Jorge Antunes em cordas dedilhadas

07/07/2022

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Com o disco duplo Cordas Dedilhadas, o Selo Sesc faz um recorte de composições de Jorge Antunes com enfoque especial num repertório dedicado a quatro instrumentos acústicos: violão, viola caipira, harpa e alaúde barroco. Com interpretações de Álvaro Henrique, Diogo Queiroz, Leila Reis, Marcus Ferrer e Roberto Corrêa, o álbum físico está disponível nas lojas das unidades do Sesc São Paulo e na loja virtual.

Precursor da música eletrônica brasileira na década de 1960, Jorge Antunes transcende descobertas e movimentos sonoros ao ultrapassar barreiras e eventos, os quais se desprendem do estigma do tempo. Conhecido como criador da música cromofônica (correspondência entre sons e cores), inventor do violino de palitos de fósforo e por reger uma orquestra de buzinas de automóveis, o maestro segue como referência na narrativa de reflexões a partir da materialidade sonora.

As primeiras peças, intituladas como Casa de Ferrer, Viola de Pau, Prelúdico em Mi, Sighs, Eóletron e Suite Pour Luth Baroque, exaltam as camadas organizadas do artista. A eletroacústica, a intensidade expressiva das cordas, o barroco e a pulsão temporal, encontram-se como invenções semânticas incorporadas aos 60 minutos de uma trajetória de vanguarda. Com a Série Brasília 50, segunda parte do CD, o músico associa a delicadeza do violão com colagens intensas de um repertório histórico, o qual imprime sensações e sentimentos ainda vivos no brasileiro.

Cordas Dedilhadas trata-se de um disco que recruta os sentidos, a mente e a memória, reunidos em composições que convidam o ouvinte para uma viagem de experimentações musicais e a um novo universo sonoro.


Cordas dedilhadas

Jorge Coli

O formalismo tomou conta de muitos compositores e composições na música contemporânea. Cerebralismo árido que desacorçoa: grande parte da música, desde pelo menos o pós-Segunda Guerra, não conseguiu ampliar seu público. Coisa, por sinal, na qual ela não estava empenhada, rimando popularidade com facilidade e vulgaridade.

O caso de Jorge Antunes, e as peças incluídas nestes CDs o confirmam, destoa de um comportamento assim. Caracterizo sua música por um forte sentido da estrutura formal, mas que não existe apenas em si, por si e para si. Primeiro, porque há nela poderosa presença da materialidade sonora, nascida de um prazer enérgico e contagioso.

Há também um dom que eu chamaria de narrativo. Capaz de fazer o ouvinte espantar-se e surpreender-se com o fluxo musical que foge de qualquer banalidade e lugar comum. Quando se ouve, por exemplo, a expressão e o discreto humor de Em casa de Ferrer, viola de pau, ou o Prelúdico para viola caipira, com seu final tão sonoramente esplêndido, passa-se por um fluxo ao mesmo tempo necessário e, de algum modo, como que rapsódico, graças às sucessões que conduzem por caminhos que não prevemos.

Ou seja, são músicas boas, muito boas, de ouvir. Nada de exercícios bizantinos que só satisfazem o projeto mental do compositor.

Quando se menciona narração é impossível dissociá-la de significações, de aspectos semânticos. A música de Antunes é altamente significante: não seria ele um excepcional compositor de óperas se fosse de outro jeito.

Para Antunes, a forma de suas obras é profundamente vivida. Não é a associação artificial, superficial, nominal, entre forma e vivido, mas uma osmose, uma “formavida”, com perdão pelo neologismo.

Nessa obra-prima que é Sighs, o terceiro movimento, pontuando a intensidade expressiva do violão com os suspiros do intérprete, conduz a sensações múltiplas, aquém das palavras, porque mais profundas do que elas, mais íntimas, viscerais; e além, porque atingindo os ouvintes com sentidos que se captam e não se podem dizer.

Tenho um fraco pelo maravilhoso Eóletron, com um ostinato obsessivo de tique-taque, numa estupenda captura do tempo. Penso na cena em que o protagonista de sua ópera, O Espelho, sente, solitário, a espessura implacável do tempo. Eóletron traz o som se realizando numa trajetória temporal viva, numa beleza sonora que decorre da pulsão temporal pura. É uma prodigiosa materialização do tempo, objetiva, porque marcada de modo inexorável, mas imanente às pulsões criadoras internas, que se desdobram em prodigiosas invenções. A duração objetiva confunde-se com a duração vivida do ouvinte.

Os seis movimentos da Suite pour luth baroque (Suíte para alaúde barroco) receberam títulos que incluem a palavra “luth” (alaúde em frrancês) em forma de trocadilhos: “Préluthde” (ao invés de Prélude), “Évoluthion” etc. Um modo metafórico de absorver o instrumento no âmago das obras. Sem pasticho, o barroco se incorpora por meio de invenções semânticas.

Um artista consciente de seu tempo, da história, do papel político de sua arte, como é Jorge Antunes, nunca se fecharia na torre de marfim de quaisquer abstrações. E as expressões significantes adquirem uma impensável intensidade reflexiva e histórica na Série Brasília 50. A ideia de associar o violão – instrumento delicado – a colagens de documentos históricos pareceria um despropósito se não tivesse dado tão certo. É um panorama arrepiante, sugestivo e, mais espantoso ainda, de grande e forte beleza.

Cada episódio parte de um momento relevante desde 1960, ou seja, desde a inauguração de Brasília. É uma obra in progress, esperando novos episódios ainda não compostos depois da morte de John Lennon em 1980. São curtos – o mais longo não chega a seis minutos. O conjunto toma o ouvinte pelo que de mais fundo a consciência pode provocar nas sensações e sentimentos. Um exemplo apenas, a voz indignada, repetida, retrabalhada, de Lysâneas Maciel dirigindo-se a Cantídio Sampaio na Câmara, ano de 1977: “Não dou apartes a torturadores”.

Em suma, nos dois discos estão reunidas composições cruciais, de importância excepcional. Abrem-se para o futuro. Mas são também imperativamente presentes, tão necessárias nestes tempos em que impera o cinismo dos boçais.


O álbum duplo Cordas Dedilhadas de Jorge Antunes está disponível nas lojas das unidades do Sesc São Paulo e na loja virtual.

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