Escritora de Ruanda é guardiã da memória de seu povo

28/08/2024

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Escritora Scholastique Mukasonga fabula sobre uma Ruanda pacificada e fala sobre a sua missão na literatura (foto: Catherine Hélie)

POR SEMAYAT OLIVEIRA

Leia a edição de SETEMBRO/24 da Revista E na íntegra

“É um papel. Se você algum dia possuí-lo e vier a precisar dele, idipolomi nziza, um belo diploma, ele te salvará da morte que nos é destinada. Guarde-o sempre consigo como um talismã, seu passaporte para a vida.” Essas palavras são de Cosmas, pai da escritora Scholastique Mukasonga. Pelas suas contas, ele foi morto aos 79 anos, durante o genocídio que sangrou Ruanda, entre abril e julho de 1994. Mas, antes, cumpriu uma tarefa soprada por seu coração: garantir a sobrevivência de pelo menos um dos seus filhos pela educação. Suas palavras estão logo no início de Um belo diploma (Nós, 2020), um dos livros de Mukasonga publicados no Brasil. Ao escrevê-lo, a autora reafirmou sua fidelidade ao dever de salvar a memória e as tradições de sua família e do seu povo por meio da literatura.  

As primeiras obras da escritora publicadas no país foram A mulher de pés descalços (2017), Nossa senhora do Nilo (2017) e Baratas (2018), todas lançadas pela editora Nós. Juntas, formam uma trilogia sobre os massacres ocorridos em Ruanda contra a etnia tutsi, o último genocídio do século 20, com mais de 800 mil vítimas. Entre elas, 37 familiares da escritora. “Eu tinha um dever de memória a transmitir, um dever muito pesado para carregar sozinha. Sempre disse que era preciso, absolutamente, encontrar um meio de criar outros guardiões e guardiãs. Penso ser o que meus leitores e leitoras se tornaram”, disse Mukasonga, durante uma conversa aberta ao público no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, em maio deste ano. O diálogo foi traduzido por Marly Peres, com exclusividade para a Revista E

Na ocasião, a escritora também lançou seu novo romance, Kibogo subiu ao céu (2024). Diferentemente das memórias apresentadas nos primeiros livros, aqui seus olhos estão voltados para o passado de seu país. “É onde reencontro Ruanda como Ruanda foi, onde reencontro a força dos nossos ancestrais, nossas raízes. Já que agora estou engajada nesta bela aventura da escrita, posso escrever sobre qualquer assunto. Minha única certeza é de que não posso não escrever”. Nas páginas a seguir, Scholastique Mukasonga nos pega pela mão e, com sua voz suave e firme, conta sobre sua obcecada busca por um diploma, a inevitável relação com a escrita, porque Kibogo é sua nova história, e vislumbra a construção de uma Ruanda reconciliada.  

Por que seu pai, Cosmas, dizia que o diploma escolar era como um “talismã”?   
Ele decidiu que pelo menos um dos seus filhos deveria sobreviver pela via da escola. E ele não se enganou. Mas, eu era teimosa e não queria, para mim, um sonho irrealizável. A escola primária não era um problema. Todas as crianças ruandesas podiam cursar os seis anos iniciais, desde que fossem batizadas. Ruanda era um país dominado por missionários católicos e, associada a uma missão católica, havia sempre uma escola primária. O difícil era acessar o secundário. Na época, havia um sistema de cotas [correspondente a 10%] para limitar o número de vagas para os tutsis. Mas, para quem estava em Nyamata, região de deportação dos tutsis, os párias, a cota nem sempre funcionava. Lembro quando, todas as manhãs, preferia ficar na cama e só me preparar para ir à lavoura atrás da minha mãe. No entanto, meu pai insistia: “Levanta, levanta. A escola espera por você!”. Então, no dia do exame nacional, depois da conclusão do primário, eu não queria fazer a prova e pensava que não adiantaria nada. Porém, ele, vestindo sua roupa branca de domingo, me disse: “Mukasonga, você vai fazer o exame nacional!”. A prova aconteceria a 10 quilômetros da nossa casa, então andamos 20 quilômetros – 10 na ida e 10 na volta. Fui aceita e passei. Meu pai dizia: “É preciso ter um diploma e ir além do lugar onde você está. Ir mais alto. Custe o que custar”. Nenhum de nós sabia qual diploma seria, mas meu pai sabia que este seria um talismã.  

A princípio, sua escolha foi pelo curso de serviço social. Pode nos contar um pouco mais sobre essa trajetória?  
Fiz o curso secundário e estudei até o ano de 1973 [a essa altura, na Escola Social de Karubanda, em Butare, cursando serviço social], quando os tutsis foram proibidos de irem à escola. Deveriam ser perseguidos, expulsos e até mortos. Então, meus pais disseram: “Não vamos desaparecer. Temos esperança de deixar um rastro da nossa vida, Mukasonga foi à escola e tem um passaporte internacional, porque fala francês. Ela vai embora, partir para o Burundi”. Esse é um país vizinho, a cerca de 40 quilômetros. Para chegar até lá, eu percorri o trajeto à noite, a pé, sem ser vista, sem ser pega, ou seria morta. Lá, retomei meus estudos e me formei em assistência social. Tinha escolhido esse curso em Ruanda, mas só estudei durante um ano e não pude continuar. Esse era o único curso que me permitiria voltar às aldeias. A figura da assistente social era a de uma funcionária pública, que trabalhava junto do líder da comuna. Queria levar algum saber àquelas mulheres que passavam o dia nos campos, na lavoura, e me tornar embaixadora delas. Não pude fazer isso em meu país, mas fiz ao lado das camponesas do Burundi. Depois, fui embora para o Djibuti [país localizado na região nordeste da África], onde a função não era conhecida, mas fiz coisas relativamente equivalentes por meninas e jovens analfabetas.  

Quando decidiu ir para a França, o desejo por um diploma te acompanhou?  
Na França, onde a função de assistente social existe, fiz um novo exame para alinhar e atualizar meu diploma de acordo com a formação do país. Foi quando soube do genocídio dos tutsis em Ruanda, na escola de formação de assistente social. Então, me dei conta: meu pai tinha toda a razão. Aquele diploma fazia um vínculo, um laço, e tinha se tornado um cordão umbilical entre minha família e eu. Voltei a almejar aquele diploma, pois era o desejo do meu pai. Sem o diploma, ele dizia que eu não acharia meu lugar na vida. E ele tinha razão. Muito rapidamente, fui adotada e aceita pelos normandos [população da região da Normandia, na França]. Decidi trabalhar no campo e, ali, junto desses normandos do interior, me transformei em memória. Não havia outra solução a não ser escrever.  

Foi quando começou a transição da assistente social para a escritora?  
Nunca pensei em ser escritora. Tinha escolhido a carreira de assistência social para estar em contato com as pessoas. Na época, não havia essa possibilidade em Ruanda, principalmente para mulheres. Só havia escritores homens. Havia uma influência religiosa muito grande, somente teólogos e filósofos escreviam. Hoje somos mais numerosas, mas foi preciso ir devagar. Nunca teria sido escritora se não tivesse acontecido o genocídio dos tutsis em Ruanda. Esse acontecimento fez de mim uma escritora. Eu tinha um dever de memória a transmitir, um dever muito pesado para carregar sozinha. Sempre disse que era preciso, absolutamente, encontrar um meio de criar outros guardiões e guardiãs dessa memória. E penso ser, espero não estar enganada, o que meus leitores e leitoras se tornaram. Quando comecei, não tinha um modelo e nem a intenção de ser escritora. O único objetivo era salvar a memória. Fazia anotações sobre tudo. Tinha uma angústia permanente de perdê-la, como um computador que pudesse ter seu disco rígido apagado.  

E quando surgiu o desejo de publicar?  
Quando tive força para voltar ao meu país, quando cheguei à minha aldeia, onde tinham nos jogado em 1960, em Nyamata, não encontrei nada. Nenhum rastro dos seres humanos que lá viveram. Segundo reza a lenda – talvez não seja uma lenda, mas sim uma realidade –, matavam as pessoas e, então, plantavam tabaco para não deixar suspeitas. E se algum sobrevivente procurasse, não encontraria vestígios do que havia acontecido ali. Levei dez anos para voltar à casa e enfrentar a realidade nua, mas deparei com uma mata rasteira tomando conta de tudo. Então, voltei rapidamente, muito depressa mesmo, para reunir meus escritos dispersos, como anotações soltas e tudo o que minha memória conservou. Foi quando mandei os textos [a editoras] e eles começaram a ser publicados. 

A escritora Scholastique Mukasonga e a jornalista Semayat Oliveira, em encontro realizado no mês de maio, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo.

(foto: Camila Macedo)

Sua obra, no geral, é marcada pelo protagonismo das mulheres. O livro A mulher dos pés descalços (2017), por exemplo, é uma homenagem à sua mãe, Stefania. Qual a importância de homenagear seu pai no romance Um belo diploma (2020)?  
Agradeço às leitoras e leitores de São Paulo por me colocarem nessa via de escrever um livro para meu pai. Eu estava em um encontro, acho que foi em uma livraria, quando alguém no público se levantou e, de forma muito séria, fez a seguinte pergunta: “Você sempre escreve sobre a sua mãe e os personagens da sua obra são mulheres. Você não teve pai?”. Nos meus escritos é normal o personagem mais importante ser mulher. E não faço isso de propósito, é algo espontâneo. Aprendi tudo com a minha mãe. Fiquei abalada com essa pergunta, me senti até envergonhada. Logo eu, que fiz de tudo para não ser uma filha ingrata. Ao pensar sistematicamente em minha mãe e em todas as mulheres deportadas para Nyamata, todas essas mães-coragem, benfazejas, generosas, que nos consolaram e protegiam, esqueci que devia a vida ao meu pai… Quando você é sobrevivente de um genocídio, não quer mais viver, a vida chega a incomodar. Mas foi meu pai quem me permitiu sair dessa condição das pessoas chamadas de “baratas”. Ele conseguiu me devolver essa humanidade. Portanto, como poderia estar diante de vocês e dizer que em Nyamata não se assassinaram baratas, mas sim seres humanos? Como poderia construir aquilo que chamei de túmulo de papel nos livros Baratas (2018) e A mulher de pés descalços (2017)? Como responder ao pedido lancinante de minha mãe, profundamente ligada à tradição, de que uma filha deve cobrir o corpo de sua mãe? Ora, minha mãe, que não sei onde está, tinha cinco filhas. Eu era a do meio: Judith, Alexia, eu, Juliette e Jeanne. Todas foram embora, morreram. Fiquei sozinha com a responsabilidade de cobrir o corpo ausente de minha mãe. Teci um sudário de papel, um patchwork de papel, para recobrir o corpo de minha mãe. E isso graças ao meu pai e à sua obstinação pelo estudo. 

Sobre seu compromisso inabalável com a salvaguarda da memória, na vida vale mais um diploma ou o compromisso com um propósito? 
Acredito não ser uma questão de diploma, mas sim de comprometimento. Claro, é preciso ter o mínimo de saber, evidentemente, para corresponder a esse comprometimento, para dar conta dele. Acredito que os pais de qualquer povo oprimido aspiram que seus filhos tenham um destino melhor do que o deles. Não querem que os filhos esqueçam a vivência dos pais, mas desejam uma outra vida, mais iluminada. Para essa luz existir, é preciso não esquecer o passado. A partir dessa experiência dolorosa, daquilo que aconteceu e não deveria ter acontecido, cria-se algo melhor. Devemos aceitar olhar para ela. Isso nos permitirá ir adiante e abrir um espaço de respeito à vida. Um espaço em que você tenha os mesmos direitos de todos os outros, sendo o primeiro deles, o direito de viver com dignidade. Como digo em Um belo diploma (2020), não é tanto o papel em si, mas, sim, ter as ferramentas para acessar um lugar na sociedade e poder compartilhar sua própria história. Por meio dos livros, podemos passar essa mensagem. O ser humano é um ser social. Para avançar é preciso compartilhar, e precisamos dos outros para compartilhar a nossa história, qualquer que tenha sido. 

Neste ano, você veio ao Brasil para lançar seu novo romance, Kibogo subiu ao céu. Por que é tão importante contar essa história centrada no conflito gerado pela opressão de ruandeses por padres missionários e a emergência de uma resistência cultural e social? 
Kibogo é onde reencontro com Ruanda como Ruanda foi, onde reencontro a força dos nossos ancestrais, de nossas raízes. Já que agora estou engajada nesta bela aventura da escrita, posso escrever sobre qualquer assunto. Minha única certeza é a de que não posso não escrever. Mas, antes, precisava escrever Kibogo subiu ao céu. O livro mostra que, antes de 1994 [ano do genocídio] e antes dos anos 1960, quando fomos deportados para Nyamata, houve os anos 1900 e a chegada dos padres brancos, os primeiros missionários católicos. Ao mesmo tempo, chegaram os primeiros colonizadores alemães. Com a Primeira Guerra Mundial, eles foram rapidamente substituídos por belgas, em 1916. Estes passaram toda a gestão para os missionários, responsáveis por “domesticar” e “civilizar” os “selvagens”. E o que se vai fazer é desenraizar os ruandeses. Para “civilizar” esse povo, era preciso batizá-lo e impor o esquecimento das nossas crenças tradicionais, nosso Imana [Deus adorado pelo povo Banyarwanda], nossos deuses, nossos “fazedores de chuva”. As pessoas foram proibidas de praticar os cultos e os rituais para garantir a chuva, porque a chuva é cheia de caprichos: se não fizermos cultos e rituais, ela desaparece. Ruanda é um país agrícola, não vivemos exclusivamente do dinheiro. Para comer é preciso contar com a plantação de cada um, em seu próprio terreno. Então, os ruandeses começaram a se sentir perdidos.  

E quem é a figura de Kibogo? 
Segundo uma narrativa oficial, quando enfrentávamos guerras ou desastres naturais, pedíamos ao príncipe ou para alguém importante, até para o próprio rei, beber hidromel com veneno e se sacrificar para salvar o país. E, no passado, Kibogo [filho do rei de sua época], tinha subido ao céu – levado por uma nuvem – com suas mulheres, suas vacas e seus filhos, provocando a chuva e fazendo Ruanda reencontrar a bonança. No livro, eu conto que, em 1943, Ruanda passava por uma grande seca. Então, os padres e missionários fizeram procissões para que a Virgem Maria fizesse chover. Porém, os sábios, os anciãos, invocam Kibogo, que está no céu. Minha mãe me contou a história de Kibogo. Quando os missionários quiseram explicar aos ruandeses quem era Jesus, que tinha vindo salvar as almas perdidas, danadas, e que havia “subido aos céus”, usavam como exemplo o relato conhecido de Kibogo. E aí tudo se misturou, uns e outros, em sincretismo. O cristianismo vinha nos dizer que nossas crenças eram ruins: “O paganismo é ruim! Vocês sofrerão a danação caso não se batizem”. Mas, não abandonamos nossas raízes. Pessoalmente, não vivi isso. Ouvi os contos de minha mãe e, para escrever, sempre irei “cavoucar” e recorrer ao baú de tesouros dela. Por meio das histórias, as mães transmitiam a tradição, e para não esquecermos de onde viemos. Foi o que nos salvou depois do genocídio.  

A escritora Scholastique Mukasonga no Sesc Bom Retiro, em maio de 2024. (foto: Camila Macedo)

Este último livro também tem uma boa dose de humor e ironia. Como foi escrevê-lo?  
Não tive dificuldades em utilizar o humor. Ele faz parte da tradição ruandesa. E, modestamente, penso que, depois da minha mãe, esta é a minha vez: me tornei guardiã dessas tradições. Faço parte dos sábios, dos anciãos. Quando vou a Ruanda, os jovens vêm me ouvir. Meus livros são para eles e, em todos, transmito o que consegui recolher de minha mãe. Então, o humor faz parte da nossa tradição. Tudo isso é muito difícil, mas a forma mais acertada de escrever sobre o desenraizamento e a discriminação é com humor. E isso não é algo inventado por mim, é a forma pela qual nossos pais conseguiram nos proteger, em Nyamata. Embora estivéssemos exilados em nosso próprio país, tentaram nos transmitir tudo aquilo que constituía os ruandeses. E tudo era contado com humor. Mesmo no meu primeiro livro, Baratas, escrito na dor, nem tudo ali é apenas infelicidade, sofrimento. Há humor para proteger o leitor e a leitora, e também para me proteger. Eu não teria prosseguido na escrita se não tivesse a sorte de recorrer ao que faz de mim uma ruandesa, ou seja, o humor.  

Este ano marca três décadas do genocídio em Ruanda. Diante dessa memória terrível, como o país pode cultivar o amor no lugar do ódio?  
Quem escapou, quem é sobrevivente, tem a obrigação de reconstruir Ruanda. As gerações de hoje, a minha geração e a atual, só conheceram a discriminação. Nós não podemos comparar. Não tivemos a sorte de ter conhecido a Ruanda de antes, em paz. Ainda assim, nossos pais nos deram amor. Eles sabiam ser impossível exterminar a todos nós, felizmente. Um genocídio nunca é total. E sabiam que seria preciso dar armas aos sobreviventes. E a primeira arma é o amor. O amor também pelo seu país, por Ruanda.  E esse amor eles transmitiram, cumpriram seu objetivo, sua vontade. Foram os próprios ruandeses que estancaram o genocídio. Ninguém nos atribuiu importância, nenhuma força externa veio nos ajudar. E, no dia seguinte ao genocídio, pensamos em nossos filhos, nossas crianças. Não havia um só país que não tivesse recebido um exilado ruandês. Eu tenho percorrido o mundo e em toda parte há um ruandês exilado. E sem trocar uma ideia sobre isso, todos nós pensamos em nossos filhos. Eles deveriam conhecer outra Ruanda. Era preciso fazer de tudo para que não vivessem o mesmo. E nós, os sobreviventes, pedimos a reconciliação. Sobretudo porque estamos falando de um genocídio de proximidade, de vizinhança. No dia seguinte ao genocídio, a vítima e o carrasco moravam frente a frente.  

E como está Ruanda hoje? 
Vou regularmente a Ruanda. Estive lá em abril [de 2024], por ocasião de uma comemoração para não esquecermos a história. Não devemos ser reféns dela, nem cair na mesma lógica de dor. Para a divisão, haviam sido criados documentos de identidade étnica, pois, sem eles, era impossível saber quem era hutu ou tutsi. Pois essa ideia extravagante de diferenciar os tutsis por características físicas é algo completamente falso. Por isso, a primeira coisa feita depois do genocídio foi queimar aqueles documentos de identidade étnica e criar um documento de identidade nacional, onde está simplesmente escrito ruandês, para os homens, e ruandesa, para as mulheres. Quando estou em Ruanda, não perco tempo pensando quem é hutu e quem é tutsi. Aliás, tudo isso já não existe mais. Isso não se diz. E não é porque queremos apagar essas palavras. São palavras e não tinham nada de mal. O que era ser hutu? Alguém que cultivava sua terra. O que era ser tutsi? Alguém que criava vacas. Em ambos os casos, era uma função exercida em determinado momento. Se mudássemos essa atividade, cultivar o campo ou criar vacas, nos tornaríamos hutu ou tutsi. Portanto, hoje, impera a reconciliação. Claro, aqueles que cometeram o massacre de tutsis pagaram o preço através da justiça ocidental, muitos desses homens foram presos. Mas, foi impossível colocar na prisão 84% da população [na época, 84% de hutus e 14% de tutsis], seria impossível reconstruir o país. Exterminaríamos o país e precisávamos dele. Tínhamos sido afastados de Ruanda e queríamos reencontrar Ruanda.  

Como os rituais e tradições também ajudaram nessa reconstrução do país? 
A tradição de Kibogo também veio nos ajudar, porque recorremos aos nossos tribunais tradicionais [chamados de Gacacas], nos quais a vítima se limita a pedir a confissão de quem matou seus filhos e seu marido. Ela quer apenas saber onde pode encontrar os restos mortais de seus familiares e fazer seu luto. Muitas vezes, estão em covas coletivas e, como frequentemente as sobreviventes são mulheres, elas fazem dessas covas seus repositórios de memória. Mas, hoje, há essa vontade de reconstruir Ruanda, de reconstruir os ruandeses. Todo mundo acordou e se deu conta de que, nessa história, todos foram manipulados. E é por isso que, agora, depois dos meus quatro primeiros livros, eu me volto para a Ruanda de antes. A Ruanda de antes do genocídio.

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