A Caixa Preta de Itamar Assumpção descortinada por Luiz Chagas
Luiz Chagas é jornalista, mas desde garoto arranha sua guitarra. Aos 29 anos, começou a tocar com Itamar Assumpção, quando ele estava se lançando, no começo dos anos 1980. Acabou por se tornar um dos importantes nomes da chamada Vanguarda Paulista.
Quando Itamar Assumpção morreu, em 12 de junho de 2003, seu trabalho dito oficial estava pulverizado pelos selos pelos quais passou, alguns deles já encerrados. Nos últimos anos, a ansiedade o fizera peregrinar por estúdios de amigos, violão debaixo do braço, mil sons, mil letras, gravando, gravando. Ou seja, a obra antiga estava perdida e a nova espalhada.
Decorridos 14 anos, a família de Itamar, seus amigos e admiradores podem contar com um respeitável material, a começar pelas partituras, a biografia e os ensaios do songbook Pretobrás (Mônica Tarantino — 2006), as imagens dos filmes Daquele Instante em Diante (Rogério Velloso — 2011) e Reverberações (Claudia Pucci e Pedro Colombo — 2014), fragmentos do trabalho, letras, desenhos e poesias em Cadernos Inéditos (Família Assumpção — 2014), além do manancial proporcionado por Riba de Castro, um dos donos do teatro Lira Paulistana, onde tudo começou, responsável pelos alentados Lira Paulistana e a Vanguarda Paulista (filme — 2012) e Lira Paulistana — um Delírio de Porão (livro — 2014).
Mas a joia da coroa continua sendo a Caixa Preta (Selo Sesc — 2010), trazendo os disputados e celebrados nove discos de carreira de Itamar Assumpção, além de três póstumos: o dueto com Naná Vasconcelos, completado em 2004, e os Pretobrás volumes II & III, produzidos por Beto Villares e Paulo Lepetit, respectivamente, em 2010. Em que pesem as incontornáveis deficiências tecnológicas, afinal as fitas masters foram em sua maioria apagadas para serem reaproveitadas, o essencial está ali e serve de guia pelo caminho nada errático empreendido por Itamar em sua breve carreira.
Beleléu, Leléu, Eu — Isca de Polícia (1981) e Às Próprias Custas S. A. (1982) revelam a sua genialidade, seu processo. Praticamente todas as canções do primeiro disco, gravado em estúdio, não apenas fizeram sucesso, mas também se tornaram ícones. Luzia, Nego Dito, Beijo na Boca, Fico Louco, Baby aparecem em arranjos surpreendentes e dominados pelo piano de Luiz Lopes. Não existe banda, Itamar Assumpção tocou praticamente tudo com auxílio de poucos. No segundo disco, ao vivo, que aqui surge com uma música inédita tirada do show de lançamento, muitos desses temas são retomados. Sem o piano, os arranjos assumem a selvageria implícita das composições, os múltiplos papéis passam a ser executados por uma banda enorme e afiada, o que só alimentou a lenda de que os shows eram todos diferentes entre si, rearranjados, customizados diariamente — o que não estava distante da verdade.
A explosão consumiu o trabalho e a banda foi desfeita — excetuando-se o núcleo, Lepetit no baixo e Luiz Waack na guitarra. Nessa época Itamar conheceu o casal de poetas Paulo Leminski e Alice Ruiz e partiu para uma fase mais introspectiva que mostrou em Sampa Midnight — isso não vai ficar assim (1985), em que a bateria de Gigante e o trombone de Bocato entraram com o disco pronto. O disco seguinte, Intercontinental! Quem diria! Era só o que faltava!!! (1988), registra seu reencontro com Alzira Espíndola e o namoro que teria com a Alemanha, para onde viajou com duas formações diferentes e onde apresentaria uma ópera com o bailarino Ismael Ivo. Paulo Leminski, Alice Ruiz e Alzira Espíndola o transformaram em um compositor de canções constantemente aprimoradas por Lepetit e colaboradores.
Prenhe de músicas e cercado de parceiros, o músico reagiu ao malogro europeu desmontando a banda Isca de Polícia e formando a Orquídeas do Brasil, só de mulheres, com quem gravou a trilogia Bicho de Sete Cabeças vol. I, II & III (1993), desaguando quase uma década de composições. Como se para reequilibrar-se resolveu se dedicar a outras obras, gravando, de novo com a Isca de Polícia, Ataulfo Alves por Itamar Assumpção — pra Sempre Agora (1995), e continuou a produzir, a ser gravado por Zélia Duncan, fazer parcerias com Ná Ozzetti. Em sua próxima trilogia, iniciada com Pretobrás I — Por que que Eu não Pensei Nisso Antes? (1998), a ideia de Itamar Assumpção era voltar-se para o pop, explorar outras áreas. Quando surgiu a possibilidade de um encontro com Naná Vasconcelos, ele quis que fosse o Pretobrás seguinte, o que ocasionou um desacordo entre as partes.
Vasconcelos e Assumpção — Isso Vai Dar Repercussão (2004), lançado postumamente e produzido por Lepetit, excursionou o Brasil com Zélia Duncan fazendo as vezes de Itamar. Encerrando a Caixa Preta — Pretobrás II — Maldito Vírgula — Ritmos e Poesias no País de Adonirans e Ataulfos (2010), os Pretobrás também foram completados por Beto Villares, que fez a festa chamando de Seu Jorge a Elza Soares, passando por Curumin, as Orquídeas, Pulpillo, Rian, Scandurra, as filhas de Itamar (Anelis e Serena) e muitos outros. Pretobrás III — Devia ser proibido (2010) produzido por Lepetit e a banda Isca, com a participação de Arrigo, Zélia Duncan e Ney Matogrosso.
Recentemente a banda Isca de Polícia lançou um disco homônimo (Tratore) dirigido por Lepetit e trazendo parcerias com amigos e admiradores de Itamar Assumpção. O Volume I apresenta Arnaldo Antunes, Alice Ruiz, Péricles Cavalcanti, Ortinho, Carlos Rennó, Arrigo Barnabé, Zeca Baleiro e Tom Zé. O Volume II já está pronto. A memória de Itamar Assumpção está bem guardada.
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