Urbanista mexicano Erik Cisneros mostra que é possível pensar em soluções eficientes e de baixo custo para mobilidade e promoção de qualidade de vida nos centros urbanos
POR MARIA JULIA LLEDÓ
Leia a edição de junho/23 da Revista E na íntegra
Mais de 80% da população brasileira, segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), vive em áreas urbanas e repete, dia após dia, a rotina de olhar para o alto e avistar uma cordilheira de arranha-céus. No nível do chão, avenidas e ruas serpenteiam percursos que, no caminho para o trabalho ou a escola, percorremos a pé, de carro, ônibus, metrô ou bicicleta. Talvez possamos, pelo caminho, avistar árvores, escutar pássaros, sentar em algum banco de praça. Na melhor das hipóteses, descansar sob a sombra de algum refúgio verde da cidade, desfrutando momentos de lazer e sociabilização.
Borrados cada vez mais pelo crescimento de novos edifícios, estacionamentos e centros comerciais, desenhos urbanos precisam reconsiderar a urgência de praças, parques e calçadas arborizadas não só para a saúde da população, como também para a biodiversidade da região que ocupam. Segunda cidade mais populosa das Américas, “perdendo” apenas para São Paulo (SP), cuja região metropolitana reúne pouco mais de 22,4 milhões de habitantes, a Cidade do México, capital daquele país e casa de 21,9 milhões de moradores, corre atrás de soluções imediatas por uma resiliência urbana. Afinal, cidades resilientes têm capacidade de resposta e reinvenção diante de adversidades como alagamentos, poluição, violência e desafios de mobilidade.
Para Erik Cisneros, urbanista mexicano e diretor de engenharia de tráfego na Secretaria de Segurança Cidadã da Cidade do México, é urgente colocarmos em prática o conceito de urbanismo tático. Essa ferramenta visa modificar a dinâmica das grandes cidades ao testar mudanças de planejamento urbano antes de implementá-las permanentemente. Ou seja, a partir de alterações rápidas, reversíveis e de baixo custo, ruas e espaços públicos podem se tornar mais seguros e amigáveis para a sociedade. Em entrevista à Revista E, após participação na cerimônia de abertura da 29ª edição do Dia do Desafio, realizada no Sesc Belenzinho, em abril passado, Cisneros compartilhou exemplos de projetos que, ao modificarem a paisagem urbana, também interferiram no comportamento das pessoas, gerando um sentimento de pertencimento e cuidado, além de promover convivência, qualidade de vida e bem-estar.
O que é urbanismo tático?
É uma ferramenta que utilizamos em diferentes cidades para gerar mudanças imediatas a baixo custo e com alto impacto. Podemos utilizá-lo em qualquer cidade, rua ou espaço público. Podemos, inclusive, utilizá-lo dentro de edifícios. O que nós buscamos com o urbanismo tático é experimentar projetos ou propostas que poderiam chegar a ser muito caras para serem realizadas e, então, avaliar sua viabilidade posteriormente. O urbanismo tático é uma intervenção que podemos realizar com pintura, mobiliário, vasos de plantas, com ativação das pessoas, com e para as pessoas. Isso nos ajuda a realizar mudanças sociais que podem gerar benefícios à prática de atividade física e esportiva, à segurança da população, à manutenção da infraestrutura do espaço e para que as pessoas se apropriem do seu entorno.
Como urbanista, desde quando você se dedica ao urbanismo tático?
Sou urbanista, mas me transformei em arquiteto, engenheiro e fiscal nas ruas, trabalhando para a cidade, para as pessoas. Há mais de 12 anos venho realizando intervenções urbanas, tendo o urbanismo tático como ferramenta para experimentar desenhos e propostas, para calibrar os mesmos projetos que, às vezes, nós podemos desenhar a partir de um plano ou de um escritório. Levamos esses projetos a campo para que as pessoas vejam como podem ser implementados e como as ruas podem funcionar de uma maneira diferente daquela a qual estamos acostumados.
Poderia compartilhar alguns exemplos de projetos de urbanismo tático que realizou na Cidade do México?
Fizemos muitas intervenções de urbanismo tático e, felizmente, elas evoluíram para obras e construções. Uma das que eu mais gosto se chama Mi Calle (Minha Rua), e está na Avenida 20 de Novembro, que é a continuação de uma via que corta de norte a sul a capital do México, até chegar ao centro da cidade. Conseguimos reduzir essa avenida de cinco para duas pistas e uma ciclovia, ampliando as calçadas, criando espaços públicos e buscando priorizar que as pessoas caminhem, com segurança, até o centro. Em um trecho da rua, de um quilômetro, não havia um só lugar para que as pessoas pudessem se sentar, tampouco havia permanência das pessoas ali até conseguirmos transformá-la em uma das ruas mais atrativas do Centro Histórico, com maior diversidade de pessoas, onde muitas crianças passaram a ocupar um espaço que antes era inimaginável que pudesse existir.
Muito se fala de uma Cidade Amiga da Criança, conceito baseado no programa Child Friendly Cities Initiative (CFCI), do Unicef. Quais critérios definem o que é uma Cidade Amiga da Criança?
A estratégia mais simples é buscar que a velocidade das ruas seja a menor possível para que, em termos de tempo de reação, as crianças sempre tenham prioridade. Um segundo ponto é aumentar os espaços para pedestres, tornando o entorno visível e sem obstáculos visuais para que meninos e meninas possam ver e entender qualquer tipo de risco. Além desses dois elementos, o terceiro é muito importante: usar elementos didáticos, adaptativos e móveis para criar espaços de convivência e de brincar. Ou seja, uma cidade onde nossas crianças ocupem um espaço público com itens que possam estimular a criatividade, que promovam encontros com nossas infâncias e gerem comunidades.
Cada vez mais escassas, áreas verdes em espaços urbanos também se converteram em prioridade nos planos diretores das cidades mundo afora. O urbanismo tático também apresenta essa preocupação?
Sim. Como podemos ver, nossas cidades estão rodeadas de concreto. Então, plantar ou proteger essas áreas verdes é extremamente importante. Quando buscamos fazer plantios urbanos, não fazemos apenas a partir de iniciativas do governo. Sempre fazemos com a comunidade. Levamos mudas de espécies nativas que se adaptam a um determinado lugar para também assegurar que tenham um longo período de vida. Plantamos junto à comunidade, e cada pessoa se torna um guardião desses espaços. Isso é o que tem que acontecer em grande escala: todos os cidadãos devem ser os guardiões das áreas verdes, dos nossos espaços vivos.
Entre as ações que você realiza estão as revitalizações de quadras esportivas, principalmente em cidades mexicanas com alto índice de violência. Estes espaços têm potencial para, de fato, diminuir a insegurança destes locais e estimular a convivência, a prática esportiva e o lazer?
Precisamos entender que o desenho da quadra destinado a uma prática esportiva é somente uma das muitas atividades que ali podem ser realizadas. As quadras precisam ser espaços dinâmicos e versáteis que permitam qualquer coisa, e que desde a criança até as pessoas mais velhas possam ocupá-las. Sendo assim, a transformação dessas quadras com pinturas, desenhos e ativação do espaço público resultam em diferentes oportunidades do que nela pode ser feito e como isso pode ser compartilhado pela comunidade. Claro que as quadras nos aproximam das práticas esportivas e nos estimulam para tal. Mas, o que acontece quando não temos esses espaços? Temos que pensar em áreas dinâmicas, com formas que não necessariamente são retangulares. Espaços que podemos adaptar, porque o objetivo é realizar atividade física e poder, a partir dessa atividade física, promover a convivência e o bem-estar das pessoas do entorno. Por isso, temos que dar abertura a essas pessoas e buscar adaptar esses espaços às suas necessidades.
Poderia nos dar um exemplo de quadra em um bairro considerado violento e como esse espaço mudou o comportamento das pessoas do entorno?
Ter pessoas nas ruas é o que gera segurança. Quando chegamos a esses espaços não ocupados, abandonados, deteriorados, começamos com uma ativação física: colocamos música e realizamos algum tipo de atividade. Quando as pessoas que estão em casa escutam risos e brincadeiras, elas começam a se aproximar. Afinal, somos seres sociais. Nesse momento, saem de casa, começam as interações e as pessoas passam a demonstrar criatividade. Fazemos, todos juntos, uma intervenção artística nas quadras. Aqui, não se trata somente de uma questão estética, mas de promover um orgulho dessa comunidade por uma área onde ninguém queria estar. Ao transformar esse lugar, a comunidade faz com que ele fique bonito e interessante, onde as crianças passam a brincar. As infâncias são as grandes guardiãs dos nossos espaços públicos. Minha geração teve a oportunidade de brincar nas ruas, porém, atualmente, as crianças não podem fazer isso, e temos que fazer algo a respeito. Elas não sabem o quão especial é brincar na rua, aprender, trocar e entender o que é a empatia num exercício prático de convivência.
Como se dá o critério de escolha dos lugares onde são realizadas intervenções de urbanismo tático?
Hoje, se olharmos para as nossas cidades, se pararmos em qualquer esquina, vamos encontrar carências. Basta dedicarmos alguns minutos para conversar com qualquer pessoa, que ela dará um diagnóstico dos problemas do seu entorno. Nossa responsabilidade é buscar as ferramentas, e como técnicos buscar as soluções mais práticas e imediatas para solucionar esses problemas, e que sejam adaptativas. Por exemplo: há alguns dias, moradoras de uma comunidade na Cidade do México nos disseram que havia um problema porque o transporte de cargas estava passando pelas ruas estreitas da comunidade. E nessa rua há uma escola, por isso, muitas crianças costumam caminhar por ali. Quando visitamos o lugar, vimos que o transporte de cargas, com o objetivo de diminuir o tempo de jornada, ocupava essas ruas pequenas e secundárias em vez de ocupar a via principal. Isso era possível porque essas ruas tinham espaço para tal, quando não deveriam ter. Então, o que realizamos foi implementar, com o urbanismo tático, um novo desenho da rua e, posteriormente, construímos essa mudança. Essa é a maneira mais rápida de fazer intervenções, e isso vai melhorar a segurança do entorno da escola, das pessoas que habitam essa comunidade e das crianças. Dessa forma, os transportes de carga que utilizavam esse percurso tiveram que acessar a via principal, como deveria ser desde o começo.
Que efeitos são percebidos depois de realizadas essas mudanças?
Quando realizamos essas intervenções, é muito especial ver como muda o comportamento das pessoas nas ruas dessas comunidades, locais onde as crianças talvez nem saíssem para brincar, e hoje elas saem. Isso é algo imediato. Os moradores nos veem demarcando com outro desenho a rua, apenas com tinta e fios, se dão conta da solução, e entendem o porquê. Se fizéssemos o desenho em um escritório e depois fôssemos lá aplicar, eles não saberiam o que estava sendo proposto e poderiam seguir preocupados. Mas, enquanto desenhamos no próprio espaço e com a participação deles, eles se sentem donos do projeto e satisfeitos daquilo que estavam reivindicando: a segurança da comunidade.
Em palestras, você já disse que a melhor forma de avaliar a qualidade de um espaço público é pelo número de mulheres e crianças que o frequentam. Por quê?
As cidades, lamentavelmente, foram desenhadas por homens e para homens. Homens jovens em idade produtiva. E temos que retomar e transformar nossas cidades, nossas ruas, entendê-las [como funcionam] ao longo de todo dia, poder iluminar e clarear as ruas. Quando avaliamos os espaços e vemos que não há mulheres e crianças, esse é um grande indicador de que o lugar não é seguro. Porém, é exatamente o contrário do que acontece com a mobilidade nas cidades, pois as mulheres realizam trabalhos de cuidado, são as pessoas que mais se movem e mais transitam diariamente. Elas exercem uma mobilidade mais eficiente e mais extensa que a dos homens, que costumam fazer poucos trechos, como casa-trabalho ou casa-escola. As mulheres fazem mais trechos de viagem e, também está comprovado, caminham mais que os homens. Portanto, temos que transformar as ruas para as mulheres. O trabalho de urbanismo tático começa quando falamos com as mulheres sobre os projetos. Nós somos apenas colaboradores e aliados.
Qual o impacto do urbanismo tático sobre o comportamento da população?
Nosso entorno muda nosso comportamento. Como mudar de comportamento se o entorno não muda? Ambos caminham juntos, em harmonia. Por isso nós transformamos espaços. Eu não chego a mudar as pessoas, porque eu não conheço a história de cada uma e suas necessidades, mas, busco transformar espaços para gerar outras oportunidades a uma comunidade. É uma forma humilde de nos aproximarmos e gerar oportunidades. Sem julgar, simplesmente propondo mudanças, transpondo barreiras de medos e de negatividade a partir da participação do entorno.
O que ainda impede que ferramentas como o urbanismo tático e outras alternativas sejam implementadas por governantes?
O grande desafio para os governos é que entendam o que está acontecendo nas ruas. Nosso trabalho [como funcionários públicos] é difícil porque nossas administrações nos pedem que estejamos dentro dos escritórios, e o primeiro desafio é mostrar aos profissionais que eles precisam ir para as ruas e vivenciá-las. Quando nós temos a responsabilidade de construir um espaço, de transformá-lo, de realizar sua manutenção ou transformação, temos que ir às ruas. O contato com a cidadania é o mais importante. Esse é um exercício prático. Como quando somos atletas e treinamos para o dia oficial da partida. É impossível ganhar uma partida com apenas uma pessoa. Sempre tem que haver um trabalho em equipe. E temos que entender que essa equipe não é a equipe do governo ou dos cidadãos, mas de todos.
Você é otimista quanto ao futuro das cidades?
Acredito que as cidades continuarão crescendo e que podemos fazer algo melhor a respeito. A pandemia nos ensinou tantas coisas, foi triste perder tantas pessoas importantes em nossas vidas e em nossas comunidades, mas a pandemia demonstrou que sim, podemos promover mudanças significativas; sim, podemos cuidar uns dos outros; sim, podemos sobreviver ao que vier a acontecer; sim, podemos deixar de usar os carros; sim, podemos nos cuidar em nossas casas e conviver de outra maneira bem diferente. Espero que as pessoas possam ler essa mensagem e deixar de lado, um minuto, as redes sociais, tirar um minuto para pensar como podemos viver de maneira melhor. E que o benefício que eu estou gerando é imediato e conectado com os benefícios do meu entorno. É um efeito cascata.
Assista ao vídeo com trechos da entrevista com o urbanista Erik Cisneros, realizada no Sesc Belenzinho
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