LIVROS PARA OUVIR | Um bate-papo com Maria Carvalhosa

28/11/2023

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Idealizadora da Supersônica, editora especializada em audiolivros, celebra potencialidades desse formato QUE GANHA CADA VEZ MAIS OUVINTES NO mundo

POR LUNA D´ALAMA

Leia a edição de DEZEMBRO/23 da Revista E na íntegra

Aos 21 anos, Maria Stockler Carvalhosa lembra muito bem quando começou a ter dificuldades em ler palavras escritas na lousa do colégio, no início da adolescência. A situação piorou quando ela não viu uma mochila no chão da sala de aula, tropeçou e caiu. Naquele mesmo dia, em setembro de 2015, sua mãe a levou a uma consulta com um oftalmologista. A garota saiu de lá com o diagnóstico de hidrocefalia cerebral, e, ao ser submetida a uma cirurgia, foi vítima de um erro médico que afetou sua visão. “De repente, meu mundo virou de cabeça para baixo, e nada mais era feito para mim. Eu não podia mais ler, ver filmes, ir a uma exposição. Não conseguia mais lidar com tudo aquilo a que estava acostumada”, conta.

Maria se viu afastada dos livros que tanto amava, até que, no primeiro ano do ensino médio, teve como leitura obrigatória a tragédia grega Antígona, de Sófocles, e encontrou um audiolivro em inglês. Após passar alguns anos desconectada das novidades literárias e das redes sociais por falta de acessibilidade, um universo totalmente novo se abriu para ela. E o que era uma paixão se transformou em profissão. Estudante de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Maria se uniu, em 2021, à escritora Beatriz Bracher, à produtora Mariana Beltrão e à artista multimídia Daniela Thomas para fundar a editora Supersônica, especializada em audiolivros.

Os primeiros títulos da editora foram lançados em agosto deste ano e, poucos meses depois, seu catálogo mais que dobrou. Entre as obras adaptadas para o áudio estão clássicos como O Amor em 5 Contos, de Machado de Assis (1839-1908), e Os mortos, de James Joyce (1882-1941), além de livros contemporâneos, como O lugar, O acontecimento e O Jovem, da escritora francesa Annie Ernaux, ganhadora do Prêmio Nobel de Literatura em 2022. Para dar voz às histórias, foram escolhidos artistas do teatro e do cinema, como Caio Blat, Isabel Teixeira, Sandra Corveloni, Guilherme Weber e Roberta Estrela D’Alva.

“A literatura é uma experiência, ao mesmo tempo, de descoberta e de alucinação. Ela nos possibilita estar em outros lugares, habitar outras consciências, imaginar outros mundos. Todos nós criamos imagens de um livro sem estarmos realmente vendo. Escutar um livro é se abrir para uma nova forma de leitura, maravilhosa e radical. A voz da pessoa que lê passa a integrar o corpo do texto. Outras partes do livro se acendem nessa ligação, íntima e instável, entre os dois leitores: o que fala em voz alta e o que escuta. O audiolivro é uma experiência de generosidade e de atenção”, explica Maria Carvalhosa no site da editora.

Acompanhada desde 2022 por seu cão-guia Café, um labrador de cor preta, Maria considera que está em paz pelo jeito que é, mas ainda não pela forma como é tratada pela sociedade. Para mudar esse cenário, aposta na expansão da Supersônica, no número de ouvintes de audiolivros no Brasil e na inclusão literária de todas as pessoas com deficiência. Neste Encontros, a entrevistada fala sobre capacitismo, mercado editorial e o futuro dos audiolivros.

CONTRA O CAPACITISMO

A raiz do preconceito contra pessoas com deficiência está na noção de capacidade, pois nossa cultura ocidental foi construída sobre conceitos como potência corporal e produtividade. Somos todos perseguidos por um ideal de eficiência. Inclusive, na palavra deficiência está contida essa noção de não eficiência. Por séculos, pessoas com deficiência não foram vistas como capazes de produzir, de trabalhar, de praticar esportes. Essa discussão passa pela nossa relação com o corpo, com a vida e com o mundo. E o capacitismo atravessa todos os tipos de deficiência: visuais, auditivas, físicas, cognitivas. Sinto isso quando vou a uma exposição, por exemplo, e não há recursos de acessibilidade. Ou quando me tratam mal, me subestimam ou não me consideram capaz de entender algo por causa da deficiência. Acessibilidade deveria ser a regra, inclusive está na Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência [nº 13.146/2015], mas acaba sendo parte da luta anticapacitista. Quantos amigos com deficiência você tem? Já se apaixonou por um(a) PCD? Nós ainda estamos muito segregados na maioria dos lugares, esses são efeitos do capacitismo. Desejo que todo mundo entre nessa luta comigo para construirmos um país mais acessível e que as pessoas com deficiência estejam presentes para debater esses temas coletivamente.

Quando você desenvolve um audiolivro, está adicionando uma outra camada, uma nova textura ao texto. Uma voz que tem sotaque, gênero, intenções.

Maria Carvalhosa, idealizadora da Supersônica

Foto: Jorge Bispo

TENDÊNCIA MUNDIAL

Em muitos lugares, principalmente em países nórdicos (como Suécia, Noruega e Finlândia), o audiolivro ou livro falado já ultrapassou o formato e-book e já é quase tão expressivo quanto a obra física. É um hábito que essas pessoas já têm, enquanto aqui no Brasil a gente está muito mais acostumada(o) a ouvir música ou podcast. Temos uma cultura radiofônica, mas o audiolivro ainda não pegou – embora tenha todo o potencial para isso. Desde o início da Supersônica, em 2021, queríamos fazer uma seleção fascinante de títulos, interpretados por grandes vozes da cultura brasileira. Porque quando você desenvolve um audiolivro, está adicionando uma outra camada, uma nova textura ao texto. Uma voz que tem sotaque, gênero, intenções. É um universo que abre portas também para a diversidade na leitura, não é um suporte neutro. O audiolivro, aliás, quebra qualquer forma de neutralidade. Pode virar um incômodo, ou pode fazer você se aproximar mais de um livro, justamente por causa disso.

CONSTRUÇÃO DO CATÁLOGO

O audiolivro pode conter tanto uma leitura neutra quanto mais interpretativa, performática. Na Supersônica, procuramos não pecar por excesso em nenhum dos lados: nem por tanta neutralidade, nem por dramaticidade demais. Esses dois extremos podem fazer o ouvinte se afastar do texto. Existe um ajuste fino, que estamos buscando, em que o tom se encaixa perfeitamente ao texto, variando em um livro de poesia, ficção, teoria, em primeira pessoa, em terceira. A cada obra, a gente quer experimentar, fazer projetos artísticos independentes, com efeitos sonoros ou não. Estamos num momento de construção do nosso catálogo. Muitas outras produtoras estão surgindo, e acho que nos complementamos. Não tem competição. Todos queremos fazer obras acessíveis e com qualidade. Nos preocupamos em balancear obras antigas, novas, brasileiras e estrangeiras.

VOZES PARA O TEXTO

Após o primeiro momento de escolha de um novo audiolivro para o nosso catálogo, vem a decisão sobre quem fará a interpretação do texto, dando voz aos personagens e narradores. Uma voz é capaz de criar movimentos e acender partes do texto que podem não estar muito claras quando você lê um livro. Talvez algumas pessoas escutem nossos audiolivros por serem fãs desses grandes nomes envolvidos, como Sandra Corveloni, Isabel Teixeira, Guilherme Weber e Roberta Estrela D’Alva, mais do que pela obra em si. Todos os convidados, até agora, identificaram-se muito com o texto, gostaram dessa aventura e se abriram para uma nova experiência. Isabel Teixeira, por exemplo, diz que interpretar um audiolivro é diferente de fazer cinema, televisão ou teatro. É outra mídia, e a voz está em outro lugar. E o público produz imagens mentais, o palco é a cabeça do ouvinte. Além disso, a leitura e a escuta acontecem simultaneamente, então emissor e receptor constroem essa relação de mãos dadas, de forma coletiva.

MERCADO EDITORIAL

No início de outubro, a Audible – maior plataforma de audiolivros do mundo, de propriedade da Amazon – chegou ao Brasil. E isso transforma tudo. Além disso, o Spotify está testando a venda de audiolivros em países de língua inglesa. Se essa experiência der certo, no futuro poderão começar a vender por aqui também. Por outro lado, como ainda não existe por aqui um público grande de audiolivros, as pessoas não sabem direito como ou onde comprá-los. É por isso que a Supersônica faz tutoriais explicativos. Temos que detalhar esses passos para o público, porque a maioria dos brasileiros nunca consumiu um audiolivro na vida. Acho, porém, que essa é uma tendência mundial e que está crescendo exponencialmente em todos os lugares. Há um potencial artístico incrível a ser explorado, e muitas editoras já estão apostando na criação e na adaptação de audiolivros.

ATRAIR O PÚBLICO

Uma preocupação da Supersônica tem sido como atrair pessoas interessadas e fazê-las se apaixonar pelo audiolivro. Acho que é um trabalho de palestrar e mostrar nossos projetos em vários lugares. Além disso, precisamos entender como tornar esses livros acessíveis ao público por até R$ 40. Também nos interessamos pela elaboração de materiais de apoio e divulgação em podcasts, rádios e outros formatos, para estimular cada vez mais ouvintes. Hoje não há um único modelo para isso, cada produtora de áudio faz de um jeito, ainda é um momento de guerrilha. Falta essa cultura de resenhar audiolivros tanto no Brasil quanto no mundo. Por ora, ainda estamos sem solução para criar e fidelizar um público ouvinte.

E O BRAILLE?

Quando fiquei cega, a primeira coisa que fiz foi perguntar para uma amiga, também deficiente visual, se eu teria que aprender braille. Criei uma rede de apoio essencial para continuar estudando, fazer faculdade e trabalhar. E essas pessoas me explicaram que, para lidar com o mundo e com o mercado, seria mais importante saber mexer bem no computador e no celular, ou seja, ser boa em tecnologia. Aliás, os cegos e as pessoas com deficiência se apoiam muito na tecnologia como um jeito de equalizar as diferenças e diminuir nossas barreiras no mundo. Eu senti falta de aprender braille quando tive a necessidade de catalogar coisas, ler bulas de remédios ou, simplesmente, ler em silêncio. Às vezes, é exaustivo lidar o tempo todo com tanto som, voice-over [técnica de narração sobre um vídeo]. Eu sentia falta de poder ler e ficar quieta. Aprendi braille, no fundo, para um dia ler Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa [1908-1967]. Entendo que a experiência de uma pessoa que ficou cega após a alfabetização, como eu, é muito diferente daquela que já nasceu sem visão ou a perdeu antes de aprender a ler. Na minha opinião, o braille é uma ferramenta tão valiosa quanto outras. E, quanto mais você domina todas as técnicas disponíveis, melhor. Pode ser que, no futuro, uma criança em fase de alfabetização possa ouvir um audiolivro enquanto acompanha o texto em braille. São ferramentas complementares.

Ouça, em formato de podcast, a conversa com Maria Carvalhosa, que esteve presente na reunião virtual do Conselho Editorial da Revista E, no dia 25 de outubro de 2023. A mediação do bate-papo é de Hugo Nakagawa, técnico de programação do Sesc Pinheiros.

Edição: Carol Mendonça

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