GNU/Linux e a filosofia do software livre

12/06/2019

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O mamífero gnu, logotipo do Projeto GNU e o pinguim Tux, mascote do Linux*

A primeira vez que Cristina Botta experimentou o sistema operacional GNU/Linux em seu computador foi uma experiência frustrante. “Eu lembro de começar a usar o Linux em 1999. Até aquele ponto, eu nunca tinha desistido de fazer qualquer coisa no computador. Mas aquela vez eu desisti de instalar Java. Eu falei ‘não dá, não sei o que está acontecendo aqui’. Hoje em dia você olha pro Linux e instala Java com dois cliques e pronto. Qualquer versão que você quiser, três versões ao mesmo tempo“, conta à EOnline a educadora de tecnologias e artes do Sesc Vila Mariana.

Calma. Vamos voltar um pouco mais para trás. Do que estamos falando quando falamos em GNU/Linux?

De um sistema operacional“, explica Cristina, que é graduada em Design Gráfico pelo Centro Belas Artes de São Paulo e mestre em Mídia Digital pela Universidade de Bremen, na Alemanha. “O problema“, continua ela, “é que muita gente não sabe o que é um sistema operacional. Para essas pessoas, o Windows ou o macOS fazem parte do computador, vêm junto com o computador, e nem se imagina que dá pra instalar outra coisa. Há quem veja um macOS ou um Linux e diga: que Windows é esse? Então, a gente tem que começar primeiro por isso aí“.

E o que faz um sistema operacional?

Um sistema operacional [para microcomputadores] é uma coisa que inventaram por volta dos anos 80 para se conseguir usar mais de um programa ao mesmo tempo”, explica Cristina. “Antes disso, você tinha que colocar um disquete e carregar o programa. Aí, você usava o programa, salvava, tirava o disquete, desligava o computador, colocava outro disquete. O sistema operacional gerencia todas as operações do computador pra você conseguir usar várias coisas ao mesmo tempo”.

Como surgiu o sistema operacional GNU/Linux?

Surgiu do Projeto GNU, nos anos 80. Eles queriam fazer um sistema que fosse livre, aberto, baseado no Unix“, afirma Cristina. Nesse ponto, vale dizer que o Unix, que passou a ser desenvolvido no final da década de 60, é uma importante família de sistemas operacionais que trouxe conceitos transformadores para a evolução da informática como a conhecemos hoje. “E eles [do Projeto GNU] tinham todos os softwares, todas as partes de interface gráfica e tudo mais, mas eles não tinham o kernel, que é a parte que fala direto com o hardware, que é a camada mais funda, digamos assim, do sistema. Um cara lá da Finlândia, o Linus Torvalds, tinha lá um kernel, que ele tava fazendo por diversão, baseado no Unix. E aí o pessoal do GNU foi lá e falou: ‘você não quer juntar os projetos? A gente precisa de um kernel, você precisa de software’. E eles juntaram. Foi assim que surgiu o GNU/Linux. Ele é um sistema que foi desde o começo pensado para ser livre – pelo menos pelo lado do GNU. O Linus Torvalds não estava pensando nisso na época, mas ele logo se ligou e falou: ‘pô, por que não?’ E a comunidade começou a abraçar. Como ele é livre, não tem como matar ele. As pessoas sempre podem pegar o que está lá aberto e dar continuidade“.

Dos anos 80 pra cá, como o GNU/Linux (ou simplesmente Linux, como às vezes costumam chamá-lo) evoluiu?

Bom, em 1991, aparece a primeira versão (SLS), que hoje não existe mais. E aí tem o Debian e o Slackware, que são os Linux mais antigos que ainda estão em desenvolvimento. Eles devem ser de 1992, 1993. E aí foram criando braços disses sistemas e outros Linux foram surgindo, baseados em outras coisas, além do Debian e do Slackware. Existe até uma espécie de árvore genealógica, na internet, desses braços“, conta Cristina.

Clique aqui para ver um extenso mapa cronológico das várias distribuições de GNU/Linux.

Como surgem essas várias versões do GNU/Linux?

O projeto GNU/Linux é um conjunto de softwares livres e modulares”, explica Cristina. “O Windows vem daquele jeito que ele vem e pronto. E o máximo que você consegue mudar é uma coisinha ou outra: colocar lá uns ícones diferentes, trocar a cor, mas você não pode mexer em muita coisa. O macOS então, nem se fala. Você não consegue mexer em nada. É tudo do jeito da Apple e pronto. O Linux, não. O Linux é todo modular. O kernel é uma coisa, a interface gráfica é outra, os softwares são outros, e você pode montar ele do jeito que você quiser. Tanto que uma coisa que confunde muita gente é que o Linux tem um monte de interfaces gráficas diferentes. E se você não gostar de nenhuma, você pode ir lá e fazer a sua e integrar ela ao resto do ecossistema. Quando as pessoas falam ‘ah, não gosto de nenhum Linux que existe’ ou ‘tô afim de tentar outra coisa’, a pessoa vai lá faz um braço e cria outro Linux. Existem muitos Linux. Todos eles têm em comum o kernel do Linux e softwares que são do grupo do GNU (como o GIMP, de ilustração digital), mas até nisso dá pra mexer“.

E os sistemas operacionais da família GNU/Linux são realmente confiáveis?  

Todos os supercomputadores do mundo rodam Linux. Todos. 100%. O Android é um Linux. O kernel dele é Linux“, afirma Cristina. “O Linux é mais seguro. A forma como ele separa os grupos de usuários, que usuários têm acesso a o quê – e aí, quando eu falo em usuários, não estou falando em eu e você. Quando eu falo em usuários, eu quero dizer: esse grupo de softwares pode acessar a entrada USB, esse grupo não pode; esse grupo de usuários pode acessar a câmera, esse outro não pode“.

Os softwares da família GNU/Linux são livres, ou seja, podem ser copiados, modificados e distribuídos livremente. Como as pessoas por trás do desenvolvimento de softwares para esse ambiente – e até de novas versões do sistema operacional – podem sobreviver financeiramente?

Linux são obrigatoriamente livres“, afirma Cristina Botta. “Qualquer pessoa ou empresa pode desenvolver software para Linux – e software que roda no Linux não é necessariamente livre. Mas qualquer software que tenha a licença GPL, que é a licença livre, tem que ser livre também. Então, têm softwares que vivem da bondade das pessoas mesmo e aí a pessoa faz as coisas no tempo livre. O GIMP, por exemplo, tem dois desenvolvedores apenas. Pra tudo o que ele faz, é incrível você ter apenas dois desenvolvedores dedicados a ele e só. Tem um pessoal que vive de doação, e aí, tem um botãozinho lá ‘doe para mim pelo amor de Deus‘”, brinca Cristina. “O Krita, por exemplo, é um software de ilustração digital muito muito bom, que, pra é mim, é até melhor que o [Adobe] Photoshop pra algumas coisas, e ele faz um Kickstarter [campanha para arrecadação de doações] todo ano. Tem o pessoal que é bancado por empresas. A Microsoft está bancando muita coisa hoje em dia. Empresas grandes não podem ficar sem suporte. A Canonical, empresa por trás do Ubuntu [popular sistema operacional Linux], vende suporte. A própria Red Hat [que criou um sistema operacional Linux para empresas] é a que mais banca o desenvolvimento de softwares para Linux em geral. O governo chinês usa Linux. A prefeitura de Munique, a prefeitura de Barcelona. Alguns estados da Índia mudaram para Linux. Então, alguns governos bancam, algumas empresas que precisam de Linux bancam também e, como é tudo GPL a licença, as empresas que bancam e produzem coisas pra Linux são obrigadas a devolver para a comunidade. A não ser no caso de algumas licenças muito específicas, semi-livres.

Então a lógica do software livre e a do software proprietário podem conviver de maneira saudável?

Depende da sua religião, né?“, responde Cristina com um sorriso. “Tem lá o pessoal do Richard Stallman [fundador do movimento software livre, do Projeto GNU, e da Free Software Foundation], que é só software livre e ponto: ‘se não for software livre, eu não uso, não chega no meu computador, não uso nada proprietário, de jeito nenhum’ – o que, na prática, pra maioria das pessoas, é quase impossível. A longo prazo, eu sou do grupo dele. A longo prazo, eu acho que software não livre é anti-ético e perigoso – principalmente, com softwares médicos, carros que se dirigem sozinhos e coisas do tipo, eu acho muito perigoso“.

Software de código aberto, mas não livre para modificação, bastaria?

Código aberto é aceitável. É melhor do que nada. Mas software livre é o certo“, diz Cristina. “Veja o caso do vírus Wanna Cry. Muito software médico foi pego nisso. Por quê? Tinha software médico rodando em Windows 98 ainda. E, como é um monopólio, eles não atualizam. Se fosse livre, alguém poderia pegar e atualizar. Até os próprios médicos poderiam atualizar. Os próprios hospitais poderiam pegar e atualizar. Mas não pode. É tudo fechado. Eu não sou do grupo revolucionário: ‘acaba com tudo agora e começa de novo’. Vamos aos poucos mudando para software livre. Veja, a parte de poder modificar e ver como funciona é uma parte bem técnica, que só vai servir, na prática, para algumas pessoas. A maioria das pessoas não vai lá criar uma outra interface gráfica porque não gosta daquela. É uma questão mais de filosofia de vida mesmo, daquelas quatro liberdades essenciais do software livre: poder executar o programa como você desejar; poder estudar como o programa funciona e adaptá-lo às suas necessidades; poder redistribuir cópias; e poder distribuir cópias de suas versões modificadas. Tudo isso é uma filosofia de vida mesmo, que não é compatível com o software proprietário. Você não tem, por exemplo, como o Linux obedecer um governo e deixar uma porta aberta para eles olharem o que as pessoas estão fazendo. No Linux isso não é possível, porque qualquer pessoa vai lá, olha e fala: ‘tem um negócio aqui esquisito’. E alguém vai lá e conserta“.

E do ponto de vista de tecnologias livres em geral? Para além dos softwares. Como se aplica essa filosofia?

Eu acho que falta comunidade no mundo“, afirma Cristina. “Falta as pessoas se ajudarem e [a filosofia do] software livre, em grande parte, é isso: as pessoas se ajudam, as pessoas constroem juntas. E a gente precisa fazer mais isso com tudo. Inclusive com projetos de arquitetura aberta, projetos de móveis abertos, todos os tipos de projetos. Todo mundo tem que ajudar todo mundo. E tem mais. Está tudo virando software. Tudo. E tudo tem software. E aí o que vai acontecer se, sei lá, uma empresa que faz equipamentos médicos for à falência? O que você faz com aquilo? Você joga o equipamento fora? Já não tem lixo eletrônico suficiente no mundo? A gente precisa dar um jeito de criar um mundo mais sustentável, gerar menos lixo eletrônico e fazer softwares que façam os aparelhos durarem mais tempo, não menos“.

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Pra quem tiver interesse em dar os primeiros passos no universo do GNU/Linux, Cristina Botta recomenda a distro [palavra usada para se referir às várias distribuições ou braços derivados do GNU/Linux] Linux Mint na interface gráfica Cinnamon. Segundo a educadora de tecnologias e artes do Sesc Vila Mariana, se trata de uma porta de entrada interessante para quem vem do Windows ou do macOS. E não há necessidade de já sair abandonando os softwares proprietários. “Respira e vai indo devagar“, recomenda Cristina.

Clique aqui para ver tudo sobre a ação Tecnologias e Artes em Rede: Tecnologias Livres, que acontece em junho em 35 unidades do Sesc São Paulo, na capital, no interior e no litoral do estado.


*O logotipo do Projeto GNU utilizado no topo desse artigo foi criado por Aurelio A. Heckert e está licenciado sob a licença CC BY-SA 2.0. O mascote do Linux utilizado no topo desse artigo foi criado por “lewing@isc.tamu.edu Larry Ewing and The GIMP” e está licenciado sob a licença CC0.

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