A rima de quem fez transformações para além dos holofotes, a poesia de quem vive e valoriza a zona sul de São Paulo, o breakdance de quem ultrapassou fronteiras, e ganhou o mundo e a discotecagem de quem conseguiu se adaptar mesmo diante de uma crise mundial. Isso é um pouco do que você vai conhecer sobre quatro participantes que estiveram no Sesc Campo Limpo para trocar uma ideia que resgatou a memória e trouxe a juventude da cultura Hip Hop brasileira para o centro da discussão.  

O projeto ‘Hip Hop – resistência e filosofia das ruas‘ reuniu a rapper Stefanie, o cantor Cocão,  a b-girl Miwa,  e a DJ Vivi Varella, em um dos encontros, para falar sobre a memória dos e das representantes do movimento que deixaram seu legado para as novas gerações e como as novas gerações vem ressignificando a cultura Hip Hop. Aproveitamos para entrevistar essas figuras tão significativas do movimento. 

Quando falamos de troca de ideias não tem como não ser transportado(a) para as rimas de Stefanie. Ela nos contou que, desde que começou a curtir o Rap, levava muito a sério o que escutava nos grupos, por isso, tinha a preocupação de expressar algo reflexivo em suas músicas. Assim ela criou sua própria caminhada, do seu jeito, sem ter foco na fama.

“É o que eu sempre digo, minhas rimas são como uma troca de ideia, então o meu foco maior era isso, transmitir algo e nunca me preocupei com os holofotes”, disse a cantora.

Essa pegada reflexiva fez com que Stefanie fosse importante também para a representatividade feminina na cena. Para ela, a evolução da presença delas no Hip Hop foi e ainda é lenta. “Comecei a colar nas festas de rap em 97 e, apesar de terem mulheres que cantavam Rap, nem se comparava com a quantidade de homens que rimavam”, lembra. Além de apontar o machismo como grande barreira para que fossem reconhecidas e tivessem oportunidades, destaca como dificuldades as condições financeiras e demandas que vieram com a chegada de filhos, o que fez com que muitas desistissem de seguir carreira. 

Aquelas que conseguiram, hoje são grandes inspirações para que a presença feminina cresça cada vez mais nessa cultura. A b-gilr Miwa é um exemplo de quem conseguiu vencer vários obstáculos para fazer o que sempre amou: dançar. Ela iniciou sua carreira em 1999 e seguiu sua caminhada que a levou a se tornar campeã brasileira, sul-americana e a primeira mulher a ser júri internacional, a conquistar títulos no exterior e a competir no campeonato mundial Battle of the Year/We B*Girlz em 2008.  

Miwa conta que saiu de casa cedo, veio de um histórico de violências, morou em favelas, mas conheceu o Rap e pessoas que ensinaram o que ela não teve oportunidade de aprender em casa e na escola. ” O Rap me resgatou nesse meio tempo, onde tinham várias coisas disponíveis pra eu seguir, da criminalidade, drogas e tudo mais. O Hip Hop me mostrou, através das letras de Rap, o que que era certo e errado. Isso me alcançou através do rádio, dos shows, nas ruas, nas quebradas. E depois, conhecendo o Hip Hop eu tive acesso a outras informações riquíssimas”, conta. 

Com sua carreira internacional, a b-girl pôde acompanhar e fazer parte da evolução do Breaking brasileiro. Ela conta que a ascensão da dança vem desde o início dos anos 2000 e que a partir de então elevou bastante o nível, pois os representantes do país iam para fora, traziam o conhecimento de suas experiências para cá e compartilhavam. 

Mas, para ela, a maior diferença entre o Hip Hop brasileiro e o internacional é a maneira como essa cultura é vivida aqui.

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“A gente não perdeu a essência do Hip Hop, isso é algo que eles [pessoas de outros países] admiram muito. O quanto a gente leva isso como cultura, não somente como uma arte pra ser apresentada, mas pra ser multiplicada, a questão dos projetos sociais, isso não é em todo mundo que a gente encontra.”  

B-GIRL MIWA

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O cantor Cocão Avoz viveu muito da efervescência do Hip Hop entre as comunidades, porque fez parte de sua história com essa cultura na região da Zona Sul de São Paulo. Do Jardim Miriam até as ruas do Jardim São Luiz, onde esteve junto na fundação do grupo de Rap ‘Versão Popular’ e seguiu com diversas participações no meio, até firmar carreira solo e lançar o livro de poesias de ‘Rap Pra Não Dizer Que Não Falei Das Ruas’, com prefácio do poeta Sérgio Vaz, criador do Sarau da Cooperifa.  

No palco do Sarau, entre mesas lotadas de pessoas em silêncio degustando petiscos e o famoso escondidinho de carne seca do Zé Batidão, Cocão viu a passagem de muitos artistas, quando ainda não eram tão conhecidos como hoje. “Tive a oportunidade de ver um pouco do surgimento do Sarau da Cooperifa na Zona Sul, em meados de 2003. Lugar mágico, transformador. Artistas como: Preto Jota do grupo Sabedoria de Vida (já falecido) Gaspar e Funk Buia do originário Z’África Brasil, G.O.G, Thaíde, Criolo, DJ Meio Kilo, Fino Du Rap, entre outros. Até mesmo o ‘Versão Popular’ teve uma passagem, um aprendizado de artista cidadão, no espaço Cooperifa”, lembra. 

Dá pra entender por que o sarau é um lugar muito convidativo e fértil para o Hip Hop quando Cocão explica a presença da poesia em cada elemento dessa cultura, principalmente no Rap: “por conta da letra, na oratória, na forma que recitamos nos saraus, a importância está ligada à comunicação, na expressão artística”.   

Ele conta que foi nesse contexto que o movimento começou a pensar mais aberto sobre a expansão das ideias, ocupando escolas, dialogando com todas as pessoas e destaca o que considera ponto alto do Hip Hop: “O mais importante pra essa evolução foi quando as mulheres tiveram seus espaços de respeito, e elas fortaleceram todo um cenário a nível de Brasil”.  

Quando falamos sobre as pessoas e grupos que se tornaram referência para a cena, alguns nomes aparecem muito, como Racionais MCs, Xis, Sabotage, Snoop Dog, MV Bill, Thaíde, RZO, G.O.G, mas agora os nomes de mulheres ganham cada vez mais espaço, fazendo com que a gente perceba o crescimento dessa conquista de visibilidade.  

A DJ Vivi Varella conta que antes os artistas que a inspiravam eram sempre homens, mas hoje enxerga que isso era uma percepção estrutural e agora suas principais referências são femininas. Na discotecagem ela destaca artistas como DJ Cinara, DJ Vivian Marques, DJ Lisa Bueno, Lys Ventura e Mari Rossi. Já na cena Hip Hop lembra de J-Lo, Queen Latifah, J.J.Fad, Missy Eliot, Dina Di, Rubia RPW, Rihanna, Beyonce, que são algumas das mulheres que também foram fonte de inspiração para Stefanie no cenário internacional. Pensando em representantes brasileiras, a DJ lembra de artistas como: Rubia RPW, Negra Li, Dina Di, Cris SNJ e Kmilla.  

Miwa também falou um pouco sobre suas referências, que são muitas e diversas, já que ela tem 24 anos de Hip Hop, mas um ponto em comum é a visão da necessidade de valorizar mais a presença feminina. “Eu tenho muitas mulheres como referência na minha vida e sempre quis colocar isso à frente da cena em geral, porque acho que foram grandes mulheres que trilharam um caminho incrível e são grandes referências pra homens e mulheres, por isso gosto de mencionar elas primeiro”, conta.  

Ela destaca Sharylaine como sua maior referência e traz alguns nomes de b-girls importantes para sua carreira, como Morgana, Natana e Maia. Além de mencionar as b-girls Neia da Suburban Breakers, de Sorocaba, e a Jaque, de São José do Rio Preto, por quem ela tem muito carinho pela história.

Cocão também cita muitos desses nomes, mas tem um grupo que, para ele, é o principal legado da arte do Hip-Hop: Racionais MCs. “É um grupo que está há 32 anos na atividade, inspirando toda uma nova geração também, valorizando toda uma história, e com o seu jeito de trabalhar. Eles, nas entrelinhas, apontam caminhos de como se manter vivo, tanto na arte, como no dia a dia da vida”, destaca o cantor. 

Essa memória se mostra muito importante para entendermos o cenário atual do Hip Hop. Dá pra perceber entre as entrevistadas um consenso sobre como o Hip Hop evoluiu, cresceu e ainda resiste, mas Stefanie destaca que se incomoda com o apagamento do início, de artistas que foram muito importantes, mas não são lembrados.  

Por outro lado, Miwa comenta sobre a grande desigualdade entre algumas pessoas que ficam em destaque e outras que não tem muitas oportunidades. “Acho que falta abrir espaços pra esses novos talentos poderem se desenvolver e mostrarem seu potencial também”, disse. 

A internet foi citada como uma oportunidade para resgate e aumento de visibilidade, e a DJ Vivi Varella comentou sobre como ela também foi a maneira encontrada para se reinventar e continuar na ativa no período mais alto da pandemia de Covid-19.

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“O cenário musical foi um dos primeiros a fechar e o último a voltar, mas percebi que muitos grupos e DJ’s da cena entraram para a Twitch (serviço de streaming de vídeo) para continuar levando música para todos os cantos e inclusive se formaram vários grupos que permaneceram no retorno pandêmico.”

DJ VIVI VARELLA

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Olhando para o futuro, perguntamos sobre como é possível inspirar as próximas gerações, Stefanie começa destacando o que o período de isolamento social escancarou para todos nós.

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“O Hip-Hop me mostrou o quanto a arte, a cultura, a educação são requisitos básicos para a sociedade viver com o mínimo de dignidade. Não conheço nenhuma pessoa no mundo que não consuma arte, até mesmo aquelas que não dão valor e dizem que artistas vivem uma vida mansa. Pra ser artista e preciso ter muito amor e coragem. A arte se faz sim necessária e o Hip-Hop traz uma acessibilidade maior para quem quer executá-la.”  

RAPPER STEFANIE

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Ela lembra que quando pequena queria aprender a tocar violão e piano, mas não teve condições financeiras. Depois de ter a oportunidade de se expressar por meio do Hip Hop, conta que quer apoiar seus filhos, caso queiram trilhar um caminho pela arte. “Sei o quanto essa cultura é libertadora e abre a nossa mente para novos horizontes”, disse. 

Miwa destaca que ainda vê muita divisão entre a velha escola e os novos artistas, mas ainda tem esperança de que essa cultura se mantenha viva e alcance mais gente: “eu acho que o Hip Hop tem esse papel de resgatar pessoas que têm histórias de vida difíceis”. 

Para Cocão é importante que os artistas tenham interesse em contribuir para que crianças e jovens tenham cada vez mais contato com o Hip Hop:

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“As escolas estão de braços abertos, as ruas estão carentes, seguimos referências. Eu percebo isso hoje, tenho uma história pra contar, verdadeira, minha. É super prazeroso estar nesses espaços, com os jovens, eles são curiosos, dão a devida atenção. Então é querer e se fazer presente”. 

CANTOR COCÃO

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Uma cultura transversal em diferentes manifestações (graffitti, rap, discotecagem, breakdance), diversa e popular não tinha como não ter muita história para contar. Conversando com representantes que nos mostram alguns pontos do passado, do presente e do futuro do Hip Hop dá pra entender um pouco mais, mas esse é só um pedacinho de tudo que dá pra aprender, evoluir e multiplicar com essa arte tão rica.