Juão Nyn usa cocar como mídia e passaporte para viagem de risco 

12/09/2024

Compartilhe:

Juão Nyn em cena do espetáculo “Contra Xawara – Deus das Doenças ou Troca Injusta” na sétima edição do MIRADA. Foto: Fernanda Luz 

Perfomer e criador de “Contra Xawara – Deus das Doenças ou Troca Injusta”, apresentado no MIRADA, diz que democracia brasileira só existirá com a demarcação total das terras indígenas 

Para Juão Nyn, multiartista, ativista e comunicador, o cocar é uma mídia e um veículo para a sua arte. Nesse contexto, ele não é feito só de penas, mas também de 120 seringas e já aparece desde a primeira cena do espetáculo “Contra Xawara – Deus das Doenças ou Troca Injusta”, parte da programação da sétima edição do MIRADA – Festival Ibero-americano de Artes Cênicas.  

“Eu uso o cocar como uma mídia, como um anteparo para passar informações, para criar arte. A seringa para mim é um objeto dialético, nem bom, nem ruim. Ela pode conter a cura, ela pode conter o veneno. É um espaço de diálogo, de entrada e saída”, explica Juão, que é do Rio Grande do Norte.   

Deus das doenças na cosmovisão Yanomami, Xawara é contraposto no espetáculo, em uma travessia contracolonial, onde os povos originários se reencontram com o homem branco.  

Mas Juão avisa que a viagem imaginada é arriscada. “É um espelho, onde as pessoas brancas e não indígenas têm a chance de atravessar e olhar além da própria imagem, além do próprio umbigo. Mas é uma travessia de risco, eu não sei o que pode acontecer”.  

Embora tenha sido concebido no contexto de pandemia, e apresentando inicialmente em 2021, “Contra Xawara” não é diretamente ligado ao período e ecoa a colonização. “As pessoas acham que o cocar surgiu por causa das vacinas para o Covid-19. Mas não foi”, conta o multiartista. “É uma história que se repete desde 1492, quando as primeiras caravelas chegaram aqui na América”, completa.  

“As primeiras colonizações foram virulentas e bacteriológicas. Vírus e bactérias vindos dentro de corpos. Eu criei esse cocar, um cocar crítico.  A boa distância é uma tecnologia. A gente precisa ter cuidado quando vai se aproximar do outro, de diversas maneiras. Devagar, pedindo licença, perguntando como o outro quer se autodeterminar. E diante dos mundos coloniais, isso nunca aconteceu. Sempre foi um desencontro. A perspectiva do cocar é essa”, reafirma Juão.  

“Contra Xawara” é também um manifesto, que Juão chama de “contrafeitiço, que desata os nós e falsas tradições do realismo capitalista”. Ele propõe o fim das “narrativas caravélicas e cadavéricas” que temos dentro de nós. 

No fim do espetáculo, Juão subverte a lógica do escambo do período colonial, tirando penas das seringas e propondo uma troca com quem está sentado na plateia. “É uma brincadeira séria sobre reparação histórica. É um ato simbólico sobre algo sério. Demarcações indígenas estavam prometidas na Constituição de 1988 para acontecer em 1993. Já estamos com um atraso de mais de 30 anos. A gente vive um ensaio da democracia, nunca foi democracia. Porque não existe democracia sem demarcação das terras indígenas. Eu sou do Rio Grande do Norte, o único estado brasileiro que não tem uma terra indígena demarcada”.

O espetáculo “Contra Xawara” é também um manifesto, que Juão chama de “contrafeitiço”. Foto: Fernanda Luz 

INSTRUMENTO DA COLONIZAÇÃO 

O fato de o teatro também ter servido de instrumento da colonização não intimida Juão. “Eu utilizo todas as ferramentas do mundo ocidental, que o mundo capitalista trouxe, mas ao nosso favor. Eu sou formado em teatro. O teatro é a primeira linguagem artística a colonizar o país, foi usado para ensinar o cristianismo, o português.  Não tem o ‘vou aprender a ler para ensinar os meus camaradas’? O meu é ao contrário, vamos desaprender, imaginar mais que as prisões. As cercas coloniais que foram colocadas dentro do território que é nossa mente”.  

NORDESTE  

Como potiguar, Juão rejeita a separação estereotipada, que coloca a cultura nordestina e indígena como opostas, ainda que reconheça diferenças. “A conexão é intrínseca. O problema é que a máquina colonial, o projeto colonial, é uma fábrica de mundo único. Um mundo indígena único, a África única. Imaginários únicos que aprisionam. Nesse contexto, o imaginário criado para o indígena e para o Nordeste se conflitam”.  

“Inventaram essa ideia de um Nordeste como bloco único. Na verdade, são nove estados, onde os sotaques são muito mais que nove. Cada estado tem o sotaque rural, o da periferia, o do centro. O Nordeste como geografia, não como identidade, é o lugar onde nasce cada vez mais indígenas. De duas maneiras: biologicamente, porque estamos vivos e continuamos a ter nossos filhos, e porque muitas pessoas estão entendendo que são indígenas”.  

Por fim, o multiartista ressalta a diversidade indígena brasileira, que tem 57 povos só no Nordeste e mais de 300 no país.  

“É esse lugar de etnogênese, de ressurgência, de retomada indígena. O Nordeste não é minha raiz. O Nordeste não tem nem 100 anos, meu povo tem mais de mil. Minha raiz é potiguara. O Nordeste é só um tubérculo que está encoberto na superfície da terra, então a gente come o Nordeste, o Brasil, a América Latina, para dizer que vai virar adubo para os nossos mundos florescerem em Abya Yala (América para os povos originários), conclui Juão Nyn.  

Conteúdo relacionado

Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.