Irene… memória e poesia 

30/07/2024

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POR ARIANE CARVALHO

Leia a edição de AGOSTO/24 da Revista E na íntegra

eu sou feito rio,
de superfícies e internalidades distintas 
há em mim lugares tão rasos 
que até uma criança pode molhar seus pés 
mas há lugares tão profundos 
que poucos não temem mergulhar 
quando a tempestade se faz em minha cabeceira 
eu transbordo e invado leitos 
de um lado, arrasto margens que se opõem ao meu passar 
dou a elas novas formas 
do outro, deposito novas existências… 

Esse é um trecho de um dos meus primeiros poemas, não o primeiro a ser escrito, mas um dos primeiros a não ser rasgado. Sim, escrever e jogar fora era meu rito particular. Eu passei a guardar o que escrevo quando minha avó materna ancestralizou, há pouco mais de cinco anos. Ela teve oito netos, mas na minha infância, éramos cinco, todos muito próximos dela. Tudo parecia girar em torno dela, estar e fazer por ela. Quando não havia mais ninguém além de nós, tínhamos nossos momentos, nossos segredos. Ela gostava de escovar o meu cabelo longo e dividí-lo em duas tranças, que caíam pelos ombros, enquanto dizia o quanto se pareciam com as tranças de sua mãe. E lá começavam as histórias que repetiu por anos, e eu gostava de ouvir.  

A literatura chegou cedo à minha vida, por urgência da memória. Os momentos a sós com ela foram diminuindo, e aprender a ler contos era minha maneira, inconsciente, de ouvir histórias e ter aquela sensação que só hoje percebo que sentia. Como minha avó sabia ler bem poucas palavras, deixei de apenas ouvir e passei a ler para ela. Quando saí da casa dos meus pais, eu esperava meu avô ir trabalhar e ia vê-la no jantar, sem contar para ninguém, apenas para comer sua comida e ouvir suas histórias. Sim… as mesmas que eu ouvia na infância. Foram suas inúmeras e repetidas histórias que me acenderam uma chama, a da ancestralidade: entender de onde viemos e quem somos. Após sua partida, busquei e busco saber sobre nosso povo. Minha avó era nascida no Oeste paulista, e descobri que minha bisavó, aquela de quem puxei as mesmas tranças, era uma filha Kaingang. Nesse período, esbarrei com o poema “Consciência Indígena”, de Márcia Kambeba, em que a primeira estrofe diz: “Consciência, cadê você / Onde está que não te vejo? / Como tu és, qual a tua cor? / Quero te conhecer (…)”. 

A literatura indígena se tornou uma conexão com memórias que não vivi, base das minhas buscas e do meu conforto, base da minha pesquisa acadêmica hoje. As escritoras indígenas me reacenderam a memória, ensinando sobre uma cosmovisão de mundo, de cuidado e de afeto que está para além de dizer sobre culturas e povos; é uma intersecção entre todas elas.  

Hoje, lendo mulheres indígenas, eu leio minha própria memória, eu as leio e leio a mim mesma. Minha avó nunca contou sobre afetos românticos entre pares, ela falava da infância, de sua mãe, da comida e do campo. Falava sobre memórias, alegrias e tristezas, que eu via saltarem de seus olhos, às vezes suas mãos tremiam e seus olhos lacrimejavam. Foram as escritas de Eliane Potiguara que me fizeram entender e memorizar essas emoções. Ler e escrever me ajudam a transformar a saudade em poesia, e as parentes escritoras me ensinam a atravessar o luto e a transformá-lo em luta e afeto. Auritha Tabajara apresenta a contação de histórias. “Minha avó me contou e eu gosto de contar”. E eu… eu escrevo porque minha avó me contou e eu quero para sempre lembrar.  

Ariane Carvalho é mestranda em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e atua como técnica de programação no Sesc Bom Retiro.   

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