No final de 2016, o departamento responsável pela elaboração de dicionários na Universidade de Oxford elegeu como palavra do ano a expressão “post-truth” (“pós-verdade”). O termo se refere à prevalência de crenças pessoais e o apelo à emoção no desenvolvimento da opinião pública – em lugar de fatos objetivos e da apuração jornalística. Analistas passaram a utilizar o conceito para tentar explicar o cenário por trás de fenômenos sociais e políticos como a eleição presidencial dos Estados Unidos e o movimento pela saída do Reino Unido da União Europeia.
No Brasil, as eleições de 2018 popularizaram por aqui uma outra expressão que também tem sua origem na língua inglesa e aponta para um instrumento que é cara da pós-verdade: são as chamadas fake news, ou simplesmente, notícias falsas. O assunto tem sido tema de algumas programações nos Espaços de Tecnologias e Artes (ETAs) das unidades do Sesc São Paulo já há alguns meses. Aproveitando a última aula do curso Investigando Fake News, que aconteceu no ETA do Sesc Belenzinho de 11/10 a 01/11, a EOnline conversou com a pesquisadora Natália Neris, coordenadora da área de Desigualdades e Identidades do InternetLab. Natália é também doutoranda em Direitos Humanos na Faculdade de Direito da USP.
A disseminação deliberada de boatos, mentiras e desinformação com o objetivo de obter algum tipo de ganho com isso (político ou financeiro) não é algo novo. Por que o tema vem ganhando tanta relevância nos últimos anos (e até recebeu uma nova nomenclatura – fake news ou ‘notícia falsa’)?
NN: A popularização desse termo tem a ver com as eleições americanas [de 2016] e suspeitas de que desinformação, notícias falsas ou boatos, todo esse guarda-chuva, teria influenciado esse processo político. Nesse contexto, surge o termo fake news – ou “pós-verdade” também. Mas, como você coloca, é um problema bastante antigo. A gente discutiu [no curso] um pouco como, principalmente no campo da política, é muito comum essa desestabilização do outro lado, do adversário, a partir do compartilhamento de notícias que não são verídicas, mas acho que a atualidade ou a preocupação com esse tema [hoje] tem a ver também com a popularização da internet, com a velocidade e com o impacto que essas notícias podem ter em processos políticos importantes – por exemplo, a última eleição [brasileira].
Há conteúdos compartilhados nas redes que tem tudo a ver com a maneira com que uma pessoa entende um assunto, que parecem ser verdadeiros – mas não têm exatamente uma fonte conhecida ou mais detalhes a respeito. Por que deve-se investigar mais a fundo esse conteúdos antes de passá-los adiante?
NN: Essa é a principal, talvez, a primeira dica. Alguns estudos apontam que as notícias falsas têm mais poder de propagação porque, em geral, tendem a confirmar os nossos pontos de vista. É como se fosse um viés. A gente tende a concordar ou acreditar naquilo que a gente já acredita. Então, [devemos] estar atentos também ao fato de que bom, se isso é exatamente algo que eu acredito politicamente, socialmente… já [devemos] desconfiar aí. […] Esse ponto é muito importante porque todos nós temos esse viés, invariavelmente.
Fala-se muito também na importância de se verificar quem, de fato, criou aquele conteúdo que, por vezes, amigos ou familiares compartilham conosco. Mas como fazer isso? E como saber em que fontes podemos confiar?
NN: Um primeiro ponto importante é que o critério não deve ser exatamente [optar por] uma mídia nova ou uma mídia antiga. Mídias tradicionais também podem cair em equívocos. O ponto é você identificar, de fato, a tradição desse meio de comunicação no sentido de: ele traz evidências? Traz dados? Traz fontes? Uma multiplicidade de entrevistados? Essa notícia saiu só nesse veículo de comunicação ou saiu em outros veículos de comunicação também? – porque a chance de uma notícia ser falsa é muito grande se ela é reportada somente em um site ou portal. Muitas vezes também, a desinformação se utiliza do layout [aparência] de um meio de comunicação tradicional com [um conteúdo de] notícias que não são verdadeiras. Você encontra o título [do site] com alguma abreviação, com algum .org ou .com que não é real. Então, na verdade, quando você olha uma notícia, você tem que ter um olhar quase de raio-X, no sentido de olhar título, layout, quem assina essa matéria – geralmente, [notícias em] portais e sites que não são confiáveis não têm autoria, não têm nenhuma forma de você entrar em contato, não têm e-mail, não têm nenhum tipo de verificação. Em geral, também, uma característica muito comum de notícia falsa ou que está nesse processo de desinformação são os títulos que chamam muito a atenção. A gente falou [no curso] de títulos bombásticos. Isso acontece porque a veiculação de notícias falsas é também bastante lucrativa. O que, na verdade, o autor da notícia quer é que você clique. A partir do momento em que você clica, você migrou para esse portal ou pra esse site e você está gerando dados [que alimentam] anúncios. Então, tem toda uma estrutura econômica e um interesse econômico por trás.
Há outras armadilhas comuns por trás de conteúdos inverídicos que muita gente acaba acreditando e, eventualmente, até compartilhando com outras pessoas?
NN: No guarda-chuva da desinformação, além dos boatos, das notícias falsas, há também as notícias descontextualizadas. São notícias verdadeiras, porém de dez anos atrás. Por exemplo, Taxa de desemprego dispara – mas a notícia é de 2007! A gente não pode classificar exatamente como fake news. É uma notícia verdadeira, mas ela está fora de contexto. Então, uma dica importante é verificar a data, além do autor.
Há também uma confusão, às vezes, entre opiniões divergentes e fake news?
NN: Acho que um ponto importante – e uma novidade que a internet traz também – é uma pluralização das vozes no debate público. Antes você tinha uma mídia tradicional dominando o debate. Você tinha uma postura bastante passiva em relação à notícia que se recebia. Hoje, qualquer um pode escrever um texto, pode se colocar. E isso é muito bom, muito relevante. Mas a diferenciação que a gente não está conseguindo fazer hoje em dia é, por exemplo, entre uma notícia, uma matéria que é fundamentada, está com base em dados, evidências – na qual o jornalismo foi exercido profissionalmente – e, por exemplo, um artigo de opinião ou uma coluna. Esses textos são compartilhados como se fossem a mesma coisa.
O que tem sido feito para combater essa onda de desinformação?
NN: O que eu contei um pouco para eles [os alunos] é que são várias medidas que têm sido tentadas para combater esse problema. […] Uma delas tem a ver com as mudanças nas políticas das plataformas. O Facebook, por exemplo, no começo desse ano fez uma parceria com agências de checagem. Se uma notícia é suspeita de não ser real, ela é encaminhada para essas agências que fazem verificação – mas não exatamente censura. Essa notícia só vai vir com um alerta de que passou pelo processo de verificação. Mas o Estado também vem pensando muito nisso na perspectiva de que, quando isso começa a se popularizar – e trata-se de uma característica do debate brasileiro sobre problemas sérios – se diz: bom, vamos criminalizar! Se procura criar uma lei para punir. E tem uma complexidade aí também. Somente nesse ano, a gente tem, pelo menos, mais de 10 projetos de lei tramitando na Câmara e no Senado para lidar com o assunto. Mas é super complexo. A gente não consegue nem definir o termo notícias falsas, por conta dessa variedade [de manifestações] em que ela aparece, e a alternativa penal, muitas vezes, pode desembocar num contexto de censura, de limitação de liberdade de expressão. Então, não é uma problemática simples de se resolver. Não, a gente cria uma lei e pune com 3 anos de detenção. Bom, mas quem é que você pune? Quem escreveu? Quem disseminou? Quem compartilhou? Então, é difícil. [Fala-se também na opção de] deixar com as plataformas. Quando uma plataforma perceber que uma notícia é falsa, ela tem que tirar. Então a gente delega para uma empresa definir o que circula e o que não circula de informação? É bastante complexo. É difícil de resolver. E acho que, por isso também, as alternativas podem ser múltiplas. Mas é importante que cada um de nós se veja como um ator muito responsável nesse processo. Existe uma fala muito comum entre nós: ah, mas eu só compartilhei. Na verdade, o compartilhar não é só, o compartilhar é muita coisa. Ele alimenta esse ambiente de circulação de notícias. E eu acho que a gente se sentir corresponsável também por como a informação circula – já que os modos de comunicação mudaram – me parece importante a gente discutir sobre isso. É quase como o cidadão comum ter uma preocupação como a de um jornalista. Afinal, só compartilhar não é só. É muito.
Qual a melhor abordagem com amigos, parentes e conhecidos quando se nota que, intencionalmente ou não, acabaram compartilhando notícias e informações que carecem de fonte segura e apuração criteriosa?
NN: Um sistema de comunicação em que todo mundo fala é muito bom, mas, ao mesmo tempo, essa comunicação pode se dar de um jeito bastante bélico. […] A gente falou um pouco também [nas aulas] sobre a falácia – como a desinformação se aproveita de relações de causa e efeito que não fazem sentido, de afirmações descontextualizadas, de opiniões que usam uma argumentação muito simplista. Então, eu acho que um meio que pode ser importante é esse diálogo a partir do que essa outra pessoa te traz, questionando um pouco as premissas e os argumentos. É um exercício muito difícil, quase que de empatia. Você precisa reconhecer que, em algum momento, você vai estar errado. Mas acho que tentar se comunicar de forma não-violenta e não-personificada, não focando na pessoa, mas no que ela traz, é um bom caminho.
O uso, por vezes, indiscriminado do rótulo de fake news pode gerar um desgaste do termo e enfraquecer o combate à desinformação?
NN: O conceito de fake news não consegue abarcar os diferentes tipos de desinformação que você pode ter numa sociedade: uma notícia descontextualizada, um artigo de opinião, um boato ou uma matéria que não traz evidências. São vários tipos. Quando a gente unifica todos esses tipos de situações e diz ah, tudo é fake news e, por exemplo, tenta resolver isso penalmente, você não vai conseguir lidar por conta da complexidade. Então, eu acho que se corre um risco, sim, de desgaste porque a gente coloca coisas muito diferentes numa mesma cesta. Isso faz com que, por exemplo, essa problemática possa ser capturada pela mídia tradicional, que tinha o monopólio da informação antes, e [ela] diga: olha só! Está vendo o que a internet fez? Quando era mídia tradicional, era melhor. Então, essa unificação de tudo isso sob um mesmo conceito pode ser absorvida por diferentes interesses, que podem ser escusos: um legislativo que queria trabalhar com a censura e com a limitação da liberdade de expressão, uma mídia tradicional que quer de volta o monopólio… Isso pode prejudicar, por exemplo, uma mídia alternativa que está tentando construir novas narrativas, novos discursos. Então, pode ter um efeito muito deletério no debate público. No fundo, [a desinformação] é um problema que sempre existiu. A gente precisa lidar agora com ela com crítica, com letramento digital, com tudo isso que a gente ainda não tem de uma forma muito intensa, por exemplo, no contexto brasileiro. A gente tem uma dificuldade enorme com interpretação de texto, com acesso à informação. Então, sim, acho a gente corre o risco de desgastar porque a gente trata um problema muito complexo com um termo só e, geralmente, quando a gente tem um problema muito sério, a gente acaba buscando soluções muito fáceis pra ele. E, claramente, não é um problema com uma solução única ou com uma solução fácil.
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Nos Espaços de Tecnologias e Artes do Sesc São Paulo, na capital, no litoral e no interior do estado, entre outras atividades, são ministrados também cursos e oficinas voltados à segurança e ao letramento digital. Saiba mais sobre o ETA
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