Sopro em tom maior

09/08/2024

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Fernando Gomes — paulistano, 76 anos, jornalista formado pela Faculdade de Comunicação Social Cásper Líbero. Editor, redator, fotógrafo com passagens pela Abril Cultural, Folha de São Paulo e diversas publicações especializadas. Na área corporativa, desenvolvimento de projetos de comunicação estratégica e socioambientais.

A história de vida do saxofonista, compositor e arranjador Hector Bisignani, o Costita, bem merece uma trilha sonora elaborada com harmonias e improvisos do jazz e da bossa nova. Argentino brasileiríssimo, aqui chegou em 1958, para uma curta temporada, e ficou de vez, adotando e adotado pelo Brasil, conquistando uma posição destacada na história da moderna música popular brasileira.

Mestre no domínio de toda a família de saxofones, além da flauta, Costita participou de mais de duzentas gravações com artistas da alta linhagem da música popular brasileira e foi protagonista de dez álbuns autorais. Fora as incontáveis apresentações em casas noturnas, shows e festivais no Brasil e no exterior. Uma carreira de mais de 70 anos em alta performance.

“Hector, você ficaria no Brasil?”

Costita veio pela primeira vez ao Brasil quando tinha 23 anos, convidado por um pianista chamado Roberto Inglês (na verdade um escocês que morava no Chile e foi para Buenos Aires formar um grupo musical para excursionar em nosso país). O contrato era de três meses. Na última apresentação, no Rio de Janeiro — “olha só o destino” — apareceram dois músicos que se ofereceram para dar uma canja. Eram o pianista João Donato e o baixista Chú Viana (Manuel Luis Viana). Virou uma longa jam session. No final, Chu desferiu uma pergunta de bate-pronto para Costita: Você ficaria no Brasil? O baixista coordenava a programação musical do A Baiúca, tradicional casa noturna da boemia paulistana. Ele queria um instrumento de sopro para mudar a rotina de apresentação de trios (piano, baixo e bateria).


“Claro que eu interpretava um bailarino de tango.”


Costita não hesitou: “sou solteiro, não tenho compromisso, aceitei na hora. Mas eu tinha um motivo ainda mais forte para ficar — a bossa nova estava surgindo. Era uma novidade que me atraía muito. Eu não poderia perder aquele momento. Arranjaram um apartamento para eu morar em São Paulo, um visto de permanência no Brasil e fiquei no A Baiúca por dois anos, tocando com inúmeros pianistas conhecidos na época — César Camargo, Moacir Peixoto, Pedrinho Mattar, Luiz Melo, Walter Wanderley, Dick Farney…”.

No A Baiúca, Costita ganhou fama entre frequentadores e músicos, com seu estilo diferenciado, solos e improvisos bem construídos, sonoridade aveludada. Os convites para tocar eram frequentes. Um dia apareceu por lá o saxofonista Cazé e o levou para a orquestra da TV Tupi, cujo maestro era Élcio Alvarez. Depois outras orquestras vieram — Pocho, Robledo, Simonetti, 150 Night Club (boate do Hotel Maksud).

“Nos anos 60 as orquestras eram muito solicitadas para apresentações na capital, assim como no interior, nos bailes de formatura” , lembra Costita. “Com a orquestra de Simonetti fazíamos um programa semanal na TV Excelsior, entre 1960 e 1962. Cansado de fazer novos arranjos toda semana, o maestro escolheu os músicos mais malucos para atuar também como atores humoristas. Jô Soares fazia os scripts. “Claro que eu interpretava um bailarino de tango”, resume, com uma boa risada.

Em 1962, o saxofonista gravou com orquestra seu primeiro álbum — O Fabuloso Hector, título que o deixou constrangido, mas não conseguiu que a gravadora (RGE) o mudasse. O vinil fez sucesso e gerou mais duas gravações bem sucedidas, com Walter Wanderey, Chu Viana e Milton Banana. Costita esperava um título mais charmoso, mas se decepcionou novamente com um batismo ainda mais esquisito dos dois álbuns: Dom Júnior. Sabe-se lá a razão.

Na onda do sucesso dos três LPs, em 1964 o saxofonista criou o Sexteto Hector Costita e gravou seu mais importante álbum — Impacto, com três composições suas — muito elogiado pela crítica, embora sem repercussão comercial.

A capa do LP de um dos seus mais importantes álbuns: Impacto, lançado em 1964.

Você ainda não ouviu nada!

Em 1964 o pianista, arranjador e compositor Sérgio Mendes recebeu uma proposta da Rhodia (empresa francesa então atuante no Brasil) para montar um sexteto que iria acompanhar desfiles de moda em longa turnê pelo Brasil. Os músicos foram escolhidos a dedo e Hector Costita estava entre eles — Raul de Souza (trombone de vara), Edson Maciel (trombone de válvulas), Tião Neto (contrabaixo), Edison Machado (bateria). Nascia o Sexteto Bossa Rio e sua refinada expressão do samba-jazz.

“Na época — lembra Costita — eu tocava na boate do Hotel Danúbio, em São Paulo. Um dia apareceram por lá o Sérgio e o Raul para me convidar. Era um projeto comercial, mas Sérgio tinha planos mais arrojados para o sexteto depois da turnê”.

O pianista queria aproveitar o potencial do grupo e tomou a iniciativa de contratar com a gravadora Philips a produção do LP Sérgio Mendes & Bossa Rio Você ainda não ouviu nada!, com arranjos de Tom Jobim e do maestro Moacir Santos em duas faixas.

Costita mudou-se para o Rio e logo começaram os ensaios. Durante aquele período, o sexteto se apresentava no Beco das Garrafas, cultuado reduto carioca da Bossa Nova, gênero que surgia como uma surpreendente novidade. O Beco era o cenário ideal para consolidar os arranjos.

Durante os ensaios eram inevitáveis os pitacos dos músicos, de formação jazzística, nos arranjos.

“Pedimos desculpas a Jobim por um pitaco ou outro no trabalho dele — comenta Costita. Com aquela gentileza peculiar, ele respondia, com bom humor, que estava ótimo, que havia ficado melhor”.

Considerado por muitos como o mais importante álbum instrumental do samba-jazz gravado no Brasil, o trabalho não teve sucesso comercial, mas tornou-se uma referência entre os músicos e foi muito elogiado pela crítica especializada no Brasil e nos Estados Unidos, onde recebeu um prêmio da DownBeat, aclamada revista dedicada ao jazz e ao blues. Além disso, o disco abriu caminho para a projeção e o sucesso de Sérgio Mendes e da própria música brasileira no mercado musical norte-americano.

“Na preparação do álbum não tínhamos consciência de que estávamos produzindo algo novo, excepcional — diz Costita. Só percebemos isso no decorrer do tempo. Até cogitamos de gravar um segundo LP com o sexteto, mas com a mudança de Sérgio Mendes para os Estados Unidos, o Bossa Rio se desfez”.

Capa do antológico LP gravado em 1963 e lançado em 1964 | Foto: Reprodução/Discogs

Dez anos na Europa

No ano seguinte o Costita foi convidado para uma temporada na Europa e um grande encontro de despedida foi organizado com uma canja de músicos no Teatro de Arena. O que seria uma curta permanência no exterior durou dez anos, apresentando-se em vários países, principalmente na França, onde viveu durante três anos.

Sua mais forte lembrança daquele período foi a participação em um festival internacional de jazz na Côte D’Azur, representando a música brasileira com um quinteto sem brasileiros. Eram três uruguaios, um italiano e Costita. Em comum, a paixão pelo samba-jazz. A bandeira brasileira, estendida entre as de outros países, foi bem representada. O quinteto se apresentou no último dia do festival. Na plateia, Nina Simone, Ella Fitzgerrald, Chic Corea, Jack de Joanete, Oscar Peterson e tantos outros músicos consagrados do jazz.

“Estavam ali porque a atração seguinte era o quinteto de Miles Davis” — comenta Costita. Demos sorte de nos apresentar para uma plateia tão ilustre. Normalmente fico tranquilo no palco, mas havia muita energia no ambiente e tive de fazer um esforço para me manter sereno quando olhei para o lado e vi que Miles e Wayne Shorter, integrante do quinteto, estavam de olho em nós. Acho que estavam avaliando o som dos cucarachos” — brinca.


“Tive de escolher entre ser empresário ou músico”.


Foi durante sua permanência em Paris que Costita conheceu Ouarda, uma elegante argelina, apreciadora do jazz, num evento cultural. Eles se casaram na França, em 1969, vivem juntos até hoje e têm dois filhos — Carin, 49 anos, e Mariano, 39 anos. Costita tem outra filha de seu primeiro casamento, Gabriela, 59 anos, além de três netos e um bisneto.

De volta ao Brasil, em 1974, o músico retomou sua intensa rotina de apresentações, até que ele e a mulher tiveram a ideia de criar o Melograno (romã, em português), um charmoso bar e restaurante, no bairro da Vila Madalena, São Paulo. Além de Costita, outros grandes músicos passaram pelo palco do Melograno, que se tornou um festejado núcleo de boa música na noite paulistana.

“A ideia prosperou, mas o trabalho era insano” — comenta. “Eu levantava cedo para fazer compras e tinha de tocar à noite, minha mulher cuidava da cozinha e ambos da administração. Ficamos exaustos e em 1987 decidimos fechar o bar, depois de dois anos de atividade. Tive de escolher entre ser empresário ou músico”.

O Festival Internacional de Jazz de Côte D’Azur imortalizou apresentações de diversos jazzmasters como Duke Ellington e Nina Simone | Foto: Reprodução/Second Take Jazz Art

Um drama na rotina do inesperado

Em 1988 surgiu novo convite do exterior, desta vez para tocar na Itália. E novamente seu talento e sua atração pelos desafios mudaram o roteiro traçado. Costita parece atrair o inesperado. Contratado para uma temporada de três meses, ficou na Itália durante cinco anos. “Eu morava na Sardenha — um paraíso, e tocava com outros músicos em várias cidades daquele país. Gravei dois discos em Milão e antes da pandemia eu ia todos os anos participar de turnês pela Itália”.

A mesma atração pelos desafios foi também a origem de um drama em sua vida. Ao escalar o paredão de um monumento histórico, despencou de uma altura de 13 metros. “Quebrei tudo quanto é osso. Passei seis meses no hospital e dois anos em recuperação. Se eu não tivesse caído em pé, não estaria aqui para contar essa história”.


“Eu tocava, ele tentava repetir, mas saía uma coisa quadrada. Insistia, mas não dava certo. A divisão de compassos do samba e do jazz é diferente.”


Quando estava perto de completar 75 anos, Costita arriscou-se a uma nova aventura internacional. Sentia-se desconfortável em zona de conforto. E partiu para Nova York. Queria passar um tempo estudando e convivendo com o jazz. A idade não limitou sua capacidade de adaptação. A convite de um músico norte-americano, instalou-se numa casa com outros oito músicos, no Brooklin. Respirava-se música dia e noite. De dia estudavam novos arranjos, à noite saíam para os bares de jazz e chegavam de madrugada. Costita queria dormir até um pouco mais tarde, mas invariavelmente às nove horas o saxofonista John Kirby, um dos hóspedes da casa, batia à porta de seu quarto.

“Sabendo que eu era do Brasil, não me dava sossego”— lembra. “Era um músico de dedicação obsessiva. Queria a todo custo pegar a linguagem musical da bossa nova, do samba. Fazíamos duetos, eu no clarinete, ele no sax. Eu tocava, ele tentava repetir, mas saía uma coisa quadrada. Insistia, mas não dava certo. A divisão de compassos do samba e do jazz é diferente. Naquela época o jazz começou a beber na fonte da bossa nova, invertendo um fluxo de intercâmbio. No início, a bossa nova é que bebeu na fonte do jazz. Hoje há uma simbiose. Não há festival internacional de jazz onde não apareça a música brasileira” — afirma Costita, que ao rodar pelo mundo tornou-se poliglota. Fala inglês, francês, italiano, castelhano e português, com evidente sotaque portenho.

Já cansado de ser “alugado” por Kirby, Costita perguntou a ele se não tinha vontade de passear um pouco, ir a um museu, ver as meninas no Central Park. Kirby respondeu que em Nova York não bastava ser um bom músico. Era preciso ser o melhor. Resposta tão contundente fez Costita repensar seu plano de permanecer na cidade.

“Eu me apresentava nas casas de jazz, inclusive em Boston” — relata, “mas a perspectiva de entrar num círculo de concorrência obsessiva me fez desistir e voltei para o Brasil, depois de uma experiência que durou seis meses. Eu também queria me divertir. Há vida além da música”.

“Se não fosse pela música eu não estaria vivo”

Indagado sobre a receita para uma vida longa e ativa e de uma memória invejável, ele tem uma resposta simples:

“É a música. Eu não estaria vivo sem a magia da música. Quando estou tocando, não existe espaço e tempo. Não sei onde estou, é outra dimensão. É como se eu estivesse ganhando tempo de vida”.

Essa paixão musical se estende ao ensino. Costita dá aula particular e já lecionou dois anos no Clam (Centro Livre de Aprendizagem Musical, do Zimbo Trio), dois anos na Fundação das Artes de São Caetano, ambos em São Paulo, e durante treze anos no Conservatório Musical de Tatuí, interior do Estado, entre 1990 e 2003.

Mas a vitalidade do músico tem outras fontes, como seu sítio, na pequena Sarapuí, cidade a 40 km de São Paulo. Ali Costita descansa e dá vazão à sua outra vocação artística, a pintura, passando para as telas a exuberante vegetação local.

“Além disso, faço minhas caminhadas e tenho hábitos moderados na alimentação, na bebida e até fumo dois ou três cigarros por dia”– completa.

Nesse receituário de bem viver deve-se incluir um ingrediente muito próprio — o apurado senso de humor de Costita, que transmite pelo seu sorriso frequente e pelo brilho de seus olhos azuis a sensação de estar de bem com a vida.

Costita, Raul de Souza e Placa Luminosa em apresentação na Funarte em 1985

Café da manhã com tangos

Quando era menino, Costita tomava o café da manhã ouvindo tangos, por meio do rádio ligado pela mãe. Mas quem o despertou para a música foi o jazz.

“Meu pai tinha a bateria como hobby. Adorava um baterista norte-americano chamado Gene Krupa. Montava a bateria na sala, punha um disco na vitrola e tentava acompanhar o ritmo. Um dia ouvi a orquestra de Benny Goodman e seu clarinete. Aquilo me pegou — o que é isso, pai? Uma semana depois ganhei um clarinete, com a condição de estudar seriamente o instrumento”.

O menino, então com doze ou treze anos, assumiu o compromisso. Tinha aulas com um professor italiano muito disciplinado, cujo ensino era direcionado para a música clássica. Começou a tocar em sinfônicas juvenis, mas acompanhando o pai em audições de jazz, ouvindo seus discos e vendo-o tocar, aderiu ao gênero de corpo e alma. O pai foi seu cúmplice nas escapadas do clássico para o jazz.


“Certa vez, saíamos da rádio quando um daqueles contestadores insultou e pôs o dedo na cara do maestro. Levou um direto que o nocauteou. Piazzolla havia sido boxeador.”


Antes de completar 18 anos Costita tocava com seu quarteto de jazz no bar 676, em Buenos Aires, revezando-se com o primeiro quinteto de Astor Piazzolla, que preparou arranjos para atuação dos dois grupos juntos. Durante um mês eles se apresentaram na Rádio El Mondo.

“Piazzolla revolucionou o tango com arranjos e harmonias sofisticadas e por isso era muito questionado pelos tangueiros conservadores” — conta Costita. “Certa vez, saíamos da rádio quando um daqueles contestadores insultou e pôs o dedo na cara do maestro. Levou um direto que o nocauteou. Piazzolla havia sido boxeador”.

Nesse período Costita também tocava clarinete no Bob Club de Buenos Aires, ligado ao bebop, um estilo de jazz mais moderno na época. O diretor desse clube era o maestro argentino Lalo Schifrin, que convidou Costita para integrar uma banda que estava formando.

“Perguntei se a banda teria clarinete. Ele respondeu que eu iria tocar saxofone. Eu disse que nunca havia tocado sax, nem tinha o instrumento! Não se preocupe — disse o maestro. E chamou o saxofonista Gato Barbieri para me emprestar o instrumento e me dar algumas dicas. Não foi difícil, há alguma afinidade entre os dois instrumentos. Foi meu encontro definitivo com o sax tenor. Integrei-me à orquestra com grande entusiasmo”.

O mesmo entusiasmo que continua a mobilizá-lo a cada novo passo na vida. Aos 89 anos, ele é presença constante nos palcos da noite, seja em São Paulo, onde mora, seja em centros culturais de outras cidades brasileiras. Ou, quem sabe, o inesperado esteja novamente a espreitar o afável Hector Costita.

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