Nos meses de outubro e novembro o Sesc Bertioga realizou o curso de Introdução ao Turismo de Base Comunitária, na Reserva Natural Sesc Bertioga.
Os encontros que acontecem aos sábados, pretendem estimular a reflexão sobre o Turismo de Base Comunitária a partir da perspectiva das comunidades, compreendendo as relações e dinâmicas sociais que atravessam essas comunidades, muitas vezes marcadas por uma trajetória de desigualdades, lutas por território e exclusão. Olhar para o turismo a partir dos “avessos” é o que propõe a pesquisadora Mariana Tomazin, doutora em Turismo pela Universidade de São Paulo.
É assim que a Vila da Mata, comunidade multicultural de Bertioga, que desenvolve o trabalho de Turismo de Base Comunitária desde 2018, encontra seu direito de existir e resistir em Bertioga. Maura Pereira, líder comunitária da Vila da Mata, e Mariana Tomazin conduzem uma caminhada por essa trajetória, no artigo seguinte.
Por Mariana Tomazin e Maura Pereira
O Turismo é um fenômeno social, com fluxos de pessoas, dinâmicas, divisas, impactos. Desloca questões objetivas da vida concreta e também aspectos subjetivos. O Turismo não trata apenas de um número determinado de pessoas. O lugar das práticas turísticas são os territórios, que não podem, nem devem ser reduzidos a produtos de prateleiras. Ter esse olhar e compreensão do Turismo também permite assumir suas contradições e complexidades.
A reflexão aqui é para reconhecer que o Turismo não é “vilão” nem “salvação”, mas um fenômeno que permite a reprodução do capitalismo, do racismo, do patriarcado, de diversas lógicas opressoras. Por ser parte das sociedades também é espaço onde desigualdades se constituem e se reproduzem. E problematizar tais desigualdades em nossa sociedade brasileira é mais do que urgente, pois estas dizem respeito ao nosso passado, assim como na mesma medida tratam das práticas históricas no hoje e, sobretudo, do futuro. E o futuro demanda urgentemente por um projeto político engajado que proponha condições de adiar o fim do mundo e segurar o céu, como instigam as lideranças indígenas Ailton Krenak (2019) e Davi Kopenawa (2015).
Propomos aqui um exercício didático, mas também poético, de pensar o bordado para refletir o Turismo. No bordado cada elemento é escolhido – seu desenho, as linhas que serão utilizadas, o pano que se apresenta como mais adequado, os pontos que permitem o contorno, o preenchimento que se deseja, o bastidor que melhor se adequa a necessidade. As formas, as ferramentas, as cores, os materiais. Escolhas. Tudo é pensado, criado e escolhido. Há também uma estética nessa criação em que o belo, aquilo que se dedica para ela principal” e seu avesso, que ocupa o outro lado, é aquela parte que muitas vezes não é valorizada, nem se quer é vista.
Na oportunidade de apreciar um bordado, é justamente no avesso que se reconhece como a arte foi feita e há tanta boniteza nessa leitura. O avesso conta uma história, conta sobre o traçado, sobre as escolhas. Mas para muitas pessoas o avesso não corresponde à estética do que é ou deveria ser “belo”. Deve ser tampado, escondido, invisibilizado. E assim questionamos, será que nas práticas turísticas também não acontece essa mesma reprodução? O que é criado para existir e aquilo que deve ocupar a invisibilidade? Que partes são negadas pela hegemonia do Turismo?
A ideia não é apresentar respostas. Mas sim, reflexões. E por isso convidamos a leitura do relato do turismo que acontece na Vila da Mata (Bertioga – SP) e que talvez em sua bagagem te leve a refletir sobre suas próprias caminhadas em outros contextos.
Bertioga é um município localizado no litoral paulista, que é considerado estância turística desde 1993, mas tem em sua história registros de fomentos para a construção de loteamentos de residências de uso ocasional desde meados da década de 1940, com a finalidade de atender elites provenientes da capital do estado e de outras cidades metropolitanas. Não à toa, o maior loteamento residencial brasileiro voltado ao veraneio se encontra no município.
A biodiversidade da região do litoral norte paulista é enorme dada àa relevância ambiental por ser reduto de uma parcela significativa do bioma Mata Atlântica, assim como a etnodiversidade também é plural, com populações caiçaras, quilombolas e indígenas. Mas a região sofre com diversos aspectos negativos e predatórios das dinâmicas de transformações por conta de fluxos turísticos, como – a especulação imobiliária; a sazonalidade; o aumento dos preços nas altas temporadas; condições de trabalho precárias, temporárias e mal remuneradas; a falta de uma política local de turismo integrada às pastas de trabalho, planejamento urbano e promoção social em detrimento de uma forte política de marketing. Assim como também sofre com mudanças e impactos da indústria do petróleo.
Para ilustrar o cenário de enormes disparidades em 2010, de acordo com dados do Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, 62,18% dos domicílios particulares permanentes de Bertioga eram de uso ocasional (BERTIOGA, 2021). Em pesquisas recentes a partir dos dados do Cadastro Único, 50% da população do município se encontra com algum grau de vulnerabilidade (CECAD, 2023).
Esses breves dados permitem indagar: que desenvolvimento é esse que tem sido dinamizado no território com profundas desigualdades sociais? Bertioga já ocupou listas entre o metro quadrado mais caro do país, ao passo que, tem problemas sérios e complexos acerca da regularização fundiária e de acesso a serviços básicos para uma parte significativa de sua população. Ainda, vale destacar, que o território de Bertioga é marcado por áreas de preservação do meio ambiente, que correspondem a quase cerca de 90% do território e estão incluídas na Reserva da Biosfera da Mata Atlântica (GAIA CONSULTORIA E GESTÃO AMBIENTAL, 2014; INSTITUTO PÓLIS, 2012).
E é nesse contexto que a Vila da Mata, lugar da caminhada que se pretende com esse texto, apresenta sua iniciativa de Turismo de Base Comunitária (TBC). A Vila da Mata historicamente tem sido negligenciada pelo poder público, que nunca a considerou como parte pertencente do mapa da cidade. São cerca de 150 famílias, com um total aproximado de 300 moradoras e moradores que vivem na comunidade, grande parte oriunda de outros estados e municípios, que foram para Bertioga para trabalharem na construção civil e na prestação de serviços.
Em 2010 houve a criação do Parque Estadual Restinga de Bertioga (PERB), que não considerou a existência da Vila da Mata, assim como de outros núcleos. O PERB é uma unidade de conservação de proteção integral, ou seja, não prevê ocupações humanas. Durante o processo de criação do PERB nenhuma das comunidades foi informadas ou consultadas. Desde então diversas lutas foram travadas. Em 2018 na construção do Plano de Manejo do PERB, que contou com a participação das comunidades, foi reconhecido o direito de permanência, pois são ocupações humanas anteriores à criação da unidade de conservação. Contudo, ainda aguardam os trâmites burocráticos sobre a delimitação do traçado do PERB.
A luta pelo território teve uma comunidade organizada em várias arenas de decisão política. Dessa forma, a Vila da Mata atua para tornar melhor o lugar em que moram. Já que não faziam parte do mapa da cidade, decidiram construir o próprio mapa. A rua principal se chama Avenida dos Tucanos e as demais ruas levam nomes de pássaros, escolhidos democraticamente pelo grupo de moradores de cada rua. Há também a Praça Bacurau, que é pássaro, mas também remete à crítica social feita pelo filme nacional que tem o mesmo nome. A limpeza das ruas é feita pelas moradoras e moradores por meio de mutirões. A construção da lixeira, um lugar para acondicionar os resíduos sólidos, também aconteceu da mesma forma. No passado a entrada da comunidade tinha um buraco cheio de lixo e agora conta com a Horta Comunitária para dar as boas-vindas a quem chegue.
Longe dos serviços centrais do município, organizaram uma biblioteca comunitária com projeto de rodas de leitura para crianças e aulas de alfabetização para adultos. O campinho de futebol, que durante o dia é espaço para as crianças brincarem, em algumas noites se torna cinema pelo projeto Cine Campinho, democratizando o acesso ao lazer e a cultura. Ao lado do campinho de areia há um banheiro seco, construído com apoio de parceiros, que fica disponível nos eventos que são promovidos pela comunidade. Um espaço coletivo também foi construído a partir de uma oficina de longa duração de bioconstrução, promovida pelo Sesc Bertioga.
Muitas sementes prosperam na Vila da Mata e o TBC é mais uma, que vem somar e está sendo germinada e cuidada desde 2018 para cumprir com os objetivos, tanto como possibilidade de geração de renda, como forma de valorizar a história das lutas da comunidade, seu direito pelo território e seu direito de existir. O Sesc Bertioga é parceiro da Vila da Mata em muitas ações, projetos, eventos e antes da pandemia demonstraram o interesse no roteiro para compor a programação cultural da instituição, o que foi retomado em 2022 por meio do programa de Turismo Social. O trajeto estimado da instituição até a Vila da Mata é de cerca de 30 minutos e turistas interessados se inscrevem previamente para participarem da atividade, que tem em média 3 horas de duração. Os moradores de lá, que são monitores ambientais, são responsáveis em conduzir o grupo nessa experiência acompanhando os visitantes do Sesc até a comunidade.
Ao chegar na Vila, as boas-vindas acontece dentro do Espaço Cultural, onde é apresentado o contexto do território, a história de ocupação do local pela família Gumercindo Aleixo entre as décadas de 1960 e 1970, a forma como ocorreu a criação do PERB em 2010, as diversas lutas da comunidade, os projetos sociais. Também contextualizam sobre o momento da história em que se encontram na atualidade. Um mapa do município permite o reconhecimento territorial pelos turistas sobre Bertioga. Ao mostrar o traçado estabelecido na criação do PERB em 2010, que negou a existência da Vila da Mata, mas que contorna um loteamento expressivo, eis que surgem indagações como: “Mas como que pode?” “Não tá certo isso não”, “Tá errado isso”. O sentimento de incômodo se manifesta ao reconhecerem coletivamente as linhas de exclusão, que cortam e determinam diferentes realidades em uma mesma cidade. Uma aula prática e didática sobre o direito à cidade acontece em meio ao grupo, assim como outros conhecimentos são partilhados ao contarem sobre a construção coletiva do projeto do espaço cultural com técnicas ecológicas de bioconstrução.
A caminhada pelo território contempla aves e árvores que são simpaticamente apresentadas. O percurso conta também com um café da manhã no quintal da casa da Dona Laura e do Sr. Nelson, moradores mais antigos da comunidade. A recepção e o tema da refeição são decididos previamente, com rotatividade para apresentar as tradições do caldeirão cultural que é a Vila da Mata, ora são comidas nordestinas (beiju, cuscuz de arroz, bolo de milho) ou preparos com insumos da própria região (pão de taioba, geleia de araçá) com cheiros e sabores plantados lá da Horta Comunitária também (bolachas de hortelã, chá de erva cidreira, chá de manjericão). Ainda numa mesinha ali no quintal, produtos diversos são vendidos.; quem da comunidade tem interesse em comercializar algo, basta levar com o preço para compor a mesa.
A caminhada de retorno acontece e a última parada é na Horta Comunitária sob a condução da Dona Beth, que apresenta os canteiros e vai contando conforme anda o que é o quê e partilha generosamente segredos nos cuidados com a terra e com as plantas. De maneira emaranhada uma experiência turística acontece e engaja muitas trocas – de saberes, sabores e visões sobre o mundo.
A Vila da Mata é múltipla e possui uma história repleta de lutas – pelo território, em melhorar o espaço que habitam, em melhorar as condições de suas moradias, de seus trabalhos, de seus futuros. Lutam contra o preconceito e contra as opressões, que são naturalizadas, mas fazem parte de um movimento concreto, que privilegia interesses de alguns em detrimento da completa exclusão e negação de muitos outros. Lutam para cuidar e plantar – não apenas para com o meio ambiente, mas também semeiam e adubam ideias, crianças, jovens e adultos. Lutam por direitos básicos, onde a Constituição Federal se apresenta apenas como discurso. Lutam contra a colonialidade do ser, do saber e do poder. A Vila da Mata não só existe, mas sua existência é no plural, pois é feita de gente diversa, é um “misto cultural” como se apresentam.
Cada iniciativa de TBC é única, pois tem uma relação profunda com seu território, sua história, sua cultura, sua gente e seu modo de ser. Cada TBC é um organismo vivo, pulsante. E vale enfatizar que são muitos os desafios enfrentados – os conflitos internos, a falta de recursos para investimento em infraestruturas e qualificações, dificuldades na promoção e comercialização, as dinâmicas e pressões externas, a especulação imobiliária, entre muitos outros aspectos. O relato aqui ilustra parte do que é o TBC da Vila da Mata, mas cada pessoa em sua singularidade o vivencia de uma forma.
Quem nunca conheceu a Vila da Mata como a experiência do TBC pode rotular sua história como sendo apenas uma, recheada de estereótipo e preconceito. É no encontro, no acolhimento ao outro, a partir de uma escuta ativa e respeitosa que as aprendizagens acontecem e são recíprocas. O TBC é uma construção permanente, sua organização exige um cuidado constante com muito diálogo e superação de conflitos. Ter o objetivo da iniciativa como algo coletivo é fundamental e ao mesmo tempo é extremamente desafiador, mas sua prática permite que diversas histórias sejam conhecidas e reconhecidas.
Nesse sentido vale destacar a reflexão crítica poética-potente da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie (2019, p. 19): “As histórias importam. Muitas histórias importam. As histórias foram usadas para espoliar e caluniar, mas também podem ser usadas para empoderar e humanizar. Elas podem despedaçar a dignidade de um povo, mas também podem reparar essa dignidade despedaçada”.
Além do grupo diverso de turistas oriundos do Centro de Férias do Sesc Bertioga, o TBC da Vila da Mata já alcançou pesquisadores e pesquisadoras, estudantes, compôs programação de cursos, acolheu observadores de aves, semeou perspectivas de educação ambiental em crianças, acolheu e recebeu moradores e moradoras da cidade. Cada pessoa caminhou e sentiu de um jeito único. Assim como cada pessoa que participa do TBC, de maneira direta ou indireta.
Encerrando essa caminhada aqui, fica a reflexão de que a dimensão política do Turismo assumindo seus avessos é acionada quando nos convida a perceber as exclusões sociais de uma cidade tão privilegiada por suas belezas naturais, assim como ensina sobre a diversidade de ser e estar nesse mundo. E o TBC tem permitido anunciar a pluralidade das existências e denunciar invisibilidades, germinando e florescendo em muitos territórios e comunidades.
O Sesc Bertioga, ao promover o fortalecimento do Turismo de Base Comunitária, em especial a iniciativa na Vila da Mata. materializando para que mais turistas participem, impacta diretamente na compreensão de que a luta por um mundo melhor é coletiva, como nos ensina a Vila da Mata. E que sim, é possível outro Turismo, mais justo, inclusivo, responsável e educativo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
BERTIOGA. Prefeitura do Município de Bertioga. Disponível em: <https://www.bertioga.sp.gov.br/cidadao/historia>. Acesso em: 18 maio. 2021.
CECAD. CadÚnico. Disponível em: <https://cecad.cidadania.gov.br/painel03.php#top>. Acesso em: 5 abr. 2023.
CHIMAMANDA, A. N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
GAIA CONSULTORIA E GESTÃO AMBIENTAL. Caracterização do território e indicadores socioeconômicos para a revisão do Plano Diretor de Desenvolvimento Sustentado de Bertioga. Disponível em: <https://www.bertioga.sp.gov.br/wp-content/uploads/2014/05/Caracterizacao-_terrritorio_resumo.pdf>. Acesso em: 29 abr. 2022.
INSTITUTO PÓLIS. Litoral sustentável desenvolvimento com inclusão: Resumo Executivo de Bertioga. São Paulo: Instituto Pólis, 2012.
KOPENAWA, D.; BRUCE, A. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
VILA DA MATA. COMUNIDADE VILA DA MATA (@comunidadeviladamata) • Fotos e vídeos do Instagram. 2024.
TOMAZIN, Mariana. Linhas e avessos do Turismo: entre situações-limites e inéditos viáveis. Aprendendo junto-com e a partir da Vila da Mata, Bertioga/SP. (Tese). Programa de Pós-graduação em Turismo: Universidade de São Paulo, 2023.
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.