Juão Nyn em cena do espetáculo “Contra Xawara – Deus das Doenças ou Troca Injusta” na sétima edição do MIRADA. Foto: Fernanda Luz
Perfomer e criador de “Contra Xawara – Deus das Doenças ou Troca Injusta”, apresentado no MIRADA, diz que democracia brasileira só existirá com a demarcação total das terras indígenas
Para Juão Nyn, multiartista, ativista e comunicador, o cocar é uma mídia e um veículo para a sua arte. Nesse contexto, ele não é feito só de penas, mas também de 120 seringas e já aparece desde a primeira cena do espetáculo “Contra Xawara – Deus das Doenças ou Troca Injusta”, parte da programação da sétima edição do MIRADA – Festival Ibero-americano de Artes Cênicas.
“Eu uso o cocar como uma mídia, como um anteparo para passar informações, para criar arte. A seringa para mim é um objeto dialético, nem bom, nem ruim. Ela pode conter a cura, ela pode conter o veneno. É um espaço de diálogo, de entrada e saída”, explica Juão, que é do Rio Grande do Norte.
Deus das doenças na cosmovisão Yanomami, Xawara é contraposto no espetáculo, em uma travessia contracolonial, onde os povos originários se reencontram com o homem branco.
Mas Juão avisa que a viagem imaginada é arriscada. “É um espelho, onde as pessoas brancas e não indígenas têm a chance de atravessar e olhar além da própria imagem, além do próprio umbigo. Mas é uma travessia de risco, eu não sei o que pode acontecer”.
Embora tenha sido concebido no contexto de pandemia, e apresentando inicialmente em 2021, “Contra Xawara” não é diretamente ligado ao período e ecoa a colonização. “As pessoas acham que o cocar surgiu por causa das vacinas para o Covid-19. Mas não foi”, conta o multiartista. “É uma história que se repete desde 1492, quando as primeiras caravelas chegaram aqui na América”, completa.
“As primeiras colonizações foram virulentas e bacteriológicas. Vírus e bactérias vindos dentro de corpos. Eu criei esse cocar, um cocar crítico. A boa distância é uma tecnologia. A gente precisa ter cuidado quando vai se aproximar do outro, de diversas maneiras. Devagar, pedindo licença, perguntando como o outro quer se autodeterminar. E diante dos mundos coloniais, isso nunca aconteceu. Sempre foi um desencontro. A perspectiva do cocar é essa”, reafirma Juão.
“Contra Xawara” é também um manifesto, que Juão chama de “contrafeitiço, que desata os nós e falsas tradições do realismo capitalista”. Ele propõe o fim das “narrativas caravélicas e cadavéricas” que temos dentro de nós.
No fim do espetáculo, Juão subverte a lógica do escambo do período colonial, tirando penas das seringas e propondo uma troca com quem está sentado na plateia. “É uma brincadeira séria sobre reparação histórica. É um ato simbólico sobre algo sério. Demarcações indígenas estavam prometidas na Constituição de 1988 para acontecer em 1993. Já estamos com um atraso de mais de 30 anos. A gente vive um ensaio da democracia, nunca foi democracia. Porque não existe democracia sem demarcação das terras indígenas. Eu sou do Rio Grande do Norte, o único estado brasileiro que não tem uma terra indígena demarcada”.
INSTRUMENTO DA COLONIZAÇÃO
O fato de o teatro também ter servido de instrumento da colonização não intimida Juão. “Eu utilizo todas as ferramentas do mundo ocidental, que o mundo capitalista trouxe, mas ao nosso favor. Eu sou formado em teatro. O teatro é a primeira linguagem artística a colonizar o país, foi usado para ensinar o cristianismo, o português. Não tem o ‘vou aprender a ler para ensinar os meus camaradas’? O meu é ao contrário, vamos desaprender, imaginar mais que as prisões. As cercas coloniais que foram colocadas dentro do território que é nossa mente”.
NORDESTE
Como potiguar, Juão rejeita a separação estereotipada, que coloca a cultura nordestina e indígena como opostas, ainda que reconheça diferenças. “A conexão é intrínseca. O problema é que a máquina colonial, o projeto colonial, é uma fábrica de mundo único. Um mundo indígena único, a África única. Imaginários únicos que aprisionam. Nesse contexto, o imaginário criado para o indígena e para o Nordeste se conflitam”.
“Inventaram essa ideia de um Nordeste como bloco único. Na verdade, são nove estados, onde os sotaques são muito mais que nove. Cada estado tem o sotaque rural, o da periferia, o do centro. O Nordeste como geografia, não como identidade, é o lugar onde nasce cada vez mais indígenas. De duas maneiras: biologicamente, porque estamos vivos e continuamos a ter nossos filhos, e porque muitas pessoas estão entendendo que são indígenas”.
Por fim, o multiartista ressalta a diversidade indígena brasileira, que tem 57 povos só no Nordeste e mais de 300 no país.
“É esse lugar de etnogênese, de ressurgência, de retomada indígena. O Nordeste não é minha raiz. O Nordeste não tem nem 100 anos, meu povo tem mais de mil. Minha raiz é potiguara. O Nordeste é só um tubérculo que está encoberto na superfície da terra, então a gente come o Nordeste, o Brasil, a América Latina, para dizer que vai virar adubo para os nossos mundos florescerem em Abya Yala (América para os povos originários), conclui Juão Nyn.
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