No ano da celebração do 50º Aniversário da Independência da Guiné-Bissau, o Sesc Pompeia e o Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP recebem Joacine Katar Moreira para duas atividades, em janeiro de 2024. Mulher negra, feminista e ativista antirracista, Joacine traz uma perspectiva única sobre as masculinidades guineenses, destacando as complexidades que apresentam na construção do Estado independente.
No dia 16/01, às 19h, a intelectual participará uma plenária que explora a relação entre epistemicídios e reparação histórica, em diálogo com teorias feministas. Joacine será mediada por Maíra Freitas, artista, pesquisadora e curadora. No encontro, que integra a programação paralela da exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo | terra abrecaminhos, Joacine percorerrá por questões que envolvem as lutas anti-racista, feminista e os desafios enfrentados na construção de sociedades mais justas.
Além disso, no dia 17/1, às 15h, a atividade Quando o Gênero Comanda a Nação! mergulhará nas reflexões contidas no livro “Matchundadi: Género, Performance e Violência Política na Guiné-Bissau”. Na obra, Joacine Katar Moreira destaca como a cultura da matchundadi, inicialmente uma ferramenta de resistência, se tornou um desafio sistemático na construção do Estado independente, afetando profundamente as dinâmicas políticas e sociais.
Aproveitamos a passagem dela por aqui para uma entrevista exclusiva, em que Joacine comenta sobre os temas abordados em suas pesquisas, aplicados ao Brasil. Confira!
1 – Como a sua pesquisa pode ser aplicada na abordagem sobre epistemicídio e reparações históricas no Brasil?
Em Portugal acompanhamos muito o que se passa no Brasil em termos políticos e das lutas anti-racista e também feminista. A imigração brasileira enriqueceu e fortaleceu a luta anti-racista em Portugal e foi possível dialogarmos e percebermos o que nos une. E aquilo que nos une de forma impactante e dolorosa é justamente o colonialismo português, toda a lógica da colonialidade, o epistemicídio, o extrativismo, a exploração secular e as várias violências daí programadas, e que hoje tentamos combater tanto num país como noutro. Acontece que a história de muitos países de África está contaminada por esse período histórico e as sociedades pós-coloniais continuam a defrontar-se com as estruturas da colonialidade, pelo que é natural que as reivindicações e os apelos a uma justiça reparadora sejam comuns. As demandas da reparação histórica são antigas, mas hoje podem ser lidas no centro dos movimentos sociais e nas políticas públicas e julgo-as essenciais para a criação de novos futuros para as populações racializadas de várias partes do mundo.
2 – De que forma você percebe a questão da colonização no contexto brasileiro e quais são as implicações disso para as demandas de reparação histórica?
Quando estava a tirar a graduação, notei que o currículo da minha licenciatura em História Moderna e Contemporânea focava-se mais na colonização brasileira do que na colonização dos países africanos. O Brasil foi central – e isso nota-se pela sua importância na historiografia portuguesa – na construção do império colonial português e em todo o imaginário que alimentou a epopeia colonial até à atualidade. O Brasil contemporâneo foi construído na colonialidade e apesar da sua independência precoce – face a outras colónias de Portugal – a sociedade brasileira demonstra a persistência do programa colonial e a sua permanência no tempo. Ao mesmo tempo, o Brasil pode ser precursor nas demandas da reparação histórica, quer internamente através de políticas públicas sólidas e sustentadas no tempo, quer apelando a Portugal, que não pode continuar a esquivar-se a reconhecer a violência do seu passado colonial.
3 – Ainda neste tema, como você vê a aplicação prática dos conceitos de descolonização telúrica e espiritual no contexto brasileiro e de outras sociedades?
Falo de descolonização telúrica e espiritual porque para além de toda a dor, sofrimento e exploração que as populações subalternizadas e colonizadas sofreram, a terra e o meio ambiente também foram brutalizadas pelo colonialismo e as espiritualidades africana e indígena foram menosprezadas e em alguns casos proibidas de se expressarem. Não se fará uma descolonização total sem termos em conta a necessidade de salvar o planeta, a terra e a biodiversidade, e sem a reparação histórica também ao rasuramento de conhecimentos e práticas ancestrais.
4 – Sobre gênero e poder, você poderia comentar brevemente sobre o tema do livro que será lançado por aqui?
O meu livro Matchundadi, palavra do crioulo guineense que corresponde à masculinidade, aborda a História da Guiné-Bissau com lentes do gênero. A meu ver, a história das masculinidades guineenses é fundamental para a compreensão do percurso do país, desde a invasão colonial até aos nossos dias. Procurei construir a história das masculinidades guineenses para explicar a origem das convulsões políticas e institucionais e as heranças, tanto do sistema colonial como também da própria Luta de Libertação Nacional, que afetam sobremaneira a sociedade guineense atual e garantem a dominação institucional masculina e os desequilíbrios daí advindos.
5 – Você poderia comentar sobre a relação da sua obra com a nossa história?
A dominação masculina é comum à maioria das sociedades e a cultura di matchundadi, ou seja, da hipermasculinidade, não é caraterística específica da sociedade guineense, enquanto mecanismo de acesso e de captura do poder político e institucional. E a história política brasileira recente é disso um bom exemplo.
6 – As masculinidades e a construção do Estado independente na Guiné-Bissau também podem ser espelhados no caso brasileiro e na violência política sofrida por mulheres e pessoas LGBTQIAPN+ ao redor do mundo?
As masculinidades hipermasculinas fazem uso da violência, legítima e não legítima, para garantirem a hegemonia masculina. Isso passa também pela criação de uma falsa hierarquia entre as diferentes expressões e identidades de gênero, que colocam o homem heterossexual no cimo, como centro e como padrão, subalternizado as mulheres e as pessoas LGBTQIAPN+. Acontece que, e como explicou bem a filósofa Judith Butler, poucos homens correspondem aos ideais das masculinidades hegemónicas, pelo que elas são excludentes por natureza.
7 – Como você acredita que as questões de gênero podem influenciar a estabilidade política e a paz social no mundo?
O gênero, assim como o conhecemos, comanda tudo. A meu ver, não existe nada sobre o humano que não possa ser visto sob a ótica das questões de gênero.
8 – Sobre as palestras anunciadas no Sesc Pompeia e no Centro de Pesquisa e Formação do Sesc SP, quais são os temas principais que você pretende abordar?
Falarei sobre colonialismo, epistemicídio e reparação, com base no artigo que escrevi para a exposição coletiva “Terra Abrecaminhos” e a individual de Ana Mendieta, com curadoria de Daniela Labra e curadoria adjunta de Hilda de Paulo e Maíra Freitas; e também sobre o meu livro, que já está em sua 2ª edição em Portugal, sobre masculinidades e violência política.
9 – Por fim, conta pra gente se você tem alguma referência brasileira no seu trabalho? Você conhece e recomenda obras de autoras brasileiras que te inspiram em seu trabalho?
A filósofa Sueli Carneiro, sobre o feminismo negro e o racismo; a psicóloga Lia Vainer Schucmann sobre Branquitude e a historiadora Ana Lúcia Araújo sobre a Escravidão e o Tráfico de pessoas escravizadas.
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