Leia a edição de fevereiro/23 da Revista E na íntegra
Por Luna D’Alama
Quando Chico Felitti saiu de Jundiaí, no interior paulista, aos 17 anos, para estudar jornalismo na capital, jamais poderia imaginar que passaria de entrevistador a entrevistado. Hoje, o ex-repórter do jornal Folha de S.Paulo – onde trabalhou por uma década, cobrindo diversas áreas, até mesmo a guerra da Síria – é reconhecido nas ruas, dá autógrafos, tira fotos e grava mensagens em vídeo para os fãs. O sucesso começou em 2017, depois que Felitti deixou de fazer roteiro de programa de humor para o canal de televisão a cabo Multishow e se deparou com a história de vida do cabeleireiro Ricardo Corrêa da Silva (1957-2017), mais conhecido como “Fofão da Augusta”.
Por esse trabalho, publicado no BuzzFeed e transformado em livro – Ricardo e Vânia (Todavia, 2019) –, o escritor conquistou os prêmios Comunique-se e Petrobras de Jornalismo, além de ter sido finalista do Jabuti, em 2020. Em junho do ano passado, outra grande reportagem ganhou notoriedade, desta vez em áudio: o podcast A Mulher da Casa Abandonada. A história chegou a ter três milhões de ouvintes por episódio, repercutindo no país inteiro.
Em janeiro de 2023, Felliti lançou seu mais novo trabalho investigativo, o podcast narrativo O Ateliê. O documentário acompanha as acusações de ex-alunos de uma escola de artes no centro de São Paulo. Em dez episódios, que vêm sendo lançados semanalmente, o jornalista revela as surpresas da investigação que durou quase um ano e ouviu mais de 50 entrevistados. “É uma história de crime com violência, abuso psicológico e exploração financeira, mas também uma história de coragem e de fraternidade”, resume.
Além dos programas em formato de podcast, Chico aposta suas fichas nas narrativas em prosa: é autor de A casa: A história da seita de João de Deus (Todavia, 2020), Elke: Mulher Maravilha (Todavia, 2021) e o mais recente Rainhas da Noite (Companhia das Letras, 2022), sobre uma máfia comandada por travestis em São Paulo, lançado em dezembro de 2022, no Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo.
Fã das jornalistas Mônica Bergamo, Eliane Brum e Daniela Arbex, ele diz que, naturalmente, se interessa por personagens que estão à margem da sociedade. Neste Depoimento, fala sobre novos projetos, êxitos, desafios e diferentes formatos para se contar uma história. E antecipa que logo vai estrear mais um podcast, parecido com Além do Meme.
Meu novo podcast conta a história de uma seita, em São Paulo, cujos discípulos são jovens mi ou bilionários – incluindo a filha de um dos homens mais ricos do Brasil, que está lá há 13 anos. O líder [o artista visual Rubens Espírito Santo, dono do Atelier do Centro] coopta jovens e, segundo o relato de dezenas deles, agride, violenta, estupra, achaca, marca iniciais a ferro quente. É um lugar que se diz uma escola [de arte] ativa e de contracultura, em que as pessoas entram e nunca mais saem, e onde se praticam todos os tipos de crimes. É algo mais ou menos conhecido na cidade, existe há 20 anos, mas ninguém sabia que era uma seita. Uma dessas pessoas, que eu não conhecia, deixou um bilhete na minha portaria falando: “Eu saí de uma seita”. Acompanhei-a [a artista Mirela Cabral] por um ano, e a história foi ganhando força, enquanto ela foi juntando outras pessoas que estudaram com ela, e a denúncia cresceu. Aí fiz uma investigação dessa figura [chamada de “mestre” pelos alunos] e encontrei uma antiga namorada dele que afirma ter sido estuprada. Descobri também outras pessoas do passado dele que não estão nessa denúncia [da escola], mas que confirmam [vários crimes]. Ouvi mais de 50 pessoas, assisti a vídeos, e todas me disseram: “Sim, é verdade”. Entrevistei o sujeito, e ele não confirmou nem negou as acusações. Foi uma das minhas experiências mais difíceis e cansativas de acompanhar, um périplo no deserto. Mas a série entrou no ar já pronta. Eu só começo a publicar quando está finalizada.
[O sucesso do podcast A Mulher da Casa Abandonada] foi uma conjunção de fatores, um alinhamento astral que nunca tinha acontecido, e acho que nunca mais vai se repetir. Foram 200 mil ouvintes no primeiro episódio, na terceira semana estava com 3 milhões por episódio, algo sem precedentes no Brasil. Caiu no TikTok, então chegou a um público muito jovem. Um helicóptero cobriu ao vivo a invasão de duas equipes da polícia, que não sabia por que estavam entrando na casa, enquanto uma multidão gritava como se fosse um jogo de futebol. Essa história foi dando cambalhotas, virando outras histórias. Saiu muito do controle. O final foi um episódio de Black Mirror [série da Netflix], uma coisa surreal, a definição de espetacularização. E começaram a chegar cobranças de várias partes, do tipo: “Mas ela não vai ser condenada? Você não vai fazer nada? Não vai salvá-la? Não vai tirá-la da casa?” Eu respondi que não, não é essa a minha atribuição. Fiz tudo que estava ao meu alcance, mas não sou a Justiça. Ela [Margarida Bonetti] falou, foi ouvida, consentiu que saísse [o podcast]. Só que ninguém estava preparado para o que aconteceria depois. O que me deu bastante alento, quando tudo parecia ter virado uma insanidade, foi que começaram a sair as denúncias de suspeita de trabalho análogo à escravidão, e os números duplicaram ou triplicaram em alguns estados. Isso é garantia de que passei a mensagem que queria, pois meu intuito sempre foi falar sobre um caso muito peculiar para falar do Brasil inteiro. A casa é uma analogia do país, da nossa elite, da legislação trabalhista, da impunidade de quem é rico, de como o Estado falha. [A febre] passou como veio, a internet tem memória de peixinho. Em duas semanas, acabou. Entre mortos e feridos, conseguimos sobreviver.
[Rainhas da Noite] é o livro mais importante da minha vida. Ele saiu primeiro [em setembro de 2021] como audiolivro e passou por um processo de adaptação [para texto] e de pesquisa de imagens. Consegui fazer o livro a distância, cada entrevistado(a) num canto do mundo. Ouvi mais de cem fontes. Tive acesso a gravações de festas e filmes da época, muitas fitas VHS. Precisei arranjar um aparelho, comprei na internet. Esses vídeos me ajudaram a narrar falas, interações e a entender como era aquele universo. O restante foram fotos e conversas. Esse livro nasceu de um contato que eu tinha desde os 17 anos. Eu era muito próximo da Kaká di Polly (1959-2023) e dessa galera. Minha noite sempre foi a do Centro [paulistano], essa mais decadente, tipo [Largo do] Arouche, Rua Vitória. Por quase 20 anos, eu ouvi anedotas. Quando a editora me falou para eu escrever o livro que quisesse, pensei que poderia ser sobre essa máfia comandada por travestis em São Paulo, entre o fim dos anos 1970 e o começo dos anos 2000. Isso aconteceu aqui, essas pessoas viveram isso. Foi um tiro no escuro, mas no final foi inacreditável. Parecia um fusca de palhaços, não paravam de sair coisas.
Algumas histórias que conto no meu novo livro [Rainhas da Noite] tinham versões completamente diferentes, e preferi incluir todas. Toda história tem muitos lados. Esse é o das travestis. Muitas vezes, a escrita é presunçosa e acha que vai responder tudo. É preciso descer um pouco do salto. Prefiro trazer versões distintas e dizer: “Acredite em alguma, não acredite em nenhuma”. A construção de uma história leva o cimento da memória. E a história oral é isso, baseada na nossa memória. A memória, por sua vez, é uma coisa escorregadia. Acho, inclusive, que o livro ficou mais rico ao contemplar três versões [para um mesmo fato], por exemplo. Essa história toda é baseada praticamente só em história oral. Foi tão pouco documentada, relegada ao esquecimento, jogada para as margens. Procurei muito, mas quase não havia documentos. Encontrei pouquíssimas notícias de jornal, fotos. Então, resolvi tecer uma teia de memórias de pessoas que viveram tudo isso. Uma delas [Miss Biá, “matrona de todas as transformistas, travestis e drag queens de São Paulo”, a quem o livro é dedicado], semanas depois de a gente ter passado dias conversando, morreu de Covid-19. E aí me dei conta de que essa história não registrada poderia ir embora se não fosse contada com alguma urgência. Para mim, cada história já nasce com cara, cor e cheiro. É assim que sei se vai virar um livro ou podcast.
Talvez seja hora de a gente, na literatura, começar a falar sobre silêncio [ou violência] arquival. A gente não conta histórias porque elas já não foram contadas. E, por isso, não temos muito repertório de pesquisa, não temos registros nem documentos. Logo, a gente não escreve mais sobre isso. E esse ciclo nunca termina. Então, [é importante] começar a ter interesse, esforço e investimento real em histórias “primeiras”, que não nasceram a partir de derivados oficiais. São histórias que estão na mente das pessoas, nos diários de quem os escreveu. Algumas pessoas de quem falo no novo livro não tinham nem certidão de nascimento, nem RG. Por mais que sejam pessoas completamente diferentes, todas [Ricardo Corrêa da Silva e as travestis do Centro paulistano] beiravam o esquecimento. Ricardo e Vânia (2019) e Rainhas da Noite (2022), para mim, são uma coisa só, um é meio a continuação do outro. [Espero] que a gente mude um pouco o tipo de exigência que existe para escrever um livro ou fazer um documentário, porque há um crivo que privilegia que se contem histórias de determinados grupos em detrimento de outros. Por mais que isso não seja algo consciente, malévolo ou pensado, é como funciona na prática. Acho que existem muitas histórias que precisam ser contadas, que fariam bem para o mundo e ressoariam, encontrariam muita gente [disposta a ouvi-las].
A verdade é que 90% dos meus investimentos não rendem. Você começa a apurar, investigar uma coisa, achando que é aquilo, e não é. Muitas vezes, vai para o lixo. Se não sustenta um livro ou um podcast, não tem muito onde usar. Mas não existe tempo perdido, porque você conhece gente que, dali a dez anos, vai te ajudar. Você lembra de uma história que, daqui a pouco, poderá ser usada em outra história. O que sai é a ponta do iceberg. Adoraria só escrever o que publico, mas escrevo dez vezes mais. Recebo muita coisa, adoro receber mensagens. Vivem me dizendo para contar histórias de moradores de rua. Tento ler e responder tudo, mas tem muita coisa que não se confirma. Quando se confirma, eu seguro. E acho também que tem uma relação meio esotérica, meio mística, com o que vai para a frente e o que não vai. Há histórias maravilhosas que renderiam muito, mas nunca fiz porque estava de cabeça em outra apuração, ou senti que não era para mim. Todo mundo tem boas histórias. E é muito frustrante não poder abraçar tudo.
Acho que é uma fraqueza [me colocar nas histórias], mais do que uma força. Mas é só quando uma história realmente não para em pé que me incluo nela, ou confidencio alguma coisa que estou sentindo. Por exemplo, a Mulher da Casa Abandonada não teria ficado de pé se eu tivesse tentado contar de uma maneira objetiva. Não existe objetividade na “obsessão” por uma vizinha. Eu achava [inicialmente] que me deparava com uma personagem parecida com o Ricardo [Corrêa da Silva, apelidado de Fofão da Augusta]. Essa frustração faz parte da história, e eu não podia escondê-la. Ainda fico muito tímido de me colocar [nas narrativas], mas, quando interfiro na história, preciso me responsabilizar pelos meus atos. Fico megaconstrangido de me expor, porque venho de uma escola [de jornalismo] objetiva, imparcial, com um manual de redação severo. Mas essas histórias não nascem imparciais, e sim subjetivas. Então, acho que troco o sentido de objetividade pelo da honestidade, para tentar pintar um retrato o mais completo possível e admitir que erro, que sou humano. Não consigo mais fazer esse jornalismo que se acha dois dedos acima do chão.
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