Imagens: Divulgação / Domínio Público
A tenção redobrada ao ouvir o nome de Luiz Gama. Quando o assunto é luta abolicionista, defesa da causa republicana e da liberdade no Brasil, a menção ao jornalista, escritor e defensor dos negros em pleno século 19 é obrigatória. A trajetória do ativista é mesmo imbatível. Embora tenha nascido livre, foi escravizado e vendido pelo pai aos 10 anos. Autodidata, só foi aprender a ler e escrever aos 17. A partir daí ninguém mais o separou da escrita. O domínio das letras e das leis garantiu sua libertação e abriu um novo capítulo na busca por uma sociedade mais justa no Brasil.
A professora Ligia Fonseca Ferreira, do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que Gama se tornou um homem de letras e sobretudo um jornalista de grande audiência e influência em seu tempo. “Além da habilidade retórica e das agudas análises político-jurídicas, revela-se um mestre da narrativa jornalística, à qual imprime um estilo pessoal, quase sempre colocando-se em primeira pessoa, interpelando e provocando seus leitores, quando figura ele mesmo como personagem de alguma matéria”, explica Ligia, organizadora do livro Lições de Resistência: Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições Sesc São Paulo, 2020).
O legado do jornalista, que em 2018 foi declarado Patrono da Abolição da Escravidão no Brasil, é repleto de textos com forte crítica social e política, denunciando as questões raciais do ponto de vista do negro. Ainda podemos observar sua produção com os olhos cheios de curiosidade, pois é ilustrada com as cores da atualidade. Ligia sinaliza que a celebração de 190 anos de nascimento de Gama acontece em um cenário inesperado. A pandemia da Covid-19 somou-se à eclosão dos movimentos antirracistas. “Houve a triste morte de George Floyd [afro-americano morto por um policial no mês de maio, em fato que impulsionou protestos mundiais contra o racismo e a violência policial], embora no Brasil nós tenhamos situações tão graves quanto, que vitimam as populações negras”, comenta. “Esse contexto acabou jogando um pouco mais de luz ao Luiz Gama.”
Não há exagero em dizer que a vida de Luiz Gama foi extraordinária. Nasceu em 1830, na Bahia, menino livre, no contexto das revoltas que tinham em seu centro negros africanos ou nascidos no Brasil. A mãe, Luíza Mahin, é dessas personagens da história que merecem reverência. Africana, lembrada por sua postura rebelde e inteligência, envolveu-se com as insurreições dos povos negros que aconteceram em Salvador no século 19.
Em carta datada de 1880, é descrita pelo filho: “Minha mãe era de baixa estatura, magra, bonita […] muito altiva, geniosa, insofrida e vingativa.[…] era quitandeira, muito laboriosa, e mais de uma vez, na Bahia, foi presa como suspeita de envolver-se em planos de insurreições de escravos, que não tiveram feito”.
Do pai, pouco se afirma. Era fidalgo de importante família baiana de origem portuguesa. E foi o pai quem o vendeu, ainda criança, em condição de escravo. Assim partiu para São Paulo, no ano de 1840, onde permaneceu em condições distintas: dos 10 aos 18 anos escravizado e, posteriormente, como homem livre, não só de corpo, mas de ideias. Trazia em si a experiência dolorosa da escravidão reverberada em aprendizado libertador.
O primeiro periódico humorístico da capital paulista ganhou forma por sua iniciativa. Diabo Coxo veio em parceria com Angelo Agostini, italiano e caricaturista, em 1864. No semanário Cabrião, traduzia incoerências sociais e políticas, em artigos críticos ao regime escravocrata. Foi redator e proprietário do jornal O Polichinelo, na mistura afiada de política e humor. Sua estreia na imprensa foi no Correio Paulistano, em agosto de 1864, e entre 1881 e 1882 o jornalismo viu seus últimos textos. É neste último ano que Luiz Gama morre, em decorrência da diabetes.
Já em 1869, o jornalista conciliou as atividades com o jurista: é autorizado a exercer a advocacia em primeira instância, envolvendo-se em processos que traduzem seu protagonismo antirracista e pela defesa da República e do estado democrático de direito. “Pode ser estranho dizer isso em relação àquela época, pois havia a égide do regime imperial, mas Gama foi um dos nossos primeiros republicanos”, acrescenta Ligia. Defensor coerente de suas convicções, também era conhecido da maçonaria. Com pontos espalhados pelo Brasil, a organização conectou Gama a outros círculos.
Contrariando o destino apresentado, Luiz Gama é autor de sua trajetória. Na opinião do quadrinista e professor Marcelo D’Salete, é possível pensar que a “nossa história é feita de violências e de concentração do poder”. Tal concentração reproduz uma historiografia restrita a poucos personagens e vozes. Para Marcelo, o poder aparece de forma bélica, “em conflitos e guerras”, ou de forma simbólica, explicitado nos mecanismos e estratégias desse grupo dominante e da forma de contar os fatos. “A história é escrita lembrando de fatos e personalidades importantes e, por outro lado, relega ao esquecimento fatos e figuras importantes”, diz, a exemplo de Luiz Gama e toda sua contribuição no abolicionismo. “É um personagem lembrado nas décadas passadas mais como escritor do que como abolicionista e político e um rábula [quem tinha autorização para exercer a função de advogado sem ter formação em Direito].”
Existe em São Paulo a Rua Luiz Gama e, em Curitiba, a Travessa Luiz da Gama. O reconhecimento é marcado no mapa das cidades brasileiras, mas pode atravessar os continentes. No que depender dos desejos da pesquisadora Ligia Fonseca, é uma questão de tempo. Ligia identifica Gama como um comunicador de voz poderosa, tanto que, ao ler seus textos, imagina uma voz potente que combinaria com o rádio ou, hoje, com o podcaster.
A professora indica que o mundo lusófono é um bom ponto de partida, considerando sua origem familiar, a qual remete ao mundo atlântico. “Temos um triângulo que fez com que o Brasil se formasse nessa junção, da África, Portugal, e ele é uma síntese. Haverá um dia em que os estudantes africanos também saberão quem foi Luiz Gama”, completa.
A luta pela abolição no Brasil no século 19 reuniu inúmeros intelectuais, juristas, jornalistas e escritores. Entre eles, já despontavam líderes negros que, ao lado de Luiz Gama, ajudaram a mudar a história nacional. A professora do Departamento de História da Universidade de Brasília (UnB) e coordenadora regional do grupo de trabalho Emancipações e Pós-Abolição (Anpuh), Ana Flávia Magalhães Pinto, selecionou algumas dessas personagens e episódios curiosos relacionados ao período. “Para destacar a centralidade de uma série de abolicionistas negros, tão importantes quanto figuras que se tornaram célebres pelas narrativas hegemônicas, basicamente homens brancos e de elite”. Vamos a eles:
José do Patrocínio (1853-1905)
Em 13 de maio de 1888, numa ação conjunta com a Confederação Abolicionista e outros jornais, lançou um chamado para que “o povo brasileiro” se reunisse em frente à redação da Cidade do Rio, para dali seguir ao Senado. Confirmada a aprovação, a comitiva acompanhou o ministro João Alfredo ao Paço Imperial para a entrega do Decreto nº 3.353 à sanção da regente imperial. Patrocínio não se conteve em apenas ver a assinatura da carta que declarava extinta a escravidão no Brasil e exorbitou da discrição em seu discurso de elogio ao feito.
Ferreira de Menezes (1840-1881)
Nasceu negro e livre no Rio de Janeiro, filho de um homem liberto. A despeito de suas origens modestas, conseguiu estudar no Colégio Tautphoues de Nova Friburgo e foi aprovado nos exames preparatórios para as academias do Império perante o Conselho de Instrução Pública, em 1860. No ano seguinte, dirigiu-se, então, para São Paulo, para cursar a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. Conhece Luiz Gama, com quem estabelece uma estreita e duradoura amizade. Afora ações de liberdade, Menezes compôs uma banca de advogados comissionados pela Loja América para defender Luiz Gama num processo de calúnia movido contra ele em 1870. Tendo retornado ao Rio de Janeiro, manteve a amizade com Gama e muito pautou esse debate nas páginas do Jornal do Commercio e da Gazeta de Notícias. Até que, em 1880, decidiu fundar a Gazeta da Tarde, um jornal abolicionista que se negava a publicar anúncios de gente escravizada em fuga. Luiz Gama colaborou com frequência nesse impresso, além de outros abolicionistas negros.
José Rubino de Oliveira (1837-1891)
Foi um homem negro de pele clara que não aceitou o convite de redenção via negação de suas origens. Amigo de Luiz Gama, Joaquim Nabuco e Castro Alves, cursou também a Faculdade de Direito do Largo São Francisco e muito lutou até se tornar professor daquela instituição em 1879. Em 24 de setembro de 2020, a Congregação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo nomeou o auditório do primeiro andar do prédio do Largo em sua homenagem.
Textos inéditos de Luiz Gama organizados pela professora do Departamento de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) Ligia Fonseca Ferreira compõem a coletânea Lições de Resistência: Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Edições Sesc São Paulo, 2020). Ao todo são 61 artigos publicados entre os anos de 1864 e 1882. Deste total, 42 chegam ao público pela primeira vez. No prefácio, o historiador Luiz Felipe de Alencastro contextualiza a detalhada pesquisa da professora que deu origem à obra.
Em setembro, Ligia recebeu a Medalha Luiz Gama do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) – destinada àqueles que se destacam na defesa do estado democrático de direito. Neste mês, participará de eventos virtuais para o lançamento do livro. No dia 19/11, ela faz parte de uma live, às 19h, no canal do YouTube do Sesc São Paulo. E, no dia 26, dá início a um curso online de quatro encontros (quintas-feiras, das 19h às 21h) dedicado à vida e obra de Luiz Gama, realizado pela unidade do Sesc Santos.
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