Os múltiplos talentos de Carolina Maria de Jesus, que desafiou as estatísticas e tornou-se uma das mais importantes personalidades da cultura do país
Por Manuela Ferreira
Leia a edição de junho/23 da Revista E na íntegra
Em 1960, quando publicou seu primeiro livro, Quarto de despejo: diário de uma favelada, Carolina Maria de Jesus (1914-1977) tinha 46 anos de idade e três filhos pequenos, que criava e educava sozinha, enquanto trabalhava como catadora de papéis e materiais recicláveis. Até ali, ela possuía uma trajetória que, mais do que aproximar, a distanciava, de modo categórico, de outros nomes da literatura brasileira: negra, periférica e de pouca escolaridade. No entanto, para além do diário que a tornou mundialmente conhecida, Carolina explorou, ao longo das décadas, outras linguagens que reafirmaram seus diversos talentos. Escreveu romance, poesias, contos, peças de teatro e provérbios. Também compôs e interpretou as 12 músicas do LP Quarto de Despejo: Carolina Maria de Jesus cantando suas composições, gravado em 1961, e que acaba de ganhar uma releitura pelo Selo Sesc com o álbum digital Bitita – As composições de Carolina Maria de Jesus [Leia em Vozes de Carolina]. Os sambas e marchinhas da artista orquestram outra faceta desta mulher múltipla que, embora profundamente marcada pela pobreza e pelo racismo, conduziu a vida com ousadia e resiliência.
“As imagens mais difundidas de Carolina são aquelas nas quais ela aparece de lenço branco cobrindo o cabelo, tendo os barracos e a favela como paisagem, como pano de fundo. Essas imagens reforçam, de alguma forma, essa visão da autora como uma escritora favelada, alimentando um certo fetiche que a mídia branca e racista tem pela pobreza e o sofrimento negros”, analisa a historiadora Rosa Couto. As composições da escritora mineira revelam, no entanto, segundo Rosa, uma artista inquieta – definição que, em sua visão, representa bem quem foi Carolina Maria de Jesus.
“Ela era uma mulher curiosa, que não aceitava ser limitada. Por isso, permitiu-se compor e cantar as próprias músicas. Acredito que ela tenha lutado para deixar registros sobre sua passagem pelo mundo, para expor suas ideias, seus afetos, suas opiniões políticas, seus comentários sociais. Fez tudo isso com as ferramentas que tinha disponíveis: caneta, papel, voz, musicalidade. Vejo isso como uma forma de resistir ao historicídio, ao apagamento histórico que afeta a população negra no Brasil, de modo geral. Como uma recusa a ser esquecida ou silenciada”, reflete a historiadora.
Novos olhares
As tais imagens, como a do lenço branco cobrindo o cabelo, ou aquelas em que Carolina observa o interlocutor com um semblante melancólico e cabisbaixo ocultam, ainda, a mulher vaidosa que a artista era. Gostava de aparecer elegante nos muitos eventos para os quais era convidada após o enorme sucesso de vendas do seu livro de estreia. Tinha predileção por casacos, lenços coloridos, adornos nos cabelos e, criativa, às vezes fazia seus próprios colares. “De todas as imagens de Carolina Maria de Jesus, a minha preferida é a do aeroporto. Carolina bem vestida, de cabelos livres, uma mala no chão, uma revista na mão e uma bolsa bonita, sorrindo, em frente a um avião da Air France no Aeroporto de Viracopos, em Campinas (SP), um voo que a levaria para o Uruguai para acompanhar o lançamento de seu livro Quarto de despejo”, escreveu a escritora e jornalista Ana Paula Lisboa, em artigo publicado no jornal O Globo de 25 de agosto de 2021.
A fotografia em questão, de 13 de dezembro de 1961, exibe a escritora sorridente, de vestido estampado e pérolas no pescoço. “Dizem que ela era muito conhecida pelos funcionários do aeroporto por viajar frequentemente. Quantas mulheres negras pegavam um avião em Viracopos em 1961? É óbvio que ela seria reconhecida pelos funcionários; quando somos únicas, é mais fácil guardar o rosto. Todas as coisas escritas sobre Carolina deveriam ser ilustradas com essa foto. O verbete ‘sucesso’ no dicionário deveria ser ilustrado por essa imagem”, destacou Ana Paula Lisboa em seu artigo.
Flores e espinhos
Menos de dois anos antes da viagem ao Uruguai, a escritora morava na antiga favela do Canindé, na região central da capital paulista. A comunidade – definida por Carolina como o “o quarto de despejo da sociedade” – era a porta de entrada para os imigrantes pobres que ancoravam numa São Paulo em pleno crescimento urbano. Chegou ao Canindé sozinha, no final dos anos 1940. Nascida em uma comunidade rural da cidade de Sacramento, no sudoeste de Minas Gerais, Carolina trabalhou como empregada doméstica, lavadeira e passadeira até engravidar e perder os empregos. A literatura a acompanhou desde criança, quando, alfabetizada por uma professora, recebeu os primeiros incentivos para escrever.
“As composições de Carolina Maria de Jesus revelam o cotidiano da vida na favela, coisas que ela via e vivia, uma outra forma de diário”, observa Rosa Couto. Afiada e perspicaz, a artista cantou na irônica Vedete da Favela: “Conhece a Maria Rosa?/ Ela pensa que é a tal/ Ficou muito vaidosa/ Saiu seu retrato no jornal/ Maria conta vantagem/ Que comprou muitos vestidos/ Preparou sua bagagem/ Vai lá pros Estados Unidos”. Já em Ra, Re, Ri, Ro, Rua, a compositora retratou a violência doméstica que testemunhava entre as vizinhas. “Você chega de madrugada/ Fazendo arruaça e xaveco/ Além de não comprar nada/ Ainda quebra os meus cacareco”. Nas linhas de O Pobre e o Rico, por sua vez, Carolina fez uma reflexão sobre as condições adversas das classes sociais. “Pobre não envolve nos negócio da nação/ Pobre não tem nada com a desorganização/ Pobre e rico vence a batalha/ Na sua pátria rico ganha medalha”.
Outras terras
Foi no Canindé que nasceram os três filhos da escritora: João José de Jesus, José Carlos de Jesus e Vera Eunice de Jesus Lima. Apesar de ter despertado muitas paixões, Carolina optou por não se casar – dizia que não queria estar presa a um matrimônio infeliz e permeado por agressões físicas. “A mulher da favela tem que mendiga e ainda apanha, parece tambor. De noite, enquanto elas pede socorro, eu tranquilamente no meu barracão ouço valsas vienenses. Não invejo as mulheres casadas da favela que levam vida de escravas indianas”, registrou Carolina em Quarto de despejo.
Revelada ao público pelo jornalista Audálio Dantas (1929-2018), Carolina publicou, ainda em vida, as obras Pedaços da fome (1963), romance ficcional, e Provérbios (1963). Entre os trabalhos póstumos, estão Diário de Bitita (1986) e Clíris: Poemas recolhidos (1996). Nenhum, entretanto, alcançou o mesmo sucesso do fenômeno editorial de Quarto de despejo, que vendeu mais de 100 mil cópias no seu primeiro ano de publicação. Graças aos rendimentos obtidos com seu livro de estreia, a escritora teve a vida transformada do dia para a noite. O barraco precário, erguido com sobras de madeira e telhas de amianto, às margens do Rio Tietê, deu lugar às casas de alvenaria para onde se mudou com os filhos – inicialmente, viveram no município de Osasco, na Grande São Paulo e, em seguida, nos bairros de Santana e Parelheiros (nas zonas norte e sul paulistanas, respectivamente).
Em maio de 1960, Carolina registrou impressões sobre a nova fase nos diários que deram origem ao livro Casa de Alvenaria: diário de uma ex-favelada (1961). O cotidiano, menos duro, dava vez a reflexões de escrita suave. “Poder comprar roupas para mim. Tudo em mim está despertando. Eu estou pensando nuns brincos, colares e vestidos bonitos e eu vou visitar um dentista. (…) Nas ruas o povo dava-me os parabens. Quando passo perto de um onibus, ouço: olha a mulher que escreve!”. No terreno da casa de Parelheiros, ela plantou um jardim – a escritora adorava rosas. Sobre o local onde viveu até o fim da vida, escreveu: “29 de março. No meu jardim tem uma roseira. As crianças colhem as rosas para brincar. Não revolto porque nascem outras flôres”.
Você sabia que a obra “Quarto de despejo: diário de uma favelada” é o livro mais emprestado pelas bibliotecas das unidades do Sesc São Paulo? Somente em 2022, foram 963 empréstimos registrados
Disco digital lançado pelo Selo Sesc recupera obra musical da autora de Quarto de despejo
Novas perspectivas sobre a trajetória de Carolina Maria de Jesus permitem ver, também, uma mulher apaixonada por música e Carnaval. Há uma emblemática imagem, capturada pela escritora Zélia Gattai (1916-2008) em fevereiro de 1963, que prova tal relação: a artista mineira, festiva, posando com um traje de tecidos brilhantes, penas e plumas, costurado por ela mesma, pronta para a folia. “Carolina [está] linda, produzida para o Carnaval, esse momento icônico para a cultura afrobrasileira, quebrando essa imagem de ‘pobreza’ e ‘sofrimento’”, comenta a historiadora e pesquisadora Rosa Couto. Essa mesma imagem, aliás, compôs a exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros, que esteve em cartaz no Sesc Ribeirão Preto e no Sesc Sorocaba. O álbum digital Bitita – As composições de Carolina Maria de Jesus (2023), lançado pelo Selo Sesc, inspira-se nesta faceta para destacar a grandeza musical da escritora, que transformava em melodias as contradições e desigualdades que testemunhava.
Em Bitita, o protagonismo está nas diversas vozes e no batuque. A responsável pela produção e direção musical do disco é a percussionista Sthe Araújo, que convidou as intérpretes Nega Duda e Girlei Miranda, integrantes do bloco afro Ilú Obá De Min, além de Mestre Nico, multiartista recifense radicado em São Paulo (SP).
As escolhas sonoras, instrumentação, arranjos e vozes dão vida às canções de Carolina Maria de Jesus ao passo que dialogam com registros da história e com a produção cultural contemporânea. “Esse processo diz muito sobre a cena musical paulistana negra e independente, desde sempre muito fértil, mas, atualmente, bastante agitada por artistas que estão trazendo à tona trabalhos conscientemente mergulhados na arte negra brasileira e suas referências históricas”, ressalta Rosa Couto.
SELO SESC
Bitita – As composições de Carolina Maria de Jesus (2023)
Produção e direção
musical de Sthe Araújo
Disponível nos principais tocadores de áudio e em sesc.digital/album/bitita-carolina-maria-de-jesus.
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