Literatura fora dos livros

30/09/2024

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Dedicadas à discussão, reflexão e divulgação de escritores, revistas literárias atravessam décadas cativando e ajudando a formar novas gerações de leitores

POR MARIA JÚLIA LLEDÓ

Leia a edição de OUTUBRO/24 da Revista E na íntegra

No século 19, os jornais brasileiros e a literatura caminhavam de mãos dadas nas mesmas páginas impressas. A exemplo do Correio Mercantil, que publicou em folhetim a obra Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), entre 1852 e 1853. Ainda no século 19, surgiram as primeiras revistas literárias, como a Revista Brasileira, criada pela Academia Brasileira de Letras (ABL) em 1855, na qual foi publicada a primeira versão de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis (1839-1908). Já no século 20, outra revista chamou a atenção de leitores em todo o país ao fazer chegar um dos mais relevantes manifestos estéticos e políticos, o Manifesto Antropófago, de Oswald de Andrade (1890-1954). As páginas da Revista de Antropofagia também deram espaço a autores estreantes, entre eles, o mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que aos 26 anos lançava sua mais famosa poesia, “No meio do caminho”, na capa de julho de 1928.

Desde então, a literatura brasileira escaparia dos livros para ganhar novos meios de difusão. Para além de bibliotecas e livrarias, contos, poemas, crônicas e outros gêneros chegariam aos leitores em revistas literárias e outras plataformas. Editor, escritor e um dos curadores do projeto Revistaria – encontro de revistas literárias brasileiras –, Pedro Spigolon explica que, depois dos anos 1920, as décadas seguintes acompanhariam uma profusão de revistas literárias, responsáveis por promover debates, reunir críticas, abrir espaço para autores em começo de carreira, e para a publicação de textos experimentais que, dificilmente, encontrariam espaço no mercado editorial.

“Já nas décadas de 1970 e 1980, houve uma grande proliferação das revistas literárias, ultrapassando as centenas de títulos. Conhecidas como ‘imprensa nanica’, essas publicações possuíam, em geral, pequenas tiragens, mas que circulavam de mão em mão, dando a conhecer a intensa e vibrante produção literária da época. Sua importância era tamanha que Paulo Leminski (1944-1989) chegou a dizer que ‘os maiores poetas dos anos 1970 não eram gente, mas sim revistas’”, descreveu Spigolon em artigo publicado na Revista E, na edição de junho de 2021.

Com o avanço da internet, a partir da década de 1990, as revistas voltadas às artes, especialmente à literatura, passaram a ocupar, também, o meio digital. Desde então, a impressão e distribuição, que antes impunham elevados custos à publicação, não mais restringiriam o surgimento de novos títulos. Paralelamente, outras revistas começaram a adotar um modelo híbrido (impresso e digital). Atualmente, o número exato de revistas literárias no país é desconhecido, mas estima-se que existam dezenas criadas e distribuídas em todas as regiões do país. Desde as independentes, como a Intempestiva (SP), Olympio (MG) e Acrobata (PI), até as institucionais, como a Serrote (do Instituto Moreira Salles), o Suplemento Pernambuco (da Companhia Editora de Pernambuco – CEPE junto ao governo do estado) e a Palavra – criada pelo Departamento Nacional do Sesc, voltada ao fomento de diferentes formas de produção e circulação da literatura [leia mais em Travessias literárias].

O mundo conectado também facilitou a criação de diferentes plataformas digitais responsáveis por desenhar um novo espaço para a divulgação literária, a exemplo do Medium, que estreou no Brasil em 2013 e se tornou um território criativo para a publicação autoral. Na esteira da cena digital, canais no YouTube, redes sociais – como o Instagram e o Tik Tok –, além de podcasts, passaram a ser espaços de resenhas, críticas, entrevistas e de fomento à criação de clubes de leitura, expandindo ainda mais a ação da literatura e estreitando a relação entre autores e público.

ABRIR CAMINHOS
Quem folheia ou visualiza as páginas de uma revista literária pode encontrar não apenas resenhas e críticas de novos títulos, mas também ser surpreendido pelo texto inédito de um autor sobre o qual nunca ouvira falar – ou que estava, até então, “escondido” em prateleiras de bibliotecas e livrarias. Por isso, o autor de romances, contos e livros infantojuvenis Marcelo Maluf acredita que as revistas literárias se comunicam diretamente com os leitores. “Seja pela diversidade de autores, seja pela possibilidade de, numa mesma revista, os leitores terem contato com diversas linguagens e modos de se produzir literatura contemporânea”, observa o escritor paulista, cuja obra A imensidão íntima dos carneiros (2015) foi finalista do Prêmio Jabuti e vencedora do Prêmio São Paulo de Literatura, em 2016.

Assim como tantos escritores e escritoras que tiveram seus textos publicados em revistas literárias, Maluf lançou seus primeiros contos numa revista chamada Pista, de São Paulo, em 2004, depois em 2009, na Coyote, de Londrina (PR). Ele também já publicou na São Paulo Review (SP), Ruído Manifesto (MT) e na própria Revista E. “O retorno, muitas vezes, é sempre mais imediato do que o livro. E, sem dúvida, acredito que seja um espaço para pôr os textos à prova. Encarar o leitor de frente, se lançar no mundo como escritor. Além de fazer seu nome começar a circular”, constata Maluf.

Essa divulgação se deve, segundo o crítico literário, professor e escritor paraibano Cristhiano Aguiar, ao fato de que as revistas literárias exercem um papel fundamental ao dar visibilidade às novas trajetórias da literatura contemporânea. “Mesmo autores com uma caminhada bem profissional apreciam publicar em revistas literárias. Isso se deve ao fato de que muitas vezes nós, autores, temos ideias para narrativas ou poemas, ou estamos com estes textos na gaveta, e gostaríamos que eles se conectassem com nossos leitores antes que um livro pudesse ser publicado. Além disso, seja para iniciantes ou veteranos, uma revista literária muitas vezes é um lugar de maior liberdade criativa, de menos pressões editoriais, um precioso lugar de teste para as novas ideias que nos surgem”, observa.

Atualmente, o autor de Gótico nordestino (2022), vencedor do Prêmio Clarice Lispector de melhor livro de contos, em 2022, segue colaborando com resenhas e contos autorais em revistas literárias. “Uma das publicações mais recentes foi justamente na Revista E [o conto de terror “Anunciação”, na edição de junho de 2024]. O texto teve uma ótima repercussão entre os leitores, o que foi uma grata surpresa. Houve até a sondagem para que ele, no futuro, possa virar um curta, ou média metragem, realizado por uma produtora da Paraíba”, celebra.

VIDA LITERÁRIA
Mais do que promover o encontro entre autores e leitores, e criar um espaço para críticos, as revistas literárias carregam o potencial de construir comunidades. Grupos que sentem uma lacuna entre o ato de escrever ou ler e maneiras de elaborar e compartilhar, coletivamente, novos conhecimentos e percepções sobre enredos e personagens. Para o editor e diretor de redação da Quatro Cinco Um, Paulo Werneck, essas publicações compõem a cena de uma “vida literária”, em alusão ao conceito cunhado pelo crítico Brito Broca (1903-1961).

“O que é essa ‘vida literária’? Ela acontece na livraria, na revista, nos festivais literários, nos saraus nas periferias etc. A gente tem uma ideia de que a leitura é uma atividade solitária, mas ela não é. Quando fazemos uma revista, estamos acenando para milhões de pessoas que gostam de ler. A gente cria comunidades e acho que esse é um grande feito das revistas literárias, em geral”, observa Werneck.

Revista multiplataforma de crítica de livros, a Quatro Cinco Um foi lançada em maio de 2017 com a alcunha “a revista dos livros” e publica resenhas, reportagens, entrevistas, notas e outros conteúdos sobre lançamentos no Brasil, em mais de 20 áreas. Desdobrando-se em diferentes formatos – edição impressa mensal, site, podcasts, newsletters e clubes de leitura –, a revista, com sede na cidade de São Paulo, é orientada pela bibliodiversidade e pelo pluralismo. “Eu acho que o ‘grande autor’ ou a ‘grande autora’ tem que estar do lado do autor iniciante. A gente tem que, de alguma forma, promover esse diálogo das novas gerações com as antigas. Eu quero misturar o autor consagrado com o autor da periferia de São Paulo”, explica Werneck.

GIRAR A CHAVE
Também nesse meio editorial, o jornal Rascunho foi criado em abril de 2000 pelo jornalista e escritor Rogério Pereira. O veículo é reconhecido pela publicação de ensaios, resenhas, entrevistas, textos de ficção, HQs e ilustrações de autoria brasileira e estrangeira em suas páginas físicas e virtuais. “A ideia era fazer um jornal de literatura que fosse panorâmico e democrático. Nasceu de uma vontade de viver da literatura, de fazer literatura. E sempre foi um projeto colaborativo: tenho mais de 130 colaboradores, mas começamos com sete ou oito amigos na mesa de um bar”, lembra Pereira, editor da publicação, que tem sede em Curitiba (PR) e é distribuída para todo Brasil e exterior.

Durante essa caminhada de quase 25 anos do Rascunho, Pereira observa que as revistas literárias precisam, ser valorizadas como importantes registros históricos. “Elas ajudam a contar a história daquele momento. Por isso, eu acho que são um depositário da memória e da história da literatura brasileira”, defende.

Outra contribuição é sua capacidade de provocar a curiosidade de leitores e, em alguns casos, a formação deles. “Acredito que uma revista literária pode formar leitores se ela for usada como um dos recursos pedagógicos possíveis em uma proposta educativa, seja na educação básica, no ensino superior ou em cursos livres de formação de leitores ou de mediadores de leitura”, defende o escritor e crítico literário Cristhiano Aguiar. Ele pondera, no entanto, que há uma limitação nesse sentido. “A revista por si só, contudo, me parece mais focada em um nicho de leitores já formados ou no mínimo em formação avançada enquanto leitores”.

Para o diretor de redação da Quatro Cinco Um, Paulo Werneck, a revista literária é um ponto de apoio para os leitores. “Eu não sei se quem não é leitor vai pegar para ler a Quatro Cinco Um, por exemplo, e vai se tornar um leitor. Mas, talvez, a gente tenha alguma contribuição para a formação de leitores profissionais como na seção ‘Leitores de carteirinha’”, conta. Nesta página assinada por jovens frequentadores de bibliotecas comunitárias do Brasil, fruto de uma parceria com a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias (RNBC), são eles que escolhem um título para ler e tecer reflexões. “São resenhas muito boas e sinceras. Você vê talentos literários”, constata.

Para Werneck, esse tipo de ação contribui para que jovens leitores percebam que aquela colaboração para uma revista literária também pode se tornar um ofício. “Você pode virar tradutor, revisor, jornalista, professor… Eu acho que, de alguma forma, a gente contribui para a formação de leitores profissionais”, vislumbra.

MUNDOS POSSÍVEIS
O que pode a literatura numa realidade em que tudo parece mais urgente que a literatura? A pergunta lançada pela escritora Carola Saavedra em O mundo desdobrável – Ensaios para depois do fim (Relicário, 2021) poderia ser respondida de diferentes formas. Talvez a literatura possa fabular outros mundos possíveis e devolver ao leitor a capacidade de sonhar. Fato é que as trilhas da literatura se ampliam significativamente quando ela ganha corpo fora dos livros. Para o editor do jornal Rascunho, Rogério Pereira, a literatura pode tudo e nada, a depender do espaço que ocupa.

“A literatura tem a capacidade de dilatar a consciência do ser humano em relação ao meio em que ele vive, a partir das palavras num pedaço de papel ou digitalmente, num livro ou numa revista literária”, defende. “Como iluminar a escuridão com uma lanterna apagada? Muitas vezes, nós não avançamos porque não fazemos da literatura a potência que ela deveria ser no cotidiano das pessoas, na vida corriqueira, no dia a dia daquele menino”, conclui.

para ver no Sesc
TRAVESSIAS LITERÁRIAS
Oficinas, debates, lançamentos e publicação de revistas pelo Sesc expandem a literatura e aproximam o público de outras formas de leitura

Em diversos projetos e ações, o Sesc São Paulo pavimenta estradas que aproximam a literatura do público, contribuindo para a formação de leitores e para o fomento de debates, cursos, circulação de livros e publicações. Além de uma programação dedicada à literatura nas unidades do Estado de São Paulo, o Sesc mantém uma editora de livros, as Edições Sesc São Paulo, dedicada a publicação de obras de não ficção nos campos das artes e das ciências humanas.

Neste mês, o Sesc estará presente, pelo oitavo ano consecutivo, na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), entre 9 e 13/10, com uma programação composta por lançamentos de livros, bate-papos, atividades culturais, oficinas e vendas de livros na Casa Edições Sesc, no Centro Histórico da cidade.

Lançada em 2009, a revista Palavra é outra iniciativa literária da instituição, realizada pelo Departamento Nacional do Sesc. Feita, neste ano, em parceria com o Sesc São Paulo, a publicação dedica-se ao fomento da leitura, com páginas compostas por textos inéditos de autores e autoras de diferentes regiões do país que participam do projeto Arte da Palavra – Rede Sesc de Leituras, maior circuito literário do Brasil, com cerca de 50 artistas da palavra escrita e da oralidade. Desde 2022, a Palavra conta com QR Code para a produção da literatura oral, como contação de histórias, slams, entre outros.

Confira destaques da programação e outras ações literárias do Sesc São Paulo:
EDIÇÕES SESC SÃO PAULO
Flip 2024
A Casa Edições Sesc integra a programação da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), com uma programação composta por lançamentos de livros, bate-papos, além de um espaço dedicado à venda das publicações e a sessões de autógrafos.
De 9 a 13/10, em Paraty (RJ).
Confira a programação em sescsp.org.br/edicoes

14 BIS
Projeto Tramas do Luto
Série de encontros literários com escritores, filósofos, jornalistas e cineastas sobre o luto, o amor e as possibilidades de ressignificar perdas. Entre os convidados, Natalia Timerman, Guarani Jerá Guarani, Ana Claudia Quintana Arantes e Marcelo Rubens Paiva.
De 16/10 a 13/11, quartas às 19h, na Biblioteca. Grátis. Saiba mais em sescsp.org.br/14bis

TAUBATÉ
Projeto Litera – Festa das Letras e da Voz
Na capital nacional da literatura infantil, o Sesc realiza uma festa literária voltada ao incentivo à leitura, à cultura do livro e da literatura em suas variadas vertentes.
De 16 a 20/10, quarta a domingo. Grátis. Saiba mais em sescsp.org.br/taubate

DIGITAL
Literatura Livre
Fruto de uma parceria entre o Sesc São Paulo e o Instituto Mojo de Comunicação Intercultural, o projeto promove o acesso gratuito a obras clássicas da literatura mundial em tradução direta do idioma original. Em sua segunda edição, lançada em agosto, o Literatura Livre conta com 15 e-books de obras de George Orwell, Katherine Mansfield, Horacio Quiroga, entre outros autores e autoras.
Leia aqui literaturalivre.sescsp.org.br

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