Leci Brandão aprendeu a tocar tambor nos terreiros de umbanda e dedicou aos orixás parte de sua trajetória artística. Por Fernanda Kalianny Martins Sousa
Fernanda Kalianny Martins Sousa – Nascida na região nordeste, mudou-se para São Paulo aos 8 anos. Estudou o ensino básico em escolas públicas, fez cursinho popular, e ingressou em Ciências Sociais na Universidade de São Paulo. Mestra em Antropologia Social na mesma universidade e doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas.
Ilustrações de Bia Prado – Bacharel em Desenho Industrial com habilitação em programação Visual pela universidade Mackenzie. Desde 2003, trabalha com criação para diferentes tipos de projetos gráfico, desde o desenvolvimento da ideia principal até a finalização da arte envolvendo diagramação e criação.
Leci Brandão da Silva. A primeira vez que ouvi esse nome foi depois de testemunhar, em um churrasco de família, um coro de pessoas cantando “Zé do Caroço” – canção gravada por Leci em 1985 e que se tornou uma das mais conhecidas da artista. Eu tinha cerca de dez anos, já morava em São Paulo, e o samba ia ganhando cada vez mais importância em minha trajetória. Já na universidade, após uma breve pesquisa em que eu busquei compreender como as mulheres negras eram retratadas em letras de samba, minha atenção se voltou para Leci novamente. Diante do estudo sobre as letras de músicas, pareceu-me necessário dar um passo além e conhecer mais profundamente a trajetória de quem compunha as canções.
Em relação à Leci, havia muita curiosidade em responder como, apesar de todas as dificuldades enfrentadas como uma mulher negra de origem humilde nascida na década de 1940, ela havia se constituído como um exemplo artístico e político, aclamada e admirada por pessoas negras de todas as idades. De 2013 a 2017, tive o prazer de entrevistá-la em diferentes momentos. Assim como de estar presente em situações marcantes em seu percurso profissional, como no show de 40 anos de carreira, aberto com Leci cantando “Saudação ao Seu Rei das Ervas”1, e na homenagem recebida por Leci, em 2023, feita no Sesc Pompeia. No primeiro caso, diferentes jovens do Projeto Guri, muitos oriundos da Fundação Casa, celebravam Leci, subindo ao palco para tocar, todos vestidos de branco. No segundo caso, Leci foi celebrada novamente, dessa vez, atravessando um caminho em que mulheres negras de branco tocavam tambores e anunciavam a presença de uma das maiores lideranças negras brasileira.
Leci é uma mulher complexa, com traços de personalidade e escolhas que em muito destoaram do que se era esperado de uma mulher negra de década de 1940. Em um misto de autodefinições, acompanhei Leci ora se colocando como “jornalista musical”, ora como alguém que entra em “transe” ao compor suas canções. Se olhar para si mesma como jornalista musical decorre de suas tentativas de cantar a realidade sociopolítica que informava a sua trajetória, ver-se como alguém que entra em transe se conecta com a sua religiosidade, desenvolvida, por sua vez, em decorrência dos caminhos percorridos junto às mulheres de sua família.
Iniciar o show de 40 anos de carreira cantando “Saudação ao Seu Rei das Ervas”, caboclo cultuado no terreiro de candomblé frequentado por Leci Brandão, dava ao show uma dimensão de importância especial – o que ela me contaria na segunda-feira seguinte ao seu show. Foi em 1985 que Leci colocou pela primeira em um álbum seu uma homenagem ao Seu Rei das Ervas, e o fazia agora novamente como quem fechava um ciclo de quatro décadas de carreira. Nesse sentido, não é possível compreender a trajetória espiritual de Leci sem nos determos em seu percurso familiar, seja quando olhamos para ela enquanto filha, seja quando a compreendemos como o que mais tarde ela nomeará como “arrimo de família”.
Leci Brandão da Silva nasceu em 12 de setembro de 1944 na cidade do Rio de Janeiro. Antes que nascesse, seus pais fizeram um combinado: se fosse menina, herdaria o nome da mãe. Se fosse menino, o nome do pai. Leci carrega, então, desde o nascimento a homenagem feita à sua mãe, Dona Lecy de Assumpção Brandão2. Tanto sua mãe, quanto seu pai, Antônio Francisco da Silva, preocuparam-se desde o seu nascimento com as condições que ofereceriam para que Leci crescesse de forma confortável. A história da família é, assim, marcada por muitas mudanças de casa e busca por novos empregos.
Seu Antônio trabalhava no Hospital Souza Aguiar, era funcionário público administrativo. A sua mãe, após muitos outros empregos, passou a ser zeladora de uma escola pública. Tanto o trabalho de seu pai, quanto o de sua mãe deram a Leci um espaço familiar que permitia uma vida mais estável do que muitas outras pessoas negras possuíam na mesma época. Com as mudanças de trabalhos de sua mãe, aos poucos a família deixou de morar em casas de cômodos, como se chamavam as antigas estalagens, e passou a morar em casas que eram oferecidas para as famílias das zeladoras de escolas. Leci cresceu, assim, rodeada por salas de aula.
A sua família era humilde, mas “farta”. Essa é a forma como Leci gosta de descrever o convívio entre ela e os seus. Aos domingos, iniciavam o dia tomando um “café da manhã delicioso”: pão, mortadela e queijo do reino. Ligavam a vitrola, dançavam e cantavam juntos. A mesa estava sempre cheia. A casa também. Recebiam os compadres, comadres, tios, tias e primos. Os pratos mais comuns nessas ocasiões eram macarrão com carne assada ou frango, rabada e feijoada.
“Afilhada, neta e filha de mulheres mangueirenses”, em alguns finais de semana, no lugar de ficar em casa com toda a família, Leci ia com a sua mãe para a Mangueira. A sua mãe conheceu Dona Lourdes, madrinha de Leci, quando trabalharam juntas em uma fábrica de tecidos em Vila Isabel. Lá, sua mãe também foi colega de trabalho de Jamelão3.
No morro da Mangueira, Leci participava dos ensaios junto de sua mãe e de sua madrinha. O seu pai não as acompanhava, pois era salgueirense. O tempo que passava com a mãe e a madrinha na Mangueira foi muito importante para a formação musical de Leci. Mais tarde, quando chegou ao ambiente universitário, passou a nomear a Mangueira como a “universidade do samba”.
Se a mudança de casas e trabalhos demonstrava o empenho de seus pais para que Leci tivesse uma vida mais tranquila e amparada por eles, o mesmo ocorria nas cobranças que eram feitas a Leci no que dizia respeito ao seu desempenho escolar. Alfabetizada por sua mãe antes de estar na idade escolar, o gosto pelos estudos foi cultivado em Leci desde muito cedo. A educação era vista por seus pais como a possibilidade de que ela pudesse ascender socialmente. As cobranças, desse modo, progrediam à medida que Leci avançava nos anos escolares. Foi na escola também que Leci sentiu o seu corpo marcado e classificado como negro pela primeira vez.
Aos 11 anos, participou de um concurso de dissertações na Escola Equador. Apesar de ter escrito a melhor redação, soube um tempo depois que o prêmio não lhe foi dado porque não acharam certo entregá-lo para a “filha negra da servente”. Optaram, então, por dar o prêmio para a filha branca da professora que havia ficado em segundo lugar.
Ao terminar o Ensino Fundamental, os seus pais a inscreveram em processos seletivos de três escolas distintas: o Colégio Pedro II, o Colégio Estadual Paulo de Frontin e o Instituto Guanabara. Aprovada nas três, o seu pai escolheu o Colégio Pedro II, pois se tratava de uma das instituições escolares mais tradicionais do Rio de Janeiro. É importante considerar que se o Colégio Pedro II era uma instituição muito tradicional, isso significava também ser uma instituição elitista e hegemonicamente branca. Nesse sentido, no novo ambiente escolar, Leci vivenciou mais uma vez eventos que marcaram o seu corpo e as suas experiências pelo racismo.
Prestes a finalizar o Ensino Médio, Leci passou por uma perda brusca. O seu pai faleceu em 26 de março de 1964, vítima de um problema cardíaco. Essa foi não apenas uma perda brusca, mas um recorte temporal na vida de Leci. A casa farta, cheia de parentes e convidados, tornou-se cada vez mais vazia. Por problemas burocráticos, a família não teve acesso a uma pensão, e a situação financeira se agravou. Diante disso, Leci iniciou a busca pelo primeiro emprego. Nessa ocasião, o movimento de se enxergar como negra ganhou maior solidez.
Ainda que estudasse no Colégio Pedro II, ela não conseguiu nenhuma oferta de trabalho. Ao concluir o Ensino Médio, achou que o emprego viria de forma mais rápida, mas novamente não teve êxito. Leci fazia as provas escritas, chegava a ir a entrevistas, mas sempre reprovava no que eles chamavam de “exame psicotécnico”. Essas reprovações eram consequência do fato de Leci ser negra. Ela, no entanto, só entendeu posteriormente que o anúncio “precisa-se de moça de boa aparência” era uma referência direta a “precisa-se de moças brancas”. Quando percebeu o que estava acontecendo, pôde compreender que os empregos não chegariam por conta da cor de sua pele. O seu primeiro emprego só veio quando Leci pediu ajuda aos seus colegas do colégio. O irmão de uma amiga trabalhava em uma empresa e falou que se ela passasse nas provas, não seria reprovada no “exame psicotécnico”. Aprovada, ela foi contratada logo em seguida.
Quando passou a viver apenas com Dona Lecy e com Iara, sua irmã mais nova, Leci começou a ser educada de uma forma menos rígida. Se antes tinha que ir da escola direto para casa e não era permitido que ela saísse com os amigos, agora ela podia conviver com outras pessoas da sua idade.
Em 1965, ela conheceu um moço negro da Marinha por quem se apaixonou. Ele foi o seu primeiro namorado e a sua primeira desilusão amorosa. Ao decidir fazer uma surpresa para a sua sogra, Leci foi surpreendida pela notícia de que ele ia se casar com outra moça que estava grávida. Essa notícia desencadeou um momento de muito sofrimento em sua vida. Esse acontecimento levou Leci a compor a sua primeira canção, intitulada “Tema do amor de você”. Tratava-se de um samba no estilo bossa nova, que Leci nunca gravou. Depois dessa composição, muitas outras foram escritas.
Não é possível compreender a trajetória espiritual de Leci sem nos determos em seu percurso familiar, seja quando olhamos para ela enquanto filha, seja quando a compreendemos como o que mais tarde ela nomeará como “arrimo de família”.
Nesse contexto, Leci foi convidada para cantar em um show da União Nacional dos Estudantes4. Depois disso, participou de muitos festivais de música, o que a levou, em 1968, a se apresentar no programa “A grande chance” da TV Tupi. Sua participação no programa fez a Telefônica, empresa em que trabalhava na época, comprometer-se a promovê-la. A promessa não foi cumprida. Leci então pediu demissão e foi trabalhar como operária em uma fábrica.
Certo dia, quando sua mãe foi até a Secretaria de Educação levar alguns documentos, a semelhança entre os nomes fez a secretária questionar se ela tinha algum parentesco com a moça que estava no programa da TV Tupi. Ao responder que sim, a secretária pediu notícias de Leci. Dona Lecy contou que sua filha estava trabalhando em uma fábrica, pois a Telefônica não havia cumprido a promessa. Por essa razão, a secretária falou com sua chefe, Dona Paulina, que era filha do dono da Universidade Gama Filho. Dona Paulina era uma grande fã de Leci e queria muito ajudá-la. Leci foi ao seu encontro e recebeu uma proposta de emprego.
Após esse encontro, ocasionado pela semelhança de seu nome e o nome de sua mãe, ela passou a trabalhar no departamento pessoal da Universidade Gama Filho. A mudança profissional significou uma virada financeira e permitiu que ela levasse sua mãe para morar em um apartamento e deixasse de morar em escolas. Além disso, Leci passou a conviver com estudantes universitários, ter contato com outros tipos de música e conheceu a antropóloga Lélia Gonzalez5 (1935-1994) que incentivou Leci a investir em sua carreira artística.
Em 1970, Leci se apresentou no I Festival de Música da Universidade Gama Filho. Nele, cantou “Cadê Mariza?”6, música que lhe rendeu o segundo lugar. Ao obter esse resultado, Zé Branco, tesoureiro da Mangueira e amigo da sua madrinha Lourdes, teve a ideia de levá-la para a Ala de Compositores da Mangueira. Quando foi encontrar com os compositores, Leci entregou para eles uma carta em que explicava as razões para desejar ser integrante da ala de compositores. Nessa carta, ela dizia que a Mangueira era “a universidade do samba” e que queria se formar enquanto artista e pessoa naquele espaço.
A ala era composta por cerca de 40 homens. Eles responderam que para integrá-la, Leci precisaria fazer um estágio que consistia em compor algumas músicas e acompanhar os trabalhos da ala. Em 1972, ela não só foi aprovada no estágio, como entrou para a história como a primeira mulher a integrar a Ala de Compositores da Mangueira. A partir daí, a sua carreira progrediu rapidamente. Em 1973, compôs a canção “Quero” com o Darci da Mangueira que também fazia parte da ala de compositores. Em 1974, começou a cantar no Teatro Opinião, ao lado de Dona Ivone Lara e outros sambistas. No mesmo ano, foi lançada no show “Unidos do Pujol”, em Ipanema, novamente ao lado de Dona Ivone Lara e agora também de Alcione.
Quando chegou ao ambiente universitário, passou a nomear a Mangueira como a “universidade do samba”.
Ainda em 1974, Leci gravou o seu primeiro compacto. Por essa razão, recebeu uma licença sem data de vencimento da Universidade Gama Filho. Pôde, assim, dedicar-se integralmente ao seu trabalho como cantora e compositora. Em 1975, participou do Festival de Abertura da Rede Globo. Nele, foi finalista com o samba “Antes que eu volte a ser nada”. Sua participação resultou no lançamento do seu primeiro LP que era homônimo a essa canção.
Em 1976, 1977 e 1978, Leci lançou respectivamente os LPs Questão de gosto, Coisas do meu pessoal e Metades. Do LP de 1977, a canção “Ombro amigo” virou tema de abertura da novela Espelho Mágico da Rede Globo. Em 1980, lançou o álbum Essa tal criatura. A música homônima concorreu ao Festival MPB 80, da Rede Globo, e foi para a final. Em novembro do mesmo ano, Leci foi escolhida para representar o Brasil no World Popular Song Festival que aconteceria no Japão.
Em 1981, no contrafluxo de todo o sucesso, o seu contrato com a gravadora Polygram foi rescindido por motivos políticos. O seu repertório passou a ser visto pela gravadora como “excessivamente político e contestador”. Leci não teve dúvidas, escreveu uma carta e encerrou seu contrato com a multinacional. De 1981 a 1984, Leci não gravou novos álbuns. Sustentou-se fazendo shows nos palcos do Serviço Social do Comércio – Sesc, em presídios e participou do Projeto Pixinguinha – que tinha como objetivo tornar a música popular brasileira acessível às camadas populares. Ainda nesse período, a convite de Martinho da Vila, fez um show em Angola. Mesmo que tenha não tenha parado de trabalhar, esse foi um momento bastante delicado profissionalmente para Leci. Ela encontraria respostas para essa situação na esfera religiosa.
Ainda que Leci tenha entrado em contato com diferentes religiões durante a infância, ela começou a acreditar mesmo nos orixás e no candomblé no período em que ficou sem gravar. Em uma ida ao terreiro, ouviu de Seu Rei das Ervas7 que a situação financeira iria melhorar. Primeiro, ela sairia do país e, posteriormente, voltaria a gravar. Foi o que aconteceu. Em 1984, como mencionado, Leci foi para Angola. Na volta, lançou um LP pela gravadora Copacabana.
A nova gravadora não se contrapôs aos seus posicionamentos políticos. Pediu, na verdade, que Leci continuasse falando sobre o que sempre falou, mas que direcionasse sua carreira para as classes populares, pois até então o seu público era composto majoritariamente por intelectuais de classes médias e altas.
Como forma de agradecimento, no disco de 1984, Leci fez uma homenagem ao Seu Rei das Ervas. Nos próximos discos, as homenagens às entidades religiosas8 continuaram. Em 1987, Leci homenageou Iansã. Em 1988, Ogum. Em 1989, Oxum.
Atualmente, Leci frequenta um terreiro localizado em São Gonçalo, “terreiro da mãe Alice”. Filha de Ogum9 e Iansã10, associa as características de ser uma mulher forte, guerreira e independente aos traços de seus orixás. E, ainda que nunca tenha se iniciado no candomblé, cumpre todas as obrigações religiosas regularmente.
Quando Seu Rei das Ervas anunciou que ela voltaria a gravar, disse também que Leci não se casaria com um homem. Em vida, a sua função seria ajudar as pessoas. O que parece melhor simbolizar a indicação do Seu Rei das Ervas é a relação que Leci estabelece com a sua família.
A partir de uma perspectiva religiosa, justifica o fato de nunca ter se casado com um homem e tido filhos porque o “homem da minha vida é Ogum”.
Após a morte de seu pai e o nascimento de suas sobrinhas, Nuala e Letícia, pouco a pouco Leci direcionou o foco de sua vida para cuidar das pessoas que ama. A partir de uma perspectiva religiosa, justifica o fato de nunca ter se casado com um homem e tido filhos porque o “homem da minha vida é Ogum”.
A relação que Leci estabelece com a religião é bastante conectada com a sua carreira. Ainda que não incorpore os orixás, ela associa as suas composições a uma espécie de transe. Compõe as músicas de uma vez só, volta nelas apenas para lapidá-las. Essas canções não têm a ver necessariamente com situações que tenha vivido, muitas delas tomam conta de sua imaginação e do seu pensamento como se tivesse uma outra vida acontecendo diante dos seus olhos.
Em diversas situações, quando Leci acaba uma composição e volta a si, não reconhece o que escreveu. Além dessa associação com o transe religioso, há uma comparação entre o ato de compor e o trabalho de uma jornalista. Já que as canções nem sempre fazem referência ao que vivenciou e muitas delas têm posições bastante críticas politicamente, Leci se define também como uma “jornalista musical”.
Enquanto “jornalista musical”, Leci seguiu um caminho não só artístico, mas político. A maior parte de suas composições estão relacionadas a um olhar crítico para as injustiças sociais. Diante disso, ao lado de sua carreira enquanto compositora e cantora, nos últimos anos, Leci tem se dedicado à política institucional.
É interessante pensar que sua carreira tem se feito mais em São Paulo do que em sua terra natal. Ainda na década de 1980, na mesma época que assinou contrato com a Copacabana, Leci mudou-se para São Paulo. Aqui, encontrava mais espaço para crescer profissionalmente. A princípio, morou no Hotel Jandaia, que hospedava muitos artistas no centro de São Paulo. Alguns anos depois, mudou-se para um bairro próximo ao Aeroporto de Congonhas, pois queria se sentir perto do Rio de Janeiro e de sua mãe.
De 1987 a 2002, Leci lançou outros 14 álbuns. Recebeu o Prêmio Sharp em 1995 pelo álbum Anjos da Guarda e em 2008 pelo CD Eu e o samba. Em 2006, Leci gravou o seu primeiro DVD, intitulado Canções afirmativas, e, em 2013, o segundo DVD, nomeado Cidadã da diversidade. Em 2017, estreou o álbum Simples assim. Em 2019, inaugurou os singles “Refazendo a cabeça” e “Para colorir muito mais” e, em 2020, o single “Eu vou mostrar”.
Sua carreira política teve início em 2004, quando se tornou Conselheira da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e passou a fazer parte do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, permanecendo nesses postos por dois mandatos. Em 2010, aceitou ser candidata a deputada estadual de São Paulo pelo Partido Comunista do Brasil – PCdoB. Foi então eleita a segunda mulher negra11 a ocupar esse cargo no estado.
Reeleita em 2014, 2018 e 2022, concilia desde então os seus feitos enquanto deputada e sambista, concentrando os shows no final de semana e se dedicando ao seu mandato de segunda a sexta-feira. Em consonância com os temas que já tratava em suas canções e diante da importância que dava à luta pela igualdade racial e ao respeito aos direitos humanos, Leci nomeou o seu gabinete na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo como “Quilombo da diversidade”.
Uma das diretrizes dos seus mandatos é aumentar a influência e a participação de pessoas negras na política institucional. Além disso, posicionou-se a respeito de temas ligados à educação, ao hip hop, às comunidades do samba, às religiões de matrizes africanas, ao segmento LGBT+, à juventude e aos direitos trabalhistas. Mesmo que esteja em seu quarto mandato, Leci enfatiza ser cantora e compositora. E estar deputada. Essa afirmação nos leva a pensar a sua carreira política como uma continuidade do que fazia anteriormente, o que nos faz compreender a carreira de Leci Brandão como artístico-política.
Após três anos de entrevistas e mais alguns anos refletindo sobre nossas conversas, é evidente que a trajetória de Leci foi moldada pela influência e apoio de seus pais desde cedo. O amor pela leitura, música e escrita a fortaleceu, capacitando-a a desafiar limites e conquistar posições que pareciam inalcançáveis para alguém como ela. Sua jornada espiritual, iniciada no terreiro de umbanda e posteriormente no candomblé, foi uma fonte vital de inspiração, fornecendo-lhe a coragem necessária para seguir adiante e motivar outros afrodescendentes a trilhar seus próprios caminhos.
A conexão profunda com os orixás proporcionou a Leci uma base sólida, enraizada em suas próprias convicções, que orientou sua jornada desde o seu íntimo até o mundo exterior. Inicialmente, expressou essa ligação encerrando seus trabalhos com homenagens aos orixás e entidades da umbanda. Mais recentemente, essa dinâmica se inverteu, e ela passou a iniciar novos capítulos de sua vida com saudações e cânticos, celebrando momentos especiais. Da sua trajetória enquanto “jornalista social” ao “transe espiritual” no ato de compor, Leci nos presenteia com uma narrativa que nos reconecta não apenas com quem ela foi, mas também com quem é hoje e com quem seremos enquanto sociedade posteriormente.
Referências bibliográficas
CONSTANT, Flávia Martins. Tantinho, memória em verde e rosa. Estudo do processo de construção de uma memória da favela da Mangueira. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História, Política e Bens Culturais, 236 folhas, FGV, Rio de Janeiro, 2007.
OLIVEIRA, Kiusam Regina de. Candomblé e educação: estratégias para o empoderamento da mulher negra. Tese de doutorado, área de concentração: cultura, organização e educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 213p., 2008.
PRANDI, Reginaldo. Segredos guardados: orixás na alma brasileira. São Paulo, Companhia das Letras, 2005.
SOUSA, Fernanda Kalianny Martins. “Nesse meu Brasil todo mundo bate tambor”: análise do show de 40 anos da carreira artístico-política de Leci Brandão. Equatorial – Revista do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, v. 3, n. 5, p. 18-52, 31 mar. 2017a.
SOUSA, Fernanda Kalianny Martins. A filha da Dona Lecy: estudo da trajetória de Leci Brandão. 181p. Dissertação de mestrado. Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017b.
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