Intruso

29/06/2024

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POR SHEYLA SMANIOTO

ILUSTRAÇÕES JULIA JABUR

Leia a edição de JULHO/24 da Revista E na íntegra

Ninguém nunca aperta a campainha da entrada do bar e restaurante Pito’s, pelo menos ninguém que mora por essas bandas. O homem que chega, sim, aperta e fica olhando o tempo, um troço esquisito, “é só sentar aí que a gente já vai atender”, o garçom fala secando as mãos em um pano de prato, os olhos medindo, ô bicho folgado, todo mundo sabe que a campainha está ali para ser deixada em paz, ainda mais num calor desses. O estranho caminha entre as mesas atravessa os olhares que o cercam como água, uma água densa, uns olhares curiosos (alguns diriam “indignados”) com a falta de educação do recém–chegado, a folga pra bem dizer a verdade, ele vai para o balcão, para o final do balcão – as mães puxam seus filhos para junto do corpo – ele realmente não é daqui ou está querendo arrumar caso, porque vai sentar bem ao lado da menina da Sônia. A almofada bufa quando ele se arrasta na borracha do banquinho até conseguir uma posição boa. A menina da Sônia como sempre está escondida atrás de um livro enorme, grande demais, um livro que desce como a janela de um carro sendo aberta. Ele – o estranho – acena com a cabeça. A cidade inteira para de respirar. Tudo a seguir acontece pendurado num instante: os ventiladores expirando sem pausa. O calor esquecendo o sal na pele. Os olhos famintos das pessoas será que ela vai riscar o rosto dele com a faca será que ela vai estrangular ele como a mãe dela fazia junto da onça – quando será que a onça vai descer (foi ele quem não deixou a filha da Sônia quieta, a gente não fez nada)? Muita gente viu com os próprios olhos, uma geração depois da outra, não era lenda, não. Bom se fosse. Ninguém nem chegava perto da família delas, a Sônia só era a pior porque era mais nova e descansada. Desapareceu tem uns anos, como é que a filha criança ficou se cuidando sozinha? Já pensou nisso? Muita gente queria saber o que ficou na casa, se a menina dormia com a onça, se a mãe tinha juntado os pedaços das vítimas, muita gente queria entrar na cozinha e comer a comida toda delas, eles descobriram isso num dia de muita cerveja e falta de luz em mais de três cidades da região, “eu também queria”, “eu também”, os homens se olhando, mas não faziam nada disso por conta da onça. A menina? Pelo avesso arregala e tenta não olhar em volta os olhos famintos e torce para estar errada, achou que nunca ia ter que descobrir se a onça viria por ela, achou que nunca ia ter que confirmar o que ela sentia à noite antes de dormir, quando um uivo lá fora mexia uma sombra dentro da casa, achou que podia ficar bem com a fama da mãe da vó das tias, talvez eles nunca tivessem que descobrir o medo dela os dentes mordendo no meio da noite, talvez ela nunca tivesse que descobrir que por ela a onça não levantaria do sono e desceria folheando o mato, a boca faminta faminta. Mas pendurados nesse instante todos eles esperam a fera chegar, uns querendo mais que os outros, ela mais do que todos, o estranho olhando as letras do cardápio e pensando que almoçar na estrada às vezes é como pedir um prato na festa de uma família que não é a sua, você nunca sabe em que história vai acabar sujando as mãos e se perguntando como diabos foi parar naquela situação. Então a onça – a onça não veio. Mais tarde, a menina ouve o vidro quebrando, o barulho brilhante do vidro partindo em pedaços e decorando o chão da sala, corre pro quarto. Implora para o mato, tenta ouvir os passos da onça mas ouve a porta abrindo como um livro pesado, a capa contra a parede, vrum, ela engatinha para baixo da cama varrendo com os cotovelos a poeira de alguns dias uma xuxinha de cabelo uma tampa de garrafa que ela não sabe como foi parar ali, junta as mãos. Por favor, por favor. Ela não ouve o peso do passo da onça amedrontando o chão ela ouve só o silêncio atrás dos gritos das pessoas ela ouve as coisas caídas no chão os pés pesados amassando latinha com tudo o que era da mãe. Ouve até a poeira arrastando com calma muita calma as células mortas do seu braço. Mas não ouve a onça ou ouve uma onça fria pálida, uma onça chegando no quarto, derrubando suas coisinhas, como dizia a mãe, pisando nas folhas estralando suas coisinhas quebradas, não é uma onça quem caminha, quem abaixa, quem levanta a colcha, mas podia ser uma onça até o exato momento em que a menina se vê encontrada pelos olhos de cortina fechada da tia da escola e por favor por favor, não diz pra ninguém que eu estou aqui, shhh com o dedo cruzando a boca ela pede com os olhos por favor por favor com as mãos de rezar estranguladas de por favor por favor mas a tia – a tia sorri só com o queixo e puxa a menina pelos braços arrasta a tampa de garrafa vai parar do outro lado do quarto e se você olhar de cima consegue ver no chão o que as pernas dela se debatendo desenharam (nada muito poético; uma ovelha ou um prato de spaghetti, eu acho). Ela coloca a menina em cima da cama, agora elas têm quase a mesma altura. Ela pega a mão da menina quase arrancando e oferece o próprio pescoço como um pedaço só de carne, “toma, sente a minha garganta pra você entender como vai ser difícil para mim não te matar quando eu for te estrangular”, ela ri diante dos olhos atravessados da menina a boca aberta revela duas obturações do lado direito, talvez um dente faltando, “tem gente que não serve mesmo pra isso, pode segurar de verdade, sente o meu pescoço, anda”, ela está certa, eu não sirvo pra isso, eu não sirvo pra matar, eu não consigo sem nervosismo sentir com as mãos as cordas tensas de um pescoço esticado, a provisoriedade sanguínea da carne que se oferece ao risco, a onça sim conseguiria, ela saberia desarreganhar a boca nessa carne e acho que por isso acabo confundindo o pescoço com o pulso / a vibração do sangue com um barulho / as batidas do meu coração com as passadas de uma onça chegando, é só o nervoso ou o meu coração fazendo enxurrada a onça correndo no sangue descendo as montanhas dentro de mim uma fúria vermelha que a tia da escola também sente, dá pra ver. Dá pra ver porque bem na hora ela arregala os olhos, bem na hora que minha mão desarreganha meus dedos mordem seu pescoço e separam, sem gentileza, sua cabeça e seu corpo. Foi a onça. A onça que a gente às vezes nem sabe que tem.  

Sheyla Smanioto é autora dos livros Desesterro (Record, 2015) — vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, do Prêmio Machado de Assis da Biblioteca Nacional e do Prêmio Jabuti (terceiro lugar na categoria Romance) — e Meu corpo ainda quente (Nós, 2020). É formada em estudos literários e mestre em teoria e história literária pela Universidade de Campinas (Unicamp), com pesquisa sobre a relação entre escrita, corpo e sonho. 

Julia Jabur é artista visual e ilustradora que une expressão visual com narrativa escrita.
Possui experiência na área editorial e jornalística, com trabalhos realizados para publicações do Instituto Serrapilheira, para as editoras Antofágica (O curioso caso de Benjamin Button, 2022) e Biruta, e para as revistas Claudia, Exame, Veja Saúde e Pesquisa Fapesp.
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