Foto: Aline de Castro
Nestes tempos de isolamento, temos ouvido muitas pessoas falarem que quando tudo isso passar, a vida não será como antes. Mas ao pensar nas perspectivas do futuro e de um “novo normal”, podemos cair em falácias otimistas ou pessimistas demais. Pensar numa sociedade mais justa e igualitária, que se preocupe mais com o outro; ou, em outro extremo, achar que estamos nos aproximando de uma destruição inevitável causada por nós mesmos.
O mais importante, neste momento, é saber que podemos contribuir, a partir de nossas ações, com a valorização da diversidade cultural, dos direitos humanos e com a desconstrução de preconceitos. Não só neste momento – mas principalmente nele – percebemos a importância do coletivo, do olhar para o outro e do entendimento sobre seus sonhos, necessidades e desejos.
Nesse sentido, o Programa Juventudes, ação do Sesc voltada ao público jovem, chamou o rapper Emicida para nos ajudar a perceber todas as possibilidades que as juventudes trazem – e como seus sonhos precisam ser apoiados e estimulados. Leia agora este convite aos sonhos que nunca devem ser interrompidos!
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Por EMICIDA
Meu finado amigo Chorão rodou esse país e também uma parte do mundo, bradando a plenos pulmões que o jovem no Brasil não era levado a sério. Gostaria que sua poesia fosse menos contemporânea, menos atual. Mas infelizmente não é, a questão é que, talvez, mais do que nunca se faz urgente ampliar nossa percepção a respeito do que a juventude significa. Para além de uma invenção da sociedade de consumo e também mais do que um pit-stop onde nossa alma de criança tenta se fortalecer para entrar na corrida da vida adulta, precisamos falar sobre a juventude como a gasolina aditivada da experiência humana. Uso a metáfora da gasolina aditivada, pois, acabo de assistir a um especial de stand up comedy, onde o estadunidense Dave Chapelle se refere a morte do Jovem Emmet Till usando exatamente esse termo. Para contextualizar, Emmett Till era um jovem garoto preto, acusado de supostamente assobiar para uma mulher branca nos Estados Unidos de 1955. Como consequência um grupo de pessoas brancas o espancou até a morte e jogou seu corpo em um rio, sua mãe, atravessando a pior dor que uma mãe pode atravessar, encontrou forças sabe-se lá onde e exigiu que o caixão do filho estivesse aberto, para que assim o mundo visse o grau da brutalidade a que um jovem de pele escura estava exposto. As fotos da catástrofe rodaram o mundo, estamparam capas de revistas e deram um novo fôlego a luta dos pretos norte americanos pelos direitos civis, daí a analogia a respeito da gasolina aditivada. A mulher branca em questão, após 50 anos, assumiria que mentiu ao Júri. Meu ponto aqui é que entre a tragédia que destruiu a vida e família de Emmett Till e o relato popular de Chorão, evoluímos muito, porém não o suficiente para frear as tragédias que se avizinham, antes delas ocorrerem.
A velocidade na qual o futuro chega é maior do que a que conseguimos processar a informação que recebemos. Assim como minhas filhas absorvem outros idiomas com a facilidade de quem clica em um vídeo de streaming e eu tenho um trabalho penoso para fazer o mesmo, precisamos saber onde essa gasolina aditivada deve estar, caso contrário, todo o potencial desta janela de tempo chamada juventude é desperdiçado e já passou da hora de interrompermos essa cultura de desperdícios. Desperdícios de recursos, de talentos, de meio ambiente, de pessoas e de vidas.
Elis Regina, guiada pela caneta de Belchior cantou que o novo sempre vem e as perspectivas viciadas envenenam a realidade, nos deixando a mercê de gente que não sonha mais e o sonho, é ainda o oásis e o oráculo de uma parte significativa dos seres humanos. Não gosto do reducionismo que coloca o sonhar, o viver, o sentir como elementos com prazo de validade em nós, por anos trabalhei com Wilson das Neves, o lendário Baterista e era comum vê-lo se descrever como um jovem de 80 anos. Então é exatamente a essa energia a que me refiro, e a urgência de percebê-la em seu nascedouro e utilizá-la para construção do mundo melhor e possível que almejamos.
Minha profissão me mantém em contato constante com sonhadores de todas as idades, fico triste quando vejo sua frustração perante os empecilhos colocados por alguém que um dia também sonhou em ser ponte, mas o mundo infelizmente transformou em muro.
Acho que, movidos pela forma de ver o mundo que o digital sugere, cada vez menos haverá espaço para muros nos séculos vindouros. Mas o ingresso para adentrar a nova era, embora acessível, ainda assim tem seu custo. Precisamos nos alinhar com aqueles que ainda sonham, eles serão a bússola que nos afastará do colapso.
Minha sugestão a este antigo veículo que ainda tem alguma história pela frente é que leve a sério a juventude e assim a faça avançar com a potência de sua gasolina aditivada.
Emicida é rapper, cantor e compositor.
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