Professor e escritor, Jeferson Tenório joga luz para relações familiares e rejeita colocar o racismo como protagonista
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
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João tem apenas 11 anos quando se vê sozinho e obrigado a fantasiar o sentido da vida. O jovem Pedro enfrenta a perda do pai e sai de casa para resgatar o passado da família. A adolescente Estela se abriga no sonho de ser filósofa para fugir dos conflitos com a mãe e o irmão. Em comum, os três personagens vivem sob o mesmo teto do racismo e das desigualdades sociais nas periferias do Brasil. No entanto, a jornada de cada protagonista das obras O beijo na parede (2013), O avesso da pele (2020) e Estela sem Deus (2022), respectivamente, suscita questões, antes de tudo, existenciais. Autor das obras, Jeferson Tenório também nasceu e morou na periferia – primeiro do Rio de Janeiro (RJ), sua cidade natal, depois em Porto Alegre (RS), onde se formou em letras.
A partir desta vivência, somada à experiência como professor de literatura em escolas públicas, Tenório encontrou um terreno fértil para a sua escrita. “A sala de aula me trouxe um material biográfico muito importante, porque eu entendi que ela é uma espécie de microcosmos que imita a vida, ou tenta imitar a vida. É como se você estivesse ensaiando aqueles alunos para a vida, mas depois comecei a entender que, na verdade, não era um ensaio, já era a própria vida acontecendo, observou o escritor, que neste ano lança seu próximo livro, pela Companhia das Letras, e está escrevendo o roteiro para uma nova série da plataforma de streaming Netflix.
Descritos por Jeferson Tenório como romances de formação, seus livros narram a história de protagonistas que enfrentam percalços ao longo de um caminho de formação moral, física e psicológica. “Acho que tenho material e me sinto mais seguro falando de personagens mais jovens, justamente porque eu já tenho um distanciamento”, explica. Vencedor do Prêmio Jabuti na categoria Romance Literário de 2021, O avesso da pele já teve uma adaptação para o teatro pelo Coletivo Ocutá, que estreou em março de 2023, no Sesc Avenida Paulista. A mesma obra também vai se tornar um longa-metragem, cuja filmagem começa neste ano, sob direção de Silvio Guindane, que recentemente fez Mussum, O Filmis (2023). Confira, neste Depoimento, como foi o encontro do escritor com a literatura, de que forma o racismo atravessa seus enredos, e o que virá do que ele chama de “primavera literária negra”.
O meu primeiro contato com o mundo dos livros se deu no início dos anos 2000, a partir do encontro que eu tive com um professor de literatura num cursinho pré-vestibular. Nas aulas, ele costumava falar de muitos livros de maneira apaixonada, entre eles, Feliz Ano Novo (1975), de Rubem Fonseca (1925-2020). Ele leu em voz alta o conto “Feliz Ano Novo”. Foi a primeira vez que vi a literatura se aproximar das minhas vivências, porque esse é um conto que fala da violência e de questões da periferia. A partir daí, fui atrás daquele livro e não parei mais. Isso foi aos 23 anos. Antes disso, eu não era um leitor literário ou não me aproximava dos livros – eles tinham uma função decorativa, não me atraíam. Mesmo quando criança, eram objetos distantes que serviam para qualquer coisa, menos para ler. Sei que eles circulavam em casa. No entanto, acho que pelo fato de fabular muito, de criar histórias, isso acabou me aproximando, depois, da leitura.
Quando eu entrei no curso de letras foi por influência daquele professor [do curso pré-vestibular]. Como eu me apaixonei pelos livros, pensei: “Tem algo melhor do que estar num curso em que você possa ler muitos livros?”. Mas, ser professor e escritor eram coisas que estavam muito distantes. Até porque eu não tinha muita ideia do que se fazia no curso de letras. A ideia inicialmente era trabalhar com neurolinguística. Mas, quando eu entrei, percebi um mundo: eu podia ser tradutor, revisor, professor, escritor… A docência entrou sem querer na minha vida. Minha primeira experiência em sala de aula foi em 2002, quando fiz uma oficina numa escola municipal em Alvorada (RS). Ali eu comecei a me tornar um contador de histórias. Eu contava histórias e fui me apaixonando pela docência. Depois, prestei concurso público e entrei como professor do Estado, onde permaneci por quase 12 anos. Aí fui dar aulas em escolas particulares até 2021.
A sala de aula me trouxe um material biográfico muito importante porque eu entendi que ela é uma espécie de microcosmos que imita a vida, ou tenta imitar a vida. É como se você estivesse ensaiando aqueles alunos para a vida, mas depois, comecei a entender que, na verdade, não era um ensaio, já era a própria vida acontecendo. O que acontece na sociedade é um reflexo do que acontece na sala de aula. Essa relação cotidiana com os alunos, com pessoas diferentes e de vários lugares, com as histórias que eles me contavam, com as soluções que eu tinha que encontrar cotidianamente para os problemas em sala de aula. Tudo isso me ajudou a compreender as relações humanas, a relação de poder na sala de aula, as relações de amizade, os conflitos. Acho que isso me ajudou a compreender a complexidade da própria criação literária. Ou seja, fazendo essa observação dessa relação com os alunos e da relação [deles] com os pais, eu acho que a sala de aula foi fundamental para que eu me tornasse escritor e, talvez, um observador de como as coisas funcionam.
O racismo, para mim, não tem um valor estético e não é um tema, propriamente. Ele é um elemento que perpassa os meus personagens e a história, justamente porque meus personagens são negros, moram no Brasil e o racismo acontece. Eu venho trabalhando as questões das relações familiares, que é aquilo que me interessa discutir, enquanto as questões de gênero e as questões raciais vão atravessando esses personagens e servem mais como uma barreira para que eles possam existir enquanto seres humanos. É assim que eu vejo quando trago a discussão do racismo. Eu não quero colocar o racismo como protagonista, ele não é e não pode ser protagonista da literatura. Assim como o nazismo e o fascismo. O que tem que sobressair são, justamente, essas relações existenciais, humanas, profundas. É claro que cada leitor vai ter a sua chave de leitura. Há quem leia O avesso da pele e utilize essa chave do racismo. Outros vão usar a chave do luto ou da paternidade. Isso eu acho muito interessante. Mas, meu grande receio é que os livros que estão sendo produzidos por pessoas negras, como Conceição Evaristo, Eliane Alves Cruz e Itamar [Vieira Júnior] sofram uma redução. Ou seja, que a gente acabe reduzindo o valor dessas obras dizendo que são romances que falam sobre racismo. Falam também, mas não só.
Acho que a gente está vivendo uma primavera literária negra, um florescimento, uma constelação de grandes escritores com muita qualidade. É um momento de celebração, e o mercado editorial entendeu que as literaturas negras vendem, e vendem muito bem. As livrarias também têm colocado nos seus catálogos e como destaque. Dificilmente, hoje, ao entrar numa livraria, você não encontra livros de autores negros e negras. A produção acadêmica também está lá. Esse interesse se dá, também, pela entrada de pessoas negras nas universidades e que demandam outras literaturas. Acho que a questão agora é prestar muita atenção para os caminhos que a gente está indo. Talvez, a gente tenha que começar a pensar em um outro momento, não apenas no momento da reivindicação de humanidade nas histórias, mas pensar em outros aspectos da vida. Sempre me lembro de uma frase do Mano Brown – ele sempre quis falar sobre amor, mas como a vida era tão dura, ele tinha que fazer letras falando da violência. Talvez a gente devesse pensar em expandir. Não que a gente já não fale disso, a gente fala de amor, de amizade. Mas, talvez, a gente tenha que se sentir um pouco mais confortável de não se sentir cobrado: “Ah, cadê o racismo que na sua história não apareceu?”. Quando vamos contar histórias de pessoas negras sem que o racismo seja esse “elemento”?
Eu não participei ativamente [da adaptação de O avesso da pele para o teatro], mas participei como uma espécie de consultor. Eventualmente, eles [o Coletivo Ocutá e a diretora Beatriz Barros] tinham alguma dúvida e eu respondia qual a intenção de determinada cena ou diálogo. Vi os primeiros ensaios, que aconteceram dentro do apartamento de um dos atores, porque não havia nenhum tipo de investimento – eles fizeram porque queriam fazer, só depois entraram os patrocínios. Foi bonito ter visto como nasceu até chegar ao palco do Theatro Municipal de São Paulo [em 20 de novembro de 2023, Dia da Consciência Negra]. Eu costumo dizer que eles melhoraram o meu livro. Eles fizeram conexões com alguns personagens que eu não tinha pensado, deixaram algumas cenas mais profundas e complexas, inseriram outros elementos, como a dança. Dei sorte de ter encontrado um grupo tão talentoso.
Talvez, a gente tenha que se sentir um pouco mais confortável de não se sentir cobrado: “Ah, cadê o racismo que na sua história não apareceu?”.
Foto: Matheus José Maria
Eu acho que meu próximo livro segue um pouco do que estou perseguindo. É ainda um romance de formação – todos os meus livros são, de certo modo. Então, você tem aí O beijo na parede, Estela sem Deus e O avesso da pele, com personagens jovens e, de novo, agora, eu também escrevo sobre personagens jovens. Dessa vez, que entram na universidade, mas que já têm instrumentos teóricos – são leitores, são da periferia e vão entrar num ambiente acadêmico branco e classista. Acho que [o novo livro] ainda segue esse aprendizado do mundo ao qual me proponho porque tenho 46 anos e acho que não tenho condições, ainda, de falar de personagens mais velhos. Acho que tenho material e me sinto mais seguro falando de personagens mais jovens, justamente porque eu já tenho um distanciamento.
Assista ao vídeo com trechos da entrevista com o escritor Jeferson Tenório, registrada durante a Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), em novembro de 2023.
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