Figura fundamental da música eletroacústica no Brasil, a compositora curitibana deu sentidos alternativos a um gênero associado ao passado: a ópera. Por João Luiz Sampaio.
João Luiz Sampaio atua como repórter de Música clássica do Caderno 2 do jornal O Estado de S.Paulo e é editor executivo da revista Concerto. Foi organizador do livro Ópera à Brasileira e é autor do livro Prêmio Carlos Gomes, Uma Retrospectiva (1996–2006), ambos pela Algol Editora.
O jornal O Estado de S. Paulo trazia em suas páginas no dia 30 de agosto de 1961 o texto “Drama com música eletrônica”, no qual uma jovem compositora explicava os sentidos de seu novo espetáculo, Apague meu spotlight, criado em parceria com o compositor Luciano Berio e apresentado naquela temporada nos teatros municipais do Rio de Janeiro e São Paulo. A música era acompanhada de gravações das vozes de atores — os integrantes do Teatro dos Sete, Fernanda Montenegro e Sergio Britto entre eles, dirigidos por Gianni Rato; os cenários, feitos apenas de luz; a coreografia, expressionista. E do que falava a história? “Não há sequência, não há história. Pois em torno de nós, não há sequência, não há histórias. Há apenas spotlights que se acendem e se apagam docemente, sem o menor ruído. O mundo é aparência, apenas existem aqueles que criamos dentro de nós mesmos”, explicava Jocy de Oliveira.
O articulista quase consegue disfarçar o tom incrédulo ao reproduzir as propostas do espetáculo, mas a surpresa talvez fosse justificada. Afinal de contas, Apague meu Spotlight introduzia diversas novidades. Foi a primeira apresentação no Brasil de um espetáculo de música eletroacústica, gênero no qual os sons dos instrumentos no palco dialogam com outros pré-gravados e manipulados eletronicamente; propunha a quebra da linearidade ao narrar uma história que tinha como tema uma discussão impactante a respeito da posição da mulher na sociedade; e previa um elemento normalmente estranho ao mundo dos intérpretes da música clássica: a improvisação.
A maior parte dos registros do espetáculo se perdeu com o tempo, mas ele sobrevive na memória de seus participantes. Ainda inédito, o livro Leituras de Jocy, coletânea de ensaios organizada pelos musicólogos Rodrigo Cicchelli e Manuel Corrêa do Lago, traz um depoimento da atriz Fernanda Montenegro a respeito do trabalho: “O que eu ganhei como atriz, como artista, foi a coragem do experimento, ousar o contemporâneo, ouvir obstinadamente o instinto desafiador e lutar por sua utopia”.
Que venha de uma atriz uma das mais sintéticas e bem acabadas definições do trabalho de Jocy de Oliveira como compositora não deve soar surpreendente. Ela, afinal, colocou a música constantemente em contato com outras áreas. Apague meu spotlight, por exemplo, foi pioneiro não apenas pela sua linguagem sonora, mas por propor, por meio dela, uma nova ideia de teatro-musical, que nas décadas seguintes se desenvolveria e refinaria com diversos espetáculos multimídia — os mais recentes deles, Berio sem Censura, agora lançado em DVD, e a ópera Liquid Voices — A História de Mathilda Segalescu, que estreia no final do mês em São Paulo. Espetáculos que mantiveram contato estreito com temas de nosso tempo — a imigração, o preconceito, a intolerância, a negação do outro ou a condição da mulher — sugerindo, por meio de texto, música e cena, novos mundos possíveis.
Jocy de Oliveira (1936-) iniciou sua trajetória, nos anos 1950, como pianista. Mas mesmo como intérprete esteve associada desde o início à criação. Ela trabalhou ao lado de nomes como Karlheinz Stockhausen, Claudio Santoro, Luciano Berio, Olivier Messiaen, Igor Stravinsky, Iannis Xenakis ou John Cage, fazendo estreias mundiais de peças e realizando primeiras gravações de algumas delas. “A participação do intérprete no processo de criação pode ser instigante, assim como esta intrínseca, conflitante, apaixonada e envolvente relação psicológica entre compositor e intérprete, a qual agrega amor e ódio, trabalho exaustivo, dedicação, admiração e respeito, ciúmes, dependência”, escreve ela no livro Diálogo com Cartas, lançado em 2014, no qual reproduz a correspondência trocada com compositores.
“Não bastava tratar de novos temas sugeridos pela época, era necessário implodir a própria noção de música, criar novas técnicas, questionando a linearidade dos sons e a substituindo por estruturas e fragmentos mais próximos do modo como o homem passava a enxergar a realidade.”
Esses autores seriam fundamentais para a formação da personalidade musical de Jocy de Oliveira. Suas obras são herdeiras diretas de um processo de ruptura iniciado na passagem do século XIX para o século XX. Naquele momento, o mundo se transformava rapidamente na política, na economia, nas relações sociais — e o homem de então buscava dialogar com essa nova paisagem. Mas este também era um homem diferente. A descoberta do inconsciente, oferecida por Sigmund Freud, abriu nossos olhos para a existência de uma realidade que está por trás do discurso racional e imediato, identificando dramas, medos, angústias, paixões que, gostemos disso ou não, guiam o modo como compreendemos o mundo à nossa volta.
Este novo homem, ao olhar para um novo mundo, logo entendeu que, para dar conta deste contexto, era preciso encontrar novas formas de expressão. A arte musical é um retrato interessante da violência dessas transformações: não bastava tratar de novos temas sugeridos pela época, era necessário implodir a própria noção de música, criar novas técnicas, questionando a linearidade dos sons e a substituindo por estruturas e fragmentos mais próximos do modo como o homem passava a enxergar a realidade.
Esse processo encontraria, em cada compositor, uma manifestação pessoal. Na Sagração da Primavera, Stravinsky buscou no ritmo uma linguagem quase primitiva, pautada pela dissonância, características também presentes em peças que ele escreveria mais tarde, como Movements, para piano e orquestra. Obras de Stockhausen, como Kontakte, relacionavam a música com o espaço em que ela era interpretada e, assim, exploravam os sentidos do ouvinte, “nos colocando em contato com partes do cérebro e do corpo que nem sabíamos que tínhamos”, nas palavras do crítico Tom Service. Luciano Berio investigou a voz: em Circles, por exemplo, a cantora deve reproduzir vocalmente os sons de instrumentos como a harpa, ao mesmo tempo em que os instrumentos devem buscar uma forma de tocar que se aproxime do canto. Da observação da natureza e do canto dos pássaros, por sua vez, Messiaen extraiu, em peças como Catalogue d’oiseaux, uma nova forma de relacionar os sons e novas ideias a respeito de como percebemos o tempo. E John Cage introduziu na nossa relação com a música elementos como o silêncio, o ruído e, mais importante, a aceitação do acaso na organização do discurso musical: ASLSP — As Slow as Possible, dedicada a Jocy, é composta por oito peças, e o intéprete deve escolher omitir uma delas e repetir, fazendo de cada apresentação um evento único de uma obra diferente.
Tempo, ritmo, silêncio, discurso são termos que sempre estiveram presentes no fazer musical. O que esses autores buscaram foi dar a eles novos significados, em um jogo no qual o presente olha para o passado para repensá-lo e forjar uma ideia de futuro. Assim como Jocy de Oliveira, ao longo de sua carreira, deu sentidos alternativos a um gênero que, mais do que qualquer outro, estamos acostumados a associar ao passado: a ópera. Mas se seus espetáculos ganham esse nome (que a própria Jocy usa com reservas) é não por uma tentativa de se filiar à tradição mas, sim, por serem símbolos da tentativa de pensar as possibilidades do gênero à luz do mundo contemporâneo.
Para entender como isso se dá, é preciso retornar àquilo que está na essência do gênero: a relação entre texto e música. Quando a ópera foi inventada, no século XVI, seus idealizadores buscavam uma maneira de articular sons e palavras, músicas e ideias, que pudessem ganhar componente visual (teatral) e assim transmitir um significado específico. Ao longo da história do gênero, esse princípio ganhou múltiplas formas, decorrentes de percepções diferentes a respeito de como se pode configurar a relação entre texto e música. Um preceito básico, no entanto, se mantém, o de que um texto pode dirigir o significado de uma música, assim como o contrário também é verdadeiro. E, nesse sentido, cada palavras escolhida, assim como cada som, aponta na direção de múltiplas possibilidades de significação.
“Nas óperas tradicionais, cenários, figurinos e outros elementos cênicos são criados após a composição de música e texto; na obra de Jocy, eles são parte do próprio processo criativo, elementos constituintes desde o início da gênese da obra.”
É nesse universo que trafega Jocy de Oliveira, fazendo da união entre texto e música o ponto de partida para espetáculos que incluem ainda as artes plásticas, a dança, cinema e outras formas de manifestação artística, absorvendo a tecnologia ao lado do artesanato intrínseco ao fazer musical. Cada obra traz um universo musical específico, sugerido pela história a ser narrada. “Em minha obra, a escolha do material sonoro soma elementos de minha experiência musical e de vida. Assim, minha impressão de um sadhu (homem santo) cantando uma raga a Shiva num templo de Déli é tão importante quanto a reminiscência de um contraponto renascentista, uma cantilena, o uso dos sons gerados por computador, ou a herança de anos e anos tocando as obras pianísticas de Messiaen”, explicou ela em uma entrevista recente a Vice.
Mas é possível identificar alguns elementos comuns, chaves para a melhor compreensão das propostas estéticas da compositora. Um deles tem a ver com o aparato multimídia por ela utilizado. Nas óperas tradicionais, cenários, figurinos e outros elementos cênicos são criados após a composição de música e texto; na obra de Jocy, eles são parte do próprio processo criativo, elementos constituintes desde o início da gênese da obra. Do ponto de vista musical, um elemento importante é a utilização de técnicas extendidas, ou seja, técnicas pouco convencionais ou tradicionais de se usar um instrumento musical, para obter sonoridades diferenciadas, fazendo, por exemplo, com que a voz se transforme em um instrumento de percussão, ou que um violoncelo seja percutido como um tambor, e assim por diante. Mas a técnica nunca é um fim em si mesmo: reinventar um instrumento ou o som que ele é capaz de produzir está ligado a releituras mais amplas a respeito dos temas que ela aborda, sugerindo uma visão de mundo própria à compositora: a de que a realidade, em toda a sua força de opressão, pode sempre ser transformada pelo olhar da arte.
O álbum do início dos anos 1980 foi relançado este ano pelo selo inglês Blume e é uma excelente porta de entrada para o modo como Jocy de Oliveira costuma trabalhar com a voz. As peças, batizadas de Estórias, foram escritas a partir dos anos 1960 para voz, instrumentos acústicos (como violino, baixo, guitarra elétrica e percussão) e eletrônicos. E mostram como a compositora subverte a ideia de narrativa — ela apenas sugere um enredo específico, desconstruindo as palavras e dando ênfase a sílabas e fonemas específicos. Afinal, se o que compreendemos do mundo são apenas fragmentos, por que não focar em fragmentos das palavras? O que importa não é a beleza da melodia, mas a exploração quase crua da expressividade da voz.
Com Fata Morgana, Jocy de Oliveira inicia uma série de espetáculos que tem o feminino como tema. A compositora a define como uma “ópera-mágica”, composta de miragens que levam a um “teatro de imagens”. A música carrega forte marca da tradição oriental, relida por meio da eletroacústica, pois de alguma forma se está falando dos ritos de nascimento da mulher e do modo como o feminino e seus valores são passados entre gerações — exemplos disso são a primeira parte, Memória, logo após a introdução musical, na qual duas mulheres produzem e trocam sons; ou a terceira parte, Onírica, em que uma soprano tenta se libertar do mundo material em direção a uma percepção mais essencial dos valores do feminino enquanto uma bailarina representa com movimentos o renascimento do corpo.
O título da “ópera-fábula” significa “Tempo de agora e de sempre”. Um tempo que se refere tanto ao hoje como a qualquer outra época sugere um contexto atemporal, que pertence a todas os momentos — e que, portanto, carrega percepções arraigadas a respeito da sociedade, que se repetem. Esse é o ambiente teórico no qual a compositora resolve tratar do lugar da mulher no mundo, ou melhor, do lugar a que ela é relegado pela literatura, pela mitologia ou pelos contos de fada, cujos trechos compõem o texto. No palco, com o objetivo, segundo Jocy, de “resgatar os valores do feminino”, há dois planos: uma atriz, às voltas com as palavras, e uma cantora, que incorpora o inconsciente feminino, em um canto que, por isso mesmo, não tem métrica ou linearidade.
Este talvez seja o espetáculo em que Jocy de Oliveira dialoga de maneira mais próxima com a tradição da ópera. Nas grandes obras do gênero no romantismo, a mulher é sempre retratada como a vítima ou como uma extensão do desejo do homem. Para falar disso, a compositora investiga as intérpretes das óperas, as grandes divas, a começar por Maria Malibran, mezzo-soprano do início do século XIX que viveu apenas 28 anos. Quando definimos uma mulher como uma diva, a encaixamos em um conjunto de qualidades que de alguma forma retiram dela sua individualidade. O que a compositora quer, então, é revelar esse mundo interior — e para desconstruir a figura da diva ela cria um canto que desconstrói a ideia do canto lírico tradicional. Mas não só. Ela também trabalha com vídeos que tanto revelam de maneira simbólica episódios da vida das intérpretes (como o acidente de cavalo que matou Malibran) como estabelece conexão com o tempo presente por meio de depoimentos de mulheres internadas na Colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro.
Jocy define Noturno de um piano como uma peça de música-vídeo, que retrata um piano sendo jogado nas águas do mar, enquanto é tocado por uma pianista. São muitos os simbolismos. A água — ou a falta dela — é um elemento comum a todas as culturas; seu movimento, no oceano, sugere uma constante mudança de forma e de rumo; e o piano, ao submergir, carrega consigo a imagem de toda uma manifestação artística que desaparece no mundo contemporâneo (a música eletroacústica para o vídeo é formada por fragmentos de obras de Mozart). O acaso aqui também desempenhava papel fundamental, em clara homenagem a John Cage. Como reagiria o instrumento especialmente construído para o projeto ao ser jogado na água? Em quanto tempo ele afundaria? E as condições de vento, sol, maré, correntes? A imprevisibilidade da execução era também a imprevisibilidade do resultado final, com a obra dialogando, e sendo influenciada em tempo real, com o contexto à sua volta.
A questão feminina dialoga em Kseni com o olhar a respeito da diferença, em uma obra de forte caráter político. Jocy resgata a figura mitológica de Medéia que, casada com Jasão, é trocada por uma princesa e banida de Corinto; como vingança, ela enfeitiça o vestido de noiva da princesa e mata os próprios filhos. Jocy entende Medéia como a mulher “transgressora, desterrada, imigrante, denegrida, discriminada”, que “preferiu levar em seu carro de fogo a alma de seus filhos mortos a deixá-los como parte de um mundo que lhe havia negado o direito de ser diferente”, como diz o texto. A narrativa visual é feita de símbolos e movimentação cênica que expandem as possibilidades de leitura do espetáculo: o pedido “Libera” proferido pelo filho de Medéia é também o pedido de libertação de nossa época, pautada por guerras e pela dificuldade de aceitar a diferença; da mesma forma, a queima do vestido de noiva é uma queima simbólica da mulher submissa, que abre mão de sua individualidade para se encaixar em padrões (assim como, em um mundo globalizado, se mantém imutável a imposição cultural de algumas sociedades perante outras). Musicalmente, a compositora utiliza como ponto de partida uma melodia medieval de autor anônimo sobre a história de Medéia e, a partir daí, a retrabalha ao longo do espetáculo, com cada “nova versão” atualizando a figura mitológica.
Às vésperas de completar 80 anos, Jocy de Oliveira idealizou dois espetáculos nos quais recupera elementos de sua trajetória. Cada espetáculo traz na dramaturgia elementos próprios, mas em comum ambos têm a memória afetiva e musical de Jocy a respeito do contato com Igor Stravinsky e Luciano Berio. São apresentadas obras dos dois e da própria Jocy, além da presença de cantoras e atrizes que recuperam mais do que episódios específicos, as sensações por eles provocadas.
Em sua nova obra, Jocy de Oliveira trata da imigração e da questão dos refugiados. Para tanto, recupera uma história real. Em 1941, um barco deixou o porto de Constanta, na Romênia, em direção à Palestina, levando a bordo 769 refugiados judeus, mas foi impedido de atracar ao chegar a Istambul. Ficou à deriva por meses até que um submarino soviético o destruiu, deixando apenas um sobrevivente. “Não me parece difícil estabelecer entre essa história terrível e os nossos dias um paralelo, com refugiados sendo deixados à deriva, centenas de pessoas, homens, mulheres, crianças, morrendo em mar aberto”, diz a compositora.
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