Soluções baseadas na natureza apontam caminhos para a promoção da biodiversidade nos centros urbanos
Por Maria Júlia Lledó
Antes de se mudar para Altamira (PA), todas as vezes em que a jornalista e escritora Eliane Brum viajava para a Amazônia e retornava ao seu apartamento em Porto Alegre (RS) ou São Paulo (SP), relatava a impressão de ter seu corpo confinado no espaço de dois quartos. “Quem entra na floresta pela primeira vez não sabe o que fazer com os sentidos que sente, com as partes do corpo que desconhecia e que de repente nunca mais a deixará”, descreveu em Banzeiro òkòtó – Uma viagem à Amazônia Centro do Mundo (Companhia das Letras, 2021). Na metrópole, Brum havia se acostumado a “chavear-se por dentro”, e ter seu corpo restrito, comprimido. A sensação descrita pela autora ilustra também o sentimento compartilhado por parte da população que vive em centros urbanos e que ainda acredita que a natureza é um parente distante que visitamos somente nas férias.
No entanto, cá estamos: matérias orgânicas compostas de 70% de água, dependentes da energia do sol, dos alimentos que brotam da terra, dos animais e insetos responsáveis pela polinização de plantas e por outros ciclos vitais de um ecossistema do qual, sim, somos integrantes. Habituados à expressão “selva de pedra”, esquecemos que cidades como São Paulo também são habitadas por uma diversidade de espécies, e que sob o asfalto correm mais de três mil quilômetros de rios e córregos. Mas, será que temos consciência do nosso habitat? Como estamos nos relacionando com a fauna e a flora urbanas, e que ações podemos realizar, e reivindicar, pela biodiversidade nas metrópoles?
Na última década, o conceito de Soluções baseadas na Natureza (SbN), aplicado nos centros urbanos, vem ganhando visibilidade mundial. Embora sua essência seja praticada há mais tempo, o objetivo é trabalhar pela resiliência urbana das cidades [Leia a Entrevista com o urbanista mexicano Erik Cisneros, nesta edição] a partir de projetos sustentáveis como: jardins de chuva, parques lineares, restauração de encostas e agricultura urbana. “De modo geral, o conceito de SbN propõe que os desafios relacionados ao meio ambiente, à biodiversidade e à sociedade devem ser abordados de forma conjunta, a partir de soluções sinérgicas a estas problemáticas”, descreve a Revista LABVERDE, do Laboratório VERDE da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), publicada em dezembro de 2021.
Iniciativas que partem da sociedade tomam a dianteira nesse cenário e envolvem tanto a população quanto o poder público a partir da premissa: “os problemas são globais, mas a ação precisa ser local”, como costuma dizer o engenheiro e permacultor Guilherme Castagna, sócio-fundador do Fluxus Design Ecológico. Em 2020, o Fluxus projetou e apoiou a implantação de jardins de chuva na esquina da Rua Décio com a Rua das Uvaias jardins de chuva nas ruas das Uvaias e Décio, no bairro Vila Mariana, zona sul de São Paulo, em parceria com o Instituto Ecobairro, a Subprefeitura da Vila Mariana, o Sesc Vila Mariana, moradores do bairro e outras instituições.
Considerado uma SbN, o jardim de chuva contribui para a filtração das águas pluviais no solo, minimizando alagamentos e promovendo a melhoria do microclima, ao reduzir a temperatura do entorno e aumentar a umidade e a qualidade do ar. Essa alternativa também fornece abrigo e alimento a aves e insetos e estreita a relação entre a população e áreas verdes. Hoje a cidade de São Paulo conta com 228 jardins de chuva distribuídos nas zonas norte, sul, leste, oeste e centro, segundo dados da Prefeitura de São Paulo. Um número que precisa se alastrar, dadas as proporções da cidade.
Construído num nível abaixo da rua, esse tipo de projeto leva em consideração diversos estudos que, de acordo com o engenheiro, incluem: tipo de solo, capacidade de filtração, espécies de plantas e arranjo de plantio, além de maneiras de proteger e conectar todos esses elementos para que a água sempre tenha um fluxo. “É incrível quando a gente oferece oficinas em espaços abertos e atividades que envolvem as pessoas, bem como capacitá-las para levar essas propostas adiante. Outros, curiosos, colocam a mão na massa, vivenciam o escavar, arrancam uma capa de asfalto e olham o pedaço de terra embaixo, que não via a luz há 40, 50 anos. Isso é muito poderoso, porque transforma a percepção da pessoa, de um jeito que ela nunca mais vai olhar para um asfalto e para um terreno livre da mesma forma. E ela vai compartilhar esse entendimento com outras pessoas”, observa Castagna.
Outra ação que busca revelar a biodiversidade do espaço urbano e, principalmente, engajar mais pessoas na criação de áreas verdes, foi criada pelo ambientalista Nik Sabey em 2016. A iniciativa Novas Árvores Por Aí realiza, entre outras atividades, plantios coletivos, cultivando espécies nativas da Mata Atlântica em seu habitat natural. Do hobby de plantar mudas a caminho do trabalho ou nas horas de folga, Nik amadureceu a ideia de somar mais parceiros para potencializar suas ações. “O Novas Árvores vem para sugerir uma postura ativa. Quando a gente fomenta o plantio e faz mutirões, principalmente através das redes sociais, a ideia é que isso reverbere, que as pessoas se sintam capazes de replicar em seus bairros e cidades”, explica.
Entre as realizações do Novas Árvores está o Largo das Araucárias, cultivado em 2016, nos moldes de uma floresta de bolso, próximo ao Largo da Batata, zona oeste da cidade. A ação realizada junto ao paisagista Ricardo Cardim, teve também a parceria do arquiteto Sergio Reis, das iniciativas Flores no Cimento, Árvore Generosa, Fábrica de Árvores, e de voluntários, além do apoio da Subprefeitura de Pinheiros, que permitiu o plantio coletivo em dois pequenos terrenos. Num deles, inclusive, chegou a funcionar um posto de gasolina. “Na época, acho que plantamos 300 árvores, mas a intenção da floresta de bolso é que as espécies possam ir se substituindo, ou seja, algumas têm uma vida mais curta exatamente para proporcionar uma competição com outras. Dessa forma, uma acelera o crescimento do grupo”, conta Nik. Em poucos meses, os transeuntes viram se formar um oásis verde em meio ao concreto. Hoje, o ambientalista contabiliza, aproximadamente, 150 árvores no local, entre araucárias, figueiras, jatobás, araçás, e até mesmo uma Figueira das Lágrimas, “uma das árvores mais antigas na cidade, de que se tem registro”, destaca Nik.
Sem ajuda do poder público ou de iniciativas da sociedade civil, o administrador de empresas aposentado Hélio da Silva empreendeu um voo solo há 20 anos. Uma cruzada pela ampliação e preservação da Mata Atlântica às margens do Córrego Tiquatira, no bairro da Penha, zona leste da cidade, que resultou na criação do Parque Linear de Tiquatira, primeiro desta modalidade na capital. Seu Hélio, como é conhecido, brinca que, assim como o personagem-título do filme Forrest Gump (EUA, 1994), sua história parece, à princípio, obra de ficção.
É que desde 2003, ele vem plantando, regando e cuidando, ininterruptamente, de milhares de espécies nativas no entorno das avenidas Governador Carvalho Pinto, Doutor Assis Ribeiro e Cangaíba, ao longo do córrego. No começo, das 200 mudas que cultivou, todas foram arrancadas. Depois, fez o plantio de outras 400 mudas, que também foram extirpadas. Mas ele não desistiu. “Eu via que o meu bairro estava ficando cada dia mais degradado, uma região paupérrima em infraestrutura, em verde. Pensei: se eu moro ali, por que não posso fazer algo a respeito? Não foi um desafio, foi uma missão. Eu quero trazer a Mata Atlântica, outra vez, para o espaço que sempre foi dela”, desabafa.
E lá se vão duas décadas desde a primeira árvore num lugar que antes era um terreno árido, com caixas e sacos de lixo, e que era considerado perigoso no bairro. Em 2008, com o apoio dos moradores, o espaço recebeu o suporte oficial da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente, que ali criou o Parque Tiquatira.
Com a meta de plantar 50 mil árvores, Seu Hélio já contabiliza 39 mil e 800 “filhas”, como se refere – número calculado no dia 11 de maio deste ano, pois ele faz as contas periodicamente. A única coisa de que já perdeu a conta foi do número de pessoas que o abordam todos os dias no parque para agradecer, cumprimentar ou simplesmente tirar dúvidas sobre as espécies – mais de 150, como jequitibás, aroeiras, jacarandás, entre outras – que sombreiam os percursos de caminhada e de pausa para contemplação da natureza e sociabilização dos frequentadores.
“Se eu for à Avenida Paulista e perguntar para qualquer pessoa onde ela gostaria de tirar férias, ela vai me dizer que na praia ou na montanha. Ou seja, as pessoas gostam da natureza, e a natureza é o nosso melhor remédio, ela cura. Por isso, meu objetivo é arborizar. Olha como a árvore é generosa, nos dá sombra, regula o clima, atrai pássaros, dá flores, frutos, e tudo de graça. O homem, um dia, tenho certeza absoluta, vai entender a linguagem das árvores”, compartilha o plantador de árvores, como gosta de ser chamado.
Mudar a forma como olhamos para o ambiente onde estamos integrados e nos responsabilizarmos pelo nosso entorno será a mais importante virada de chave da humanidade no século 21. “A gente já faz parte de uma geração que se acostumou, por exemplo, a olhar para o Rio Tietê e ver aquele canal feio de concreto, que exala um cheiro horrível. Não tem nada de normal nisso. Então, uma educação ecológica é fundamental no sentido de entender o oikos [palavra grega cuja pronúncia é ecos], a ecologia como o estudo da casa, e o estudo da nossa casa maior que é o planeta”, acredita o engenheiro e permacultor Guilherme Castagna.
O ambientalista Nik Sabey endossa a importância de reavaliarmos nossa relação com a biodiversidade nos espaços urbanos. “A árvore condensa muitas soluções: ela reduz a temperatura, garante áreas permeáveis, reduz o impacto das chuvas – ou seja, a chuva primeiro passa pelo filtro das árvores, de suas copas –, além de umidificar o ar e dar abrigo para a fauna. Eu acho que a aproximação de todo esse universo das árvores, das soluções e da inteligência da natureza mostra para as pessoas que ainda não entenderam porque a gente deve preservar e plantar.”
Ainda que no Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo – lei que orienta o crescimento e o desenvolvimento urbano de toda a cidade – a dimensão ambiental desempenhe papel fundamental na estruturação e ordenação territorial, repensar o modelo de urbanização exige a participação e a vigilância constante da sociedade. E para que isso aconteça, precisamos nos enxergar como seres da natureza, aponta a ambientalista Ângela Mendes, filha de Chico Mendes (1944-1988), e presidenta do comitê que carrega o legado de seu pai. Assim como o seringueiro e líder ambiental, Ângela explica que, se antes acreditava estar lutando para salvar a Floresta Amazônica, hoje ela percebe que está lutando para salvar a humanidade. “As pessoas vivem cansadas, esgotadas, e a gente sabe, por exemplo, que é muita informação todo tempo, com a internet, que é muito boa porque informa, mas também vai afastando as pessoas, cada vez mais, desse elemento íntimo que nos liga ao mundo. Acho que é preciso se dar momentos de pausa e de reflexão para olhar o entorno, olhar o que tem à sua volta e tentar se enxergar nesse lugar. Entender os milagres da natureza, como uma semente de samaúma, a rainha da Floresta Amazônica [árvore que chega a ter 60 metros de altura, 40 metros de copa e três metros de diâmetro]. A gente sabe que não é uma tarefa fácil no mundo de hoje, mas é necessário”, ressalta a ambientalista, que participará, neste mês, do Festival Florestar, realizado pelo Sesc São Paulo [Leia Somos Natureza]
Cursos, oficinas, debates, plantios e outras ações compõem primeira edição do Festival Florestar
Essenciais à manutenção de todas as formas de vida, reservas ecológicas, parques estaduais, florestas nativas, parques urbanos, praças, jardins e outros tipos de áreas verdes têm cada vez mais importância reconhecida, especialmente nos grandes centros urbanos. Não só pelos serviços ambientais que exercem – melhoria da qualidade do ar, absorção de águas pluviais, equilíbrio do clima e preservação da biodiversidade –, mas também por seu aspecto cultural. Para o Sesc São Paulo, que realiza, entre 4 e 18 de junho, a primeira edição do Festival Florestar, as áreas verdes em ambientes urbanos ainda potencializam diferentes ações educativas e promovem a convivência e o bem-estar.
“O Sesc possui seis vezes mais áreas verdes do que área construída no conjunto de suas unidades no estado de São Paulo. São jardins, hortas, bosques e áreas gramadas onde se pode conviver, caminhar e sentir a natureza. Gostamos quando as pessoas tiram os calçados e sentem a grama, sobem nas árvores e tocam as folhas, isso nos faz natureza. E estas áreas verdes promovem qualidade do ar, conforto térmico e ainda são espaços educativos e de fruição para quem visita as unidades”, descreve Alessandra Gonçalves, assistente técnica da Gerência de Educação para Sustentabilidade e Cidadania do Sesc São Paulo.
No mês em que se celebra o Dia Mundial do Meio Ambiente (5 de junho), o Festival Florestar pretende ampliar o debate sobre a importância da sociobiodiversidade, reunindo diversas atividades em todo o estado, como debates, vivências, exposições, exibições de filmes, oficinas e outras ações educativas. Dividida em três eixos – Florestar o pensamento, Florestar a terra e Nós, florestar –, a programação também se estende para ruas, praças, jardins, parques e territórios vizinhos às unidades do Sesc.
“Ao realizar atividades com essa tônica, o Sesc busca potencializar conexões entre espaços naturais e construídos, influenciando mais interações sociais e sensibilizando pessoas de todas as idades quanto aos impactos ambientais causados pelas diferentes relações construídas ao longo do tempo entre sociedade e natureza”, explica Alessandra Gonçalves.
AVENIDA PAULISTA
Amigos do jardim
Qual a importância dos insetos na natureza, como por exemplo as joaninhas? Neste curso, conheça características gerais dos insetos, as diferentes fases de desenvolvimento e a relevância deles em espaços verdes da Avenida Paulista.
De 4 a 18/6. Quintas e domingos, às 15h (exceto dia 15/6). GRÁTIS (retirada de ingressos 30 minutos antes).
GUARULHOS
Botânica para iniciantes
Curso teórico e prático que apresenta história, conceitos e técnicas da tradicional ciência que estuda os vegetais e fungos. Com Escola de Botânica.
De 13 a 29/6. Terças e quintas, às 18h30. Inscrições: R$ 12 a R$ 40.
ARARAQUARA
Como identificar e atrair aves para nosso quintal
Vivência para identificação de espécies por meio da observação e audição do canto dos pássaros. Os participantes constroem um comedouro para as aves do seu quintal. Com o fotógrafo e observador de aves silvestres Gabriel Arroyo.
Dia 17/6. Sábado, às 14h30. GRÁTIS (retirada de senhas 30 minutos antes).
PRESIDENTE PRUDENTE
Emergência climática e racismo ambiental
Bate-papo que discute a relação entre as questões socioambientais e as desigualdades raciais e sociais no Brasil, a fim de propor soluções para o enfrentamento da crise climática e civilizatória. Com Amanda Costa e Marcelo Rocha.
Dia 15/6. Quinta, às 20h.
GRÁTIS.
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