Inezita Barroso: voz da nossa terra

28/02/2025

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Há cem anos, nascia Inezita Barroso, artista que se tornou uma das maiores referências da música caipira e estudiosa do folclore brasileiro 

POR LÍGIA SCALISE

Leia a edição de MARÇO/25 da Revista E na íntegra

No dia em que o programa musical Viola, Minha Viola, da TV Cultura, comemorava 30 anos no ar, em 2010, Inezita Barroso (1925- 2015), internada num hospital, anunciou: “pode contar comigo, porque eu estarei lá”. O recado foi dado ao roteirista e produtor Aloísio Milani. Ninguém acreditava que a apresentadora, mesmo hospitalizada, pudesse conduzir o programa. Contudo, contrariar dona Inezita era tarefa impossível. “Se alguém ainda tinha dúvidas da força dessa mulher, mais uma vez ela dava seu recado. Inezita Barroso fugiu do hospital, passou em casa, colocou vestido e batom vermelhos, subiu ao palco e apresentou o programa com o sorriso e a simpatia que eram sua marca registrada”, relembra Milani.

Essa é apenas uma das muitas histórias que compõem a vida de Ignez Magdalena Aranha de Lima, a menina nascida em 4 de março de 1925, no bairro da Barra Funda, na capital paulista. “Era Carnaval, e no instante em que ela chegou ao mundo, passava na rua de sua casa o bloco que depois viria a se transformar na escola de samba Camisa Verde e Branco. Inezita dizia que esse foi o primeiro som que ela escutou e, a partir daí, nasceu também a sua paixão pela música”, conta Paulo Freire, violeiro, compositor e escritor.

O talento musical de Inezita se manifestou desde cedo, durante as férias nas fazendas dos tios, no interior de São Paulo. A paixão pela viola caipira foi à primeira vista – embora precisasse ser escondida, pois a família considerava “feio ser artista”. “Ela inventava que ia ver ‘a vaca nova que chegou’, quando, na verdade, corria para se meter na roda de viola entoada pelos matutos da roça”, conta Milani. Nas fazendas, a menina absorvia diversas manifestações populares e, ao retornar à capital, tocava em festas e reuniões. “Passei a mão na viola e comecei a tocar, ignorando os comentários que diziam ‘mulher não toca viola’. Ah, toca, sim!, e eu provei”, disse, em entrevista para o documentário Inezita (2018), de Helio Goldsztejn.

Nascida em berço tradicional, Inezita foi a primeira da família a se arriscar na carreira artística. O talento corria no sangue, herança da avó Maria Magdalena, conhecida como Zica, que também possuía um contralto perfeito. Conta-se que Olyntho de Lima, avô de Inezita, adorava ouvir sua esposa tocar piano
e cantar. Em certa ocasião, ao ser convidada para uma festa beneficente, Zica arrumou-se, colocou um elegante vestido vermelho e, ao ouvir o marido dizer: “está bonita demais, não vai cantar em lugar nenhum”, resistiu. Quando por fim cedeu, decretou: “eu não vou, mas você jamais me ouvirá cantar novamente”, trancou o piano, jogou a chave no mar e cumpriu a promessa.

Inezita, que adorava escutar essa história nas temporadas de férias no campo, ficava ao lado da avó, cantando para ela. Quando a menina não sabia a música, Zica cantava para ensinar a neta, o que era um deleite para todos. E foi a partir dessas viagens que aprendeu causos e canções que a fascinaram. Em entrevista a Arley Pereira, autor do livro Inezita Barroso, a história de uma brasileira (2013), ela relembra: “diante de tantas manifestações artísticas, acrescidas pelo flagrante que me deram filando as aulas de violão de tia Lotinha, meus pais perceberam que meu caminho era a música e me entregaram para a professora Mary Buarque, que me abriu as primeiras portas, ensinando declamação, dicção, violão e boas maneiras. Com ela aprendi tudo o que era necessário para ser uma moça fina. Quer dizer… quase tudo. Nunca consegui aprender muito bem as tais das boas maneiras”.

Entre as imersões na roça, aulas na cidade, participações no coral da igreja e na rádio popular, a menina prodígio foi crescendo e absorvendo toda a música que fazia os seus olhos brilharem. Foi na adolescência, época em que frequentava o colégio Caetano de Campos, que conheceu Adolfo Barroso, acadêmico de direito com quem namorou durante quatro anos. Ao lado dele, Inezita participou de bailes de clubes paulistanos, festinhas e reuniões. Fez ainda grandes amigos, incluindo seu futuro cunhado Maurício Barroso (1925-2002), ator do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e de cinema, que foi determinante para sua carreira.

Esse período marca o ingresso de Inezita na primeira turma de biblioteconomia da Universidade de São Paulo (USP). “Fez estágio na biblioteca da faculdade
e começou a devorar obras de Graciliano Ramos (1892-1953), Jorge Amado (1912-2001) e, com o tempo, todos os livros de Mário de Andrade (1893-1945), de quem era muito fã. Assim, firmava-se uma consciência brasileira definitiva”, afirma Paulo Freire.

Na contramão das convenções
O casamento com Barroso foi realizado em 1947, após Inezita receber o diploma. Nesse período, ela passou a ter mais liberdade para a arte. Seus sogros, amantes da música, criaram uma tradição semanal em casa, reunindo estrelas do rádio e teatro aos sábados. Segundo Paulo Freire, o violão quase sempre terminava nas mãos de Inezita, que encantava a todos com sua voz firme e repertório caipira.

Em 1949 nasceu sua única filha, Marta, que ficou sob a guarda da mãe, após a separação do casal em 1956, fato inédito e noticiado pelo jornal na época. “Desde cedo, percebi que minha mãe era muito diferente das demais. Não se falava de feminismo e empoderamento naqueles tempos, mas hoje vejo que ela já era uma mulher dona de si por essência”, recorda Marta.

Mesmo com o fim do casamento, Inezita manteve o sobrenome artístico Barroso, com autorização do ex-sogro. Apesar do término, o relacionamento foi muito frutífero, pois, segundo Paulo Freire, vários encontros de artistas aconteciam na casa do casal. “Nessas reuniões, ela se mostrava uma grande intérprete de Noel Rosa (1910-1937). Uma noite, o renomado produtor Alberto Cavalcanti (1897-1982) a viu cantando no TBC e convidou-a para um teste de atriz para o filme Angela (1951)”, conta Freire. Em 1952, ela foi ao Nordeste, teve sua primeira atuação profissional e cachê como cantora – numa turnê que se estendeu por dois meses. O sucesso a levou a receber convites para diversas apresentações e permitiu tomar contato com a cultura popular da região.

No mesmo ano, Inezita ingressou na Rádio Nacional e, em 1953, gravou seu primeiro disco comercial de grande sucesso – de um lado, “Moda da Pinga” e, do outro, “Ronda”, do amigo Paulo Vanzolini (1924-2013). Em 1954, estreou na TV Record com o programa semanal Vamos Falar de Brasil (1954-1962). Inezita consolidava-se nos palcos, discos, rádio, cinema e TV, tudo ao mesmo tempo.

(Foto: Paquito / Acervo Sesc Memórias)

“O troféu Roquete Pinto significou, em certo momento, o mesmo que um Oscar de Hollywood. No auge de popularidade, Inezita Barroso ganhou seis deles e, em 1960, com o sétimo, alcançou o patamar de hors-concours, levando o Roquete Pinto de Ouro”, conta Arley Pereira. Entre outros prêmios, foi reconhecida como melhor atriz ao conquistar o prêmio Saci, por sua atuação em Mulher de Verdade (Alberto Cavalcanti, 1955). Também era convidada para recepções de chefes de Estado.

Rumo à reinvenção
Com o surgimento de novos gêneros musicais, nos anos 1960 – como a Jovem Guarda – seu vozeirão e sua viola passaram a ser vistos como antiquados e, após oito anos, seu programa chegou ao fim. “Foi uma quebra na nossa carreira. Aí pediam: ‘grava uma coisa assim, alegre, para dançar, porque está na moda’. Jamais. Não estou cantando para ninguém dançar. Ou gravo o que quero ou não gravo”, declarou em entrevista para Arley Pereira. Assim começou um período de “geladeira” da carreira de Inezita Barroso. Ainda assim, seus shows continuaram, sobretudo no interior do Brasil. Ela também se reinventou como professora de violão.

Em 1975, foi convidada para participar da peça Romaria, na qual interpretaria a canção do músico Renato Teixeira. A obra fez sucesso em diversas cidades, e, dois anos depois, a música estourou na voz de Elis Regina (1945-1982). Com o caipira voltando a chamar a atenção, esse era o prenúncio de boas novas.

Minha viola na TV
“Você não vai sumir mais. Você vai ficar aqui fazendo programa com a gente”, disse Júlio Lerner (1939-2007), jornalista e produtor da TV Cultura, garantindo o retorno de Inezita à telinha em participações especiais. Poucos anos depois, em 1980, Nydia Licia (1926-2015), diretora musical da emissora, convidou a artista para comandar um novo programa: Viola, Minha Viola. Inicialmente apresentado por Nonô Basílio (1940-1997) ao lado do radialista Moraes Sarmento (1922-1998), o programa passou a ter Inezita como parceira de Sarmento. Após o falecimento do amigo, ela continuou sua missão no comando do programa, trabalho que fez por 35 anos. Foi ali que ela consagrou seu bordão: “Êta, programa que eu gosto!”. Milani lembra que Inezita era zelosa com as músicas e artistas que participavam do programa “Ninguém ousava desobedecê-la. Ela queria provar o valor da música e da cultura caipira”.

No palco do Sesc Itaquera, em junho de 1999, a artista cantou clássicos da carreira em celebração às festividades de São João.
(Foto: Acervo Sesc Memórias)

Semear talentos
Para José Hamilton Ribeiro, jornalista e autor de Música Caipira – as 270 Maiores Modas (2015), “Inezita Barroso foi uma grande personagem, sempre elegante, simpática e antenada aos rumos da cultura popular. Ela garimpava boa música e mostrava um Brasil que muitas vezes não era visto”. Não à toa, era conhecida como a madrinha dos violeiros. Mary Galvão, da dupla Irmãs Galvão e contemporânea da cantora, diz: “Se a música caipira resiste até hoje, devemos muito a ela, que não admitia nada fora do estilo tradicional”. Bruna Viola, da nova geração, relembra: “Comecei a tocar viola por vê-la em ação. Ela abriu caminhos para que outras mulheres pudessem trilhar a música caipira e hoje eu também posso seguir esse legado inspirando muitas crianças”.

Sempre apaixonada por compartilhar seus estudos, Inezita ministrou palestras em universidades, escolas e clubes, o que lhe abriu portas para lecionar folclore em conservatórios e universidades. Em 2005, foi agraciada com o título de Doutora Honoris Causa em folclore brasileiro. “Ela despertava respeito e encantamento com sua voz imponente, não só para cantar, mas para defender seus princípios e seu espaço. Inezita Barroso envelheceu em frente às câmeras e nos palcos com dignidade, carregando a bandeira em que acreditava”, lembra Sheila Budney, roteirista do Viola, Minha Viola.

Inezita faleceu aos 90 anos, em 8 de março de 2015, vítima de insuficiência respiratória. O destino quis que sua despedida ocorresse no Dia Internacional da Mulher e num domingo – dia do Viola, Minha Viola. Ela havia deixado o programa há apenas três meses. “Sinto muito orgulho de ser filha de Inezita Barroso. O ensinamento que ela deixou é de que devemos lutar pelas coisas que acreditamos. Isso dá sentido à nossa existência, como fez minha mãe. Que bom que ela nunca desistiu de seu talento”, declara Marta. O legado de Inezita é vivo e eterno, além de difícil de contabilizar, como diz Paulo Freire: “percebo que ainda vai custar um bocado para conseguirmos ter a dimensão real do que ela representa. Por sua história de vida, sua postura artística e pelo chão que oferecia a todos nós. Inezita Barroso é a voz da nossa terra”.

para ver no Sesc
CENTENÁRIO DE INEZITA

Entrevista com Inezita Barroso: Inezita em seis momentos; Revista do Comerciário; Ano V; n°43; novembro-dezembro de 1960; São Paulo.

Espetáculos, oficinas, rodas de viola e outras atividades tiram o chapéu para a artista que alçou a cultura caipira para todo Brasil

Em comemoração aos cem anos do nascimento de Inezita Barroso, as unidades Sesc 24 de Maio e Sesc Pinheiros realizam, ao longo do mês, uma programação especial para celebrar a vida e o legado da artista. As atividades incluem shows, homenagens, contação de histórias, rodas de prosa e de violeiras, espetáculos teatrais, oficinas infantis, aula-espetáculo.

No Sesc 24 de Maio, é realizada a segunda edição do projeto Viva Viola! Centenário de Inezita Barroso. De 7 a 30/3, a programação apresenta as violeiras Kátya Teixeira e Renata Mattar, Mary Galvão e Mario Campanha, Fabíola Beni e o grupo Violeiras Fora da Caixa, além de Mariângela Zan. Também integram as homenagens a Família Du Catira, a Roda de Cururu e a Roda de Violeiras, com Adriana Farias, Juliana Andrade, Kátya Teixeira e Vitória da Viola, garantindo uma celebração vibrante ao centenário de Inezita. Para as crianças, as atividades incluem o espetáculo teatral Ói lá, Inezita, com a Cia Cênica, e a vivência Brincares Caipiras, com a Cia Regar.

Já no Sesc Pinheiros, a programação Inezita Barroso – Uma Prosa Musicada conta com os violeiros Ivan Vilela e Carol da Viola, além de um show especial
da musicista Lais de Assis. O encerramento fica por conta de um grande encontro entre o violeiro e contador de causos Paulo Freire, a violeira e cantora Adriana Faria e a Orquestra Paulistana de Viola Caipira, no show Inezita Barroso – A Voz de Nossa Terra.

Sesc 24 de maio
Viva Viola! Centenário Inezita Barroso
De 7 a 30/3. Grátis.

Sesc Pinheiros
Inezita Barroso – Uma Prosa Musicada
De 7 a 12/3. Grátis.

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