J. Borges: mestre da madeira

02/01/2025

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O talento múltiplo do xilogravurista e cordelista J. Borges, que entalhou sua poesia, cor e rima na história da arte popular brasileira  

Por MANUELA FERREIRA 

Leia a edição de JANEIRO/25 da Revista E na íntegra

Um dos mais criativos narradores dos modos de vida no Nordeste foi um homem que frequentou a escola por apenas dez meses. Ali, José Francisco Borges (1935-2024) aprendeu a ler, escrever e fazer contas. Tinha doze anos e, até aquele momento, entrar numa sala de aula era um sonho distante para o menino, acostumado com a labuta na zona rural do município de Bezerros, no agreste pernambucano. De tanto pedir para ir à escola, convenceu o pai pelo cansaço, mas não pôde seguir estudando – o único professor do povoado foi chamado, da noite para o dia, para trabalhar na capital, Recife. De tão marcante, aquele período escolar agrandou alguns desejos de José, entre os quais, o de aprimorar a recém–desenvolvida caligrafia. Queria ter uma letra bonita.  

As aulas também fizeram dele um garoto ainda mais curioso. Na ausência de rádios e televisores, as notícias chegavam a Bezerros somente por folhetos de cordel, vendidos nas feiras e mercados da região. Assim, foi tomando gosto por ler os versos que encontrava cada vez que partia, com o pai, para vender tudo o que podiam nas feiras das redondezas: panelas, colheres de pau, moringas, brinquedos de barro, farinha, feijão, algodão, milho. De história em história, José passaria a assinar, pouco tempo depois, suas próprias narrativas, sob a alcunha J. Borges. Já a arte da xilogravura (gravura em relevo sobre madeira que permite uma impressão tipográfica) viria paralela à escrita, de forma autodidata, motivada pela necessidade de ilustrar suas criações em cordel. Dessa forma, emergiu um dos mais renomados xilogravuristas e cordelistas do país, reconhecido internacionalmente como um dos ícones da arte popular brasileira.  

Força criativa 

As obras entalhadas pelas mãos de J. Borges são adornadas por registros de cenas da vida sertaneja: lendas, festas, costumes, paisagens, personalidades emblemáticas e fantásticas, flores e frutas, santos e animais, seca e fartura. Um universo tão autêntico quanto grandioso em cor e encanto, construído em seis décadas de produção artística. “Quando fui para a escola, já levei cordel na bolsa, que era para aprender a ler. Eu escrevia nas pedras com carvão, lia jornal velho, papel velho que era para ampliar a minha leitura (…) Fiquei batendo a vida toda na mesma tecla e, graças aos amigos e também ao povão que gosta do meu trabalho, eu tenho meu ateliê grande, eu tenho um conhecimento do mundo inteiro e vivo bem satisfeito com a minha arte”, afirmou o artista no livro J. Borges: Entre fábulas e astúcia (Cepe Editora, 2019), da jornalista, poeta e pesquisadora Maria Alice Amorim.  

Foi o pai do artista, Joaquim Francisco Borges, que o fez se encantar, ainda criança, pelas histórias em forma de rima, cheias de musicalidade. O patriarca da família era um agricultor com leitura, que gostava de declamar as aventuras, notícias e toda sorte de assuntos que lia nos folhetos. Reunia família e vizinhos para os recitais improvisados com certa frequência, às portas de casa – seguindo, assim, a tradição oral que acompanha as narrativas de cordel, fomentada pelos trovadores medievais e também pelos contadores de histórias da tradição afro-diaspórica.  

“O cordel é, antes de tudo, fruto da oralidade, pois foi através das narrativas orais, contos e cantorias que surgiram os primeiros folhetos, tendo a métrica, o ritmo e a rima como seus elementos formais essencialmente marcantes. No entanto, um pouco semelhante ao cordel português, sob a perspectiva da poesia, o folheto nordestino é uma literatura popular impressa, conhecida como poesia de bancada”, escreveu o professor e pesquisador Josivaldo Custódio da Silva, do Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), na dissertação Literatura de cordel: um fazer popular a caminho da sala de aula, de 2007. 

Chão nordestino 

Antes de ser artista, J. Borges foi marceneiro, carpinteiro, pintor de paredes, mestre de obras, anotador de jogo do bicho e oleiro (quem trabalha com barro para produzir peças de cerâmica). Até que, em 1956, comprou um lote grande de folhetos de cordel para negociar nas feiras. Com o tempo, animou-se a escrever, sendo autor de 300 cordéis. O primeiro, O encontro de dois vaqueiros no sertão de Petrolina, de 1964, foi ilustrado por José Soares da Silva, o Mestre Dila (1937-2019), lendário xilógrafo, tipógrafo e cordelista caruaruense. Entusiasmado com o sucesso de vendas, J. Borges partiu para a segunda história, O verdadeiro aviso de Frei Damião sobre os castigos que vêm, que foi ilustrada por sua primeira xilogravura, uma representação em preto e branco da igreja matriz de sua terra natal.  

O cordel foi outro êxito de vendas e, com dois acertos em menos de um ano, a fama de J. Borges correu por toda a região. A partir dali, economizou para comprar as máquinas tipográficas com as quais editaria seus folhetos em larga escala e garantiria seu meio de vida nos anos seguintes. Como autor, A chegada da prostituta no céu, de 1981, é seu carro-chefe – são mais de 100 mil cópias vendidas até hoje. O prestígio alcançado pelo xilogravurista ganhou maiores contornos a partir dos anos 1970, quando seu nome recebeu visibilidade fora do Nordeste, impulsionado por intelectuais e colecionadores de arte de todo o país.  

Guardiões da memória 

Suas gravuras, descobertas por um público ainda maior, foram expostas em diferentes partes do Brasil e em países como França, Itália, Alemanha, Suíça, Japão, México e Estados Unidos. Mas coube ao escritor Ariano Suassuna (1927-2014) parte significativa da difusão do trabalho de J. Borges. Eles se conheceram por intermédio do artista plástico Ivan Marchetti e do escritor Liêdo Maranhão (1925-2014), outros dois apreciadores do artista pernambucano. Nas entrevistas e aulas-espetáculos que fazia em teatros e universidades pelo país, Suassuna sempre dividia com os ouvintes a admiração pela arte do mestre J. Borges, com quem compartilhava o humor afiado e o olhar satírico.   

“Nos anos 1970, (Suassuna) andou espalhando ser Jota o melhor do Nordeste e o melhor do Brasil. Entre orgulhoso e galhofeiro, Borges diz que um dia os dois se encontraram e ele, então, decidiu acrescentar a si mesmo o título de melhor do mundo. ‘Você já está ficando é meio doido, não sabe nem o que é que diz’, disparou Ariano. Os dois riram muito e sempre se divertiam ao lembrar essa história”, escreveu Maria Alice Amorim em seu livro. Para celebrar a amizade e a gratidão que nutria pelo autor de O Auto da Compadecida (1955), o xilogravurista deu o nome de Ariano a um de seus 24 filhos. Dedicou ao amigo, ainda, um cordel em que narra a chegada de Suassuna ao céu. 

Entalhar a vida 

Outro grande amigo de J. Borges foi Eduardo Galeano (1940-2015). No verão de 1990, o jornalista e escritor uruguaio desembarcou no Recife decidido a conhecer o ateliê onde Borges passava seus dias entalhando madeira e esculpindo imagens. A oficina estava a 100 quilômetros de distância da capital, às margens da BR-232, em Bezerros, base do artista até o fim da vida. Do encontro nasceu uma amizade duradoura, e aquela primeira visita impactou o escritor de tal forma que ele a descreve em um dos capítulos de As palavras andantes (1993), obra que conta com quase 200 ilustrações do pernambucano, produzidas ao longo de dois anos. 

“Uma mesa remendada, velhas letrinhas móveis de chumbo ou madeira, uma prensa que talvez Gutenberg tenha usado. A oficina de José Francisco Borges na cidadezinha de Bezerros, no interior do Nordeste do Brasil. O ar cheira à tinta, cheira à madeira. As pranchas de madeira, em pilhas altas, esperam que Borges as talhe, enquanto as gravuras frescas, recém-impressas, secam dependuradas no arame de um varal. Com o rosto esculpido em madeira, Borges me olha sem dizer uma palavra. (…) Vim ao seu ateliê para convidá-lo a trabalharmos juntos. Explico meu projeto: imagens dele e minhas palavras. Ele está em silêncio. E eu falo e falo, explicando. E ele, nada”, escreveu Galeano.  

O uruguaio só conseguiu convencer J. Borges ao trabalho em parceria depois de narrar, em detalhes, as histórias que havia imaginado publicar, ainda que parte delas fosse, naquele momento, meras ideias. “Conto-lhes as histórias de horrores e encantamentos que quero escrever, vozes que recolhi nas estradas e meus sonhos de caminhar acordado, realidades delirantes, delírios realizados, palavras ambulantes que encontrei – ou fui encontrado por elas. Conto-lhe as histórias; e este livro nasce”, relatou o autor de As veias abertas da América Latina (1971). 

Riscos e versos 

“Além de grande artista, poeta e contador de histórias, meu pai também era grande como pessoa. Ajudava muito os demais, e era alguém muito simples e humilde – por mais que sua fama o engrandecesse. Uma das frases que eu tenho comigo, e que ele sempre repetia nas palestras que dava, era: ‘aprenda a viver para poder aprender uma profissão’. Ou seja, ele visava muito a arte para viver, e ele soube viver, teve uma vida muito bem vivida”, contou o xilogravurista e artista plástico Pablo Borges. Além dele, outros quatro filhos seguiram os passos do pai no campo da xilogravura: Ivan, J. Miguel, Manassés (1968-2017) e Bacaro Borges. 

J. Borges transmitiu o ofício aos herdeiros na lida diária no ateliê, hoje sede do Memorial J. Borges & Museu da Xilogravura. Gostava muito de ministrar oficinas pelo mundo. Apenas no Museu de Arte Popular do Novo México, nos Estados Unidos, esteve sete vezes ensinando o que sabia. Colecionou condecorações, como a comenda da Ordem do Mérito Cultural do Brasil, em 1999, um prêmio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), e o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco, registrado em 2005 pelo Conselho Estadual de Preservação do Patrimônio Cultural daquele estado.  

O próprio artista refletiu sobre seu legado no livro J. Borges: Entre fábulas e astúcia. “De tudo o que existe no mundo tem escrito no cordel, e por isso aprendi uma série de coisas. Hoje, tenho amigo no mundo inteiro, trabalho espalhado pelo planeta, boa morada, a família bem-criada, uma vida tranquila, não devo nada a ninguém e tudo o que consegui foi com o próprio suor. Vivo muito alegre no meu terreno, em minha casa, esperando o povo que vem.”   

Além de grande artista, poeta e contador de histórias, meu pai também era grande como pessoa. Ajudava muito os demais, e era alguém muito simples e humilde – por mais que sua fama o engrandecesse. Uma das frases que eu tenho comigo, e que ele sempre repetia nas palestras que dava: ‘aprenda a viver para poder aprender uma profissão’.

Uma mesa remendada, velhas letrinhas móveis de chumbo ou madeira, uma prensa que talvez Gutenberg tenha usado. A oficina de José Francisco Borges na cidadezinha de Bezerros, no interior do nordeste do Brasil. O ar cheira à tinta, cheira à madeira. 

Eduardo Galeano (1940-2015), escritor uruguaio 

Imaginário eternizado 

Reproduções de xilogravuras de J. Borges estão presentes em coleção da Loja Sesc, enquanto trabalhos originais do artista compõem o Acervo Sesc de Arte  

Reconhecido, em 2018, como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), o cordel não se restringe à literatura, já que reúne tradições da oralidade, da poesia e das narrativas em prosa, além da presença importante dos elementos iconográficos, como a xilogravura. A fim de aproximar o público das criações de um dos maiores mestres dessa arte, a linha de produtos Sesc em Obras: J. Borges, à venda na Loja Sesc, apresenta uma coleção de objetos desenvolvida com a assinatura do xilogravurista e cordelista J. Borges. Em camisetas, bolsas, cadernos e outras peças, coloridas ou em preto e branco, estão presentes ilustrações do cotidiano nordestino, danças, pássaros, anjos e dragões. 

Os trabalhos originais de J. Borges também estão ao alcance do público que frequenta as unidades do Sesc. Uma série de 41 gravuras do artista compõe o Acervo Sesc de Arte, com obras instaladas em unidades da capital, litoral e interior do estado, e podem ser apreciadas, via registro fotográfico, na plataforma Sesc Digital. Entre as xilogravuras e matrizes disponíveis estão representações folclóricas, como as telas Bumba-Meu-Boi e Cavalo Marinho, personagens populares, entre os quais violeiros e bacamarteiros, além de cenas do imaginário borgeano, a exemplo da xilogravura Briga da onça com a serpente, cuja matriz ilustra capa desta edição da Revista E.  

SESC DIGITAL  

Coleção J. Borges 

Reprodução fotográfica de 41 obras do artista pernambucano presentes no ao Acervo Sesc de Arte. sesc.digital/colecao/jborges  

LOJA SESC  

Sesc em Obras: J. Borges 

Linha de produtos desenvolvidas com a assinatura do xilogravurista.    

Briga da onça com a serpente é uma das obras de J. Borges presentes no Acervo Sesc de Arte. 

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