GAL TOTAL | Um perfil da cantora Gal Costa

29/09/2023

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As muitas vozes de Gal Costa, artista magistral que cantou seu país e seu tempo

POR MANUELA FERREIRA

Leia a edição de OUTUBRO/23 da Revista E na íntegra

Os anos de autoexílio foram dolorosos para Caetano Veloso e Gilberto Gil. Entre 1969 e 1972, eles compartilharam uma pequena casa em Londres, na Inglaterra, onde se refugiaram após uma série de prisões arbitrárias, acusados de subversão por agentes da ditadura militar que se instalara no Brasil. O frio da capital inglesa, tão distante do calor da Bahia, terra natal dos dois, seria amenizado, de tempos em tempos, pela presença magnética e solar de uma visitante com quem, junto a outros nomes, já havia revolucionado a moderna música popular brasileira no disco-manifesto Tropicália Ou Panis et Circenses (1968). No endereço da Redesdale Street, número 16, a hóspede era a amiga Gracinha, a conterrânea que trazia notícias, cartas e recordações de longe – e uma estrela de brilho raro, em plena ascensão.

Enquanto Caetano e Gil não podiam retornar ao próprio país, coube à Gal Costa (1945-2022) permanecer em terras brasileiras defendendo o legado do Movimento Tropicalista, encabeçado pela dupla exilada. Diante da repressão e censura vigentes nos anos de chumbo, Gal recusou o silêncio, usando o mais potente instrumento que dispunha para resistir: sua inigualável voz. “Eu fiquei aqui [no Brasil] fazendo tudo que eu fiz. Me lembro na [antiga boate carioca] Sucata, quando eu pegava a guitarra e cantava Se você pensa, do Roberto Carlos. Eu cantava com muita angústia. Gritando. Era como se fosse um grito, meio que de desespero. Não era fácil”, recordou a intérprete, em entrevista ao jornalista e crítico musical Tárik de Souza, para o Canal Brasil.


Gal em apresentação do show Espelho d’Água, em janeiro de 2018, no Sesc Vila Mariana. Foto: Matheus José Maria

Eu vim da Bahia

Naquelas curtas passagens de Gal pelo Reino Unido, o trio mergulhava na atmosfera hippie – e estava, por exemplo, na plateia de uma das últimas apresentações do cantor e guitarrista norte-americano Jimi Hendrix (1942-1970), de quem era fã. Nas avenidas e parques londrinos, o laço fraterno entre os três alcançou patamares que permaneceram sólidos até o fim da vida da cantora. Já na volta do autoexílio, Gil foi o responsável pela direção musical do icônico álbum Índia, lançado em 1973. No ano seguinte, Gal Costa gravou Cantar, outro clássico, dirigido por Caetano Veloso.

O título do trabalho, escolhido pelo compositor de Alegria, Alegria, refere-se ao que ele comprovara ser a missão da artista. “Gal tinha vindo da Bahia [para o Rio de Janeiro] como eu, na esteira de Bethânia e Gil, para tentar profissionalizar-se. Ela nunca tinha querido nada em sua vida a não ser cantar. Era-lhe inimaginável querer outra coisa que não cantar. Gil formara-se em administração e exercia a profissão; Bethânia sonhara em ser atriz e chegara a escrever contos e a fazer esculturas de madeira e cobre; eu já fora pintor, quisera ser professor e ainda queria ser cineasta; mas ela seria cantora ou nada mais”, escreveu Caetano Veloso na autobiografia Verdade Tropical (Companhia das Letras, 1997).


Reencontro da cantora com os músicos Caetano Veloso, Maria Bethânia e Gilberto Gil, que juntos já formaram o grupo Doces Bárbaros: registro em um estúdio no bairro da Gávea, no Rio de Janeiro (RJ), no ano de 2002. Foto de Publius Vergilius/Folhapress

Força estranha

O canto invadiu a vida de Gal antes mesmo de seu nascimento. A mãe tinha o ritual de ouvir músicas clássicas durante toda a gestação, acreditando que o hábito traria sensibilidade musical à filha. “Ela também me incentivou, me levou muito ao cinema, em tudo que era manifestação de arte, ela procurava me levar, me mostrar. Eu sempre gostei de música, essa era uma coisa natural e eu tinha intuição de que seria cantora, que esse era o meu caminho”, revelou ao jornalista Tárik de Souza. Mas, foi aos 14 anos, quando escutou Chega de Saudade (1959), de João Gilberto (1931-2019), que a adolescente Maria da Graça Penna Burgos passou a ter certezas sobre o futuro.

“Essa coisa [de cantar] se acendeu quando eu vi o João Gilberto. Eu comecei a perceber sua emissão [da voz], o vibrato. A coisa minimalista dele era algo que me atraía, a estranheza, o violão, o timbre, o jeito que ele cantava. Tudo isso me ensinou muito também, porque eu comecei a ficar atenta ao quanto ele segurava a respiração na canção. Tudo isso eu trabalhava sozinha, em casa”, rememorou na entrevista ao Canal Brasil. A partir da amizade com as irmãs Sandra e Andreia (Dedé) Gadelha – suas vizinhas e, à época, namoradas de Gilberto Gil e Caetano Veloso, respectivamente – Gal se aproximou da cena artística soteropolitana do início dos anos 1960.


A todo vapor

A estreia nos palcos, em 1964, foi ao lado de Caetano, Gil, Maria Bethânia e Tom Zé, com o espetáculo Nós, por exemplo. Concebido para a inauguração do Teatro Vila Velha, em Salvador, a montagem reunia música e literatura, além de referências às questões políticas e sociais de então. O sucesso do grupo impulsionou a mudança daqueles jovens talentos, pouco a pouco, para o sudeste, com Maria Bethânia à frente – ela chegou ao Rio de Janeiro em 1965 para protagonizar o histórico show Opinião. Gal Costa seguiu os passos da intérprete de Carcará e se instalou na capital fluminense no mesmo ano. “[A mudança] coincidiu com a estreia de Bethânia no Opinião. É a força que as coisas parecem ter quando elas precisam acontecer”, comentou a cantora no depoimento ao Canal Brasil.

Nas primeiras gravações em compactos e nas apresentações em festivais de música, ela ainda assinava com o nome de batismo. Gal, seu apelido de infância, foi escolhido após sugestão do produtor musical Guilherme Araújo (1937-2007) e incorporado oficialmente ao seu registro civil anos depois. “É seu nome verdadeiro, e é um nome baiano, profundamente autêntico e revelador da cultura particular do recôncavo da Bahia e da cidade de Salvador, além de ser bonito sonoramente e o modo mais carinhoso de se chamar. É, como queria Guilherme, internacional e pop, mas é pessoal e regional até a ponta da raiz”, contou Caetano Veloso em Verdade Tropical.

Eu sempre gostei de música, essa era uma coisa natural e eu tinha intuição de que eu seria cantora, que esse era o meu caminho

Gal Costa, em entrevista ao jornalista Tárik de Souza para o Canal Brasil

Minha voz, minha vida

Com o primeiro trabalho solo, Gal Costa (1969), passou a ser reconhecida pelos sucessos radiofônicos Baby, Que pena (ele já não gosta mais de mim), Divino maravilhoso e Não identificado. Nos anos 1970, uma coleção de trabalhos antológicos a consolidou como uma artista virtuosa, que aliava técnica e paixão, para além do rótulo de musa da contracultura. Entre eles estão: Fa-Tal – Gal a todo vapor (1971), Gal canta Caymmi (1976), Caras e Bocas (1977), Água Viva (1978), Tropical (1979) e Aquarela do Brasil (1980). A exuberante presença de palco e a beleza singular, simbolizada pelos volumosos cabelos negros, ganham bastante destaque nessa época, seja em capas de revistas ou em especiais para a televisão.

Na turnê Doces Bárbaros (1976), o quarteto formado com Caetano, Gil e Maria Bethânia chegou ao ápice da popularidade até então, lotando casas de shows em diversas capitais. Aberta a novas parcerias e atenta às mudanças na indústria fonográfica de seu tempo, Gal Costa permaneceria com altas vendagens também na década seguinte. Estouros como Festa do Interior, Profana, Balancê, Azul (escrita pelo cantor e compositor Djavan), Um dia de domingo, dueto com Tim Maia (1942-1998), Lua de Mel, na qual divide os vocais com Lulu Santos, Sorte e Brasil, esta última, uma composição de Cazuza (1958-1990), elevaram seu nome ao status de ícone de um país que comemorava o arrefecimento do regime militar e a volta da democracia.

Todas as coisas

Em quase seis décadas de carreira e aproximadamente 40 trabalhos lançados, Gal Costa via com muita alegria, nos últimos anos, a renovação de seu público – graças a inovações como o álbum Recanto (2011), obra experimental em que passeia com fluidez pelo rock, funk e batidas eletrônicas. Com Estratosférica (2015) e A pele do futuro (2018), a baiana deixava clara a intenção de mesclar-se, cada vez mais, às vozes das novas gerações, ao dar vida a canções escritas por nomes como Céu, Zeca Veloso, Silva, Tim Bernardes e Marília Mendonça (1995-2021), com quem dividiu os vocais em Cuidando de Longe.

A partir do dia 12 de outubro, uma parte da história da artista chega às grandes telas com a estreia da cinebiografia Meu nome é Gal (2023), das diretoras Dandara Ferreira e Lô Politi. A produção retrata os primeiros anos de carreira da cantora e sua chegada ao Rio de Janeiro, aos 20 anos. No papel da intérprete de Vapor Barato está a atriz Sophie Charlotte.

“Ela sempre esteve sobre os nossos ombros e cantando nos nossos ouvidos, seja nas rádios, no cinema…E então, eu cresci ouvindo a Gal Costa”, conta a cantora Assucena Assucena, que a homenageia no show Baby, te amo – Tributo à Gal Costa. É dela, ainda, outra releitura de uma obra fundamental, Índia, que esteve recentemente na programação do projeto 73/23 – Meio século de discos históricos, do Sesc 24 de Maio [Leia em O som do novo]. As trajetórias artísticas das duas, no entanto, já haviam se cruzado no ano passado, quando Assucena Assucena realizou o show Rio e Também Posso Chorar, em que dava nova roupagem ao Fa-Tal – álbum que conheceu em 2011 e que a impactou profundamente. “Eu não poderia começar minha carreira solo sem homenagear aquela artista e aquele disco que me pariram como a artista que eu sou hoje”, arremata a ex-integrante do trio As Baías.

Voz imortal

Gal Costa é homenageada em programações do Sesc São Paulo

O legado tropical e transgressor de Gal Costa segue vivo, ecoando em diversas programações do Sesc São Paulo. Neste mês, o SescTV exibe três programas que celebram a presença imortal de Gal. Em Belezas são coisas acesas por dentro: Catto canta Gal, Filipe Catto homenageia a artista baiana, em show que foi gravado em agosto deste ano no Teatro Pedro II, em Ribeirão Preto (SP). Completam essa homenagem do canal o programa Poesia Total – Waly Salomão, com participação de Gal, e o Compacto – Gal Costa, que apresenta um depoimento da artista sobre momentos marcantes da carreira.


Filipe Catto homenageia Gal Costa com clássicos da cantora baiana em versões carregadas de jazz, bolero, rock, tango e baião. Foto: Vinícius Barros

A voz viva de Gal Costa também foi celebrada pelo projeto 73/23 – Meio século de discos históricos, no Sesc 24 de Maio. Com programação que conecta diferentes gerações em homenagem ao aniversário de 50 anos de álbuns fundamentais da MPB, Gal subiu ao palco através da voz da artista Assucena, que interpretou o álbum Índia (1973), em show realizado em agosto. Neste mês, BNegão e a banda Black Mantra dão nova roupagem ao disco Tim Maia, nos dias 7 e 8/10; para recordar a sambista Beth Carvalho (1946-2019), Fabiana Cozza revisita Canto por um novo dia, nos dias 28 e 29/10; e o projeto se encerra, nos dias 16 e 17/12, com a versão de Linn da Quebrada e Giovani Cidreira para o disco Secos e Molhados.

SESC TV

Belezas são coisas acesas por dentro: Catto canta Gal | Direção: Daniel Pereira

25/10, às 21h

Poesia Total – Waly Salomão | Direção: Daniela Lombardi Cucchiarelli

27/10, às 22h

Compacto – Gal Costa | Direção: Max Alvim

Nos intervalos da programação do SescTV e sob demanda

Assista: sescstv.org.br

24 DE MAIO

73/23 – Meio século de discos históricos

sescsp.org.br/24demaio

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