrea Matos da Fonseca*
Seria muito importante que todos pudessem recuperar, nas suas histórias pessoais, o cuidado. Não aquele que se assenta sob uma lógica universal, mas o cuidar dos gestos que inauguram mundos. O cuidar como ritual cotidiano e diário que preserva e, também, celebra a vida.
Desde o nascer, é necessário encontrarmos um cuidado essencial e estruturante que nos introduz ao que não conhecemos. Nos constituímos nessas relações do cuidar, como humanos dependemos e estamos imersos nelas. Dia-a-dia, desde os primeiros momentos de vida, o desvelo sustenta a chegada da novidade que cada bebê representa e traz para esse lugar. Mães, pais, irmãs e irmãos, avós, tias e tios, vizinhos, profissionais diversos, entre outras pessoas que estão envolvidas no ato de cuidar, reforçam a necessidade de manutenção de vínculos estáveis que promovem a segurança afetiva de bebês e crianças na primeira infância enquanto alicerces que serão fundamentais e que vão lhes constituir como sujeitos nas suas maneiras de sentir e conhecer a si mesmos e ao mundo.
O cuidado é fundamental nas infâncias. Olhos e ouvidos, palavras e sorrisos, toques e gestos vão demonstrar o interesse em um tempo afetuoso que caracteriza a relação privilegiada entre bebês, crianças e seus cuidadores. É a partir desses movimentos e ocupação conscientes, dessa delicadeza entre as iniciativas e o aguardar as demonstrações de bem-estar, que afirmamos duas significações preponderantes do ato de cuidar: a primeira, zelo por alguém; e a segunda, do gesto que assegura a esse outro que ele é uma realidade valiosa para quem lhe cuida.
As crianças na primeira infância dialogam com essas significações que lhe atribuem e, gradativamente, empurram essa “terra fofa e receptiva” que lhes acolheu para formar seus saberes e romper outros limites. O cuidar reservaria, assim, essa capacidade de fazer com que alguém possa formar e transformar a sua própria existência.
Sendo assim, o cuidado implica tão profundamente na formação das subjetividades que pode representar a liberdade e a resistência que vamos construir para lidar com a “terra batida” dos caminhos, aquela a ser percorrida e enfrentada nas padronizações e normatizações que diferentes contextos vão tentar nos impor.
Então, o que dizer dessa desatenção contemporânea com as expressões e concretizações do cuidar? Será uma situação ocasional?
Se pensarmos que o cuidado exige proximidade, tempo e envolvimento, em nome de preocupações recorrentes e implacáveis com o capital e o lucro têm-se um certo desprezo, principalmente, por aqueles que não são “produtivos”. Essa ótica mercadológica pode ser compreendida como forma de opressão, funcionando para aprofundar a desesperança, as desigualdades e os marcadores sociais de diferença que recaem, principalmente, sobre raça, gênero e classe.
De acordo com NCPI – Núcleo Ciência Pela Infância, Folha de São Paulo e BBC, o contexto da Pandemia de Covid-19 colocou em evidência esse mecanismo no triste número de mais de 120 mil mortos alcançados no Brasil até agosto de 2020, no qual cuidadores de crianças até 6 anos representam uma grande parte desses mortos ou, ainda, sabidamente estão vivendo em situação de extrema vulnerabilidade.
Em um cenário de dor e luto que faz do isolamento físico uma necessidade, temos também a fragilização generalizada das redes de apoio, aumentando o sofrimento psíquico entre os diferentes atores sociais do cuidado. São inúmeros os profissionais e não profissionais atuantes no combate da Covid-19 que apoiam cuidadoras e cuidadores que podem estar sem os equipamentos de proteção individuais necessários, sem suporte para sua saúde emocional e, mesmo, sem o socorro médico necessário. (Mais informações no site do Conselho Federal de Serviço Social e Conselho Federal de enfermagem).
Se pensarmos no cuidar como uma atividade relacional estruturante da sociabilidade e das visões de mundo na primeira infância, as repercussões da desatenção aos cuidadores e do abandono a seus próprios recursos são aspectos que inserem na pauta e na agenda pública a necessidade de recuperarmos a perspectiva do cuidado como necessário a nosso processo de humanização, colocando-o em voga, mais do que em qualquer outro momento, inclusive, nos campos do acesso e direito.
Pensar na dialogicidade do cuidado com a sensibilidade e o exercício da cidadania, é enxergarmos no ato de cuidar essa premissa fundamental para o bem-estar, a qualidade de vida e a autonomia. O cuidado, assim, pode ser entendido como uma ação que faz com que esse outro possa voltar-se reflexivamente para si, encontrar seus desejos para além de suas necessidades biológicas e, com isso, também conquistar a condição e oportunidades de instaurar alguma coisa também nova e imprevista.
Neste sentido, podemos dizer que o cuidado se configura como reverberações desse gesto expressivo com potência para inaugurar os sentidos do mundo e que por reciprocidade alcança o outro. E, assim, reservaria essa possibilidade de nos retirar de uma situação banalizada de existência, promovendo a afirmação da singularidade de cada ser; um gesto como potência, reconhecendo o que nos alcançou para “exercitar” a possibilidade de singularizar outros também.
Neste entendimento, podemos nos aproximar das experiências do cuidar na primeira infância para refletirmos sobre qual mundo queremos inaugurar para os bebês, enquanto cenário comum de práticas, interações e resistências; fortalecendo o vigor do ato de cuidar, pela sua transitividade entre o si mesmo, o outro, as coisas e o mundo, como uma experiência que pode elaborar e ampliar o mapa dos sentidos e significações de que dispomos: que todos tenham direito garantido ao cuidado e, que ao contar suas histórias, o cuidado sempre esteja presente como matriz e um outro nome da esperança.
* Andrea Matos da Fonseca é pedagoga, mestre e doutora em Estética e História da Arte (USP) e assistente na Gerência de Estudos e Programas Sociais do Sesc São Paulo, no Núcleo de Infâncias e Juventudes.
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