Produzido dentro do Sesc: inquietações sobre música. Nesta edição, as origens do Calipso por Amauri Martins.
Amauri Martins é jornalista alfabetizado, fuçador e pai da Manu. Pesquisa música e literatura latino-americana e caribenha de maneira obsessiva e desordenada há pelo menos 8 anos. Acredita, acima de tudo, em “hacer las cosas mal, pero hacerlas”.
Ao desembarcar do SS Empire Windrush, o trinitino Aldwyn Roberts cantou as duas primeiras estrofes da canção London is the place for me aos repórteres que acompanhavam a chegada do navio no porto de Tilbury, em Essex, sudeste da Inglaterra, dia 22 de junho de 1948. Já consagrado Rei do Calipso, em sua terra natal, e apelidado Lord Kitchener, Roberts fazia parte da massa de 492 imigrantes vindos das “índias ocidentais” para as ilhas britânicas, a partir da Jamaica.
London is the place for me
London this lovely city
You can go to France or America
India, Asia or Australia
But you must come back to London city
Well believe me I am speaking broadmindedly
I am glad to know my Mother Country
I have been travelling to countries years ago
But this is the place I wanted to know, darling
London that is the place for me
Improvisadas ou meticulosamente pensadas por Aldwyn ao longo da viagem, essas estrofes significaram um marco para a chamada Windrush Generation (primeira leva de trabalhadores afro-caribenhos que imigraram para as ilhas britânicas no pós-guerra), e, também, uma espécie de tiro de largada da invasão cultural do Calipso (gênero musical típico das pequenas ilhas de Trinidad & Tobago) às rádios e pistas de baile da capital inglesa.
Para entender o Calipso e, como ele chegou às ilhas britânicas, é preciso saber de onde ele veio. Os primeiros documentos que citam este gênero musical datam de meados do século 19. Não há consenso sobre a origem da palavra. O senso comum dos especialistas é que, sonoramente, o Calipso é uma evolução do Kaiso e dos cânticos entoados na Calinda, sendo o primeiro um gênero musical típico do carnaval negro no Caribe e o segundo uma luta/dança similar a nossa Capoeira. Ambas manifestações têm sua origem em elementos folclóricos africanos trazidos pelos escravos egressos do Golfo da Guiné (Nigéria, Senegal, Camarões). Nesta abordagem, teoricamente o termo calipso seria uma derivação de kaiso.
As ocorrências do kaiso e da calinda, no entanto, remontam as ilhas ocupadas pelos espanhóis e franceses (Grenada, Dominica, Guadalupe e Martinica) locais de onde estas manifestações migraram para Trinidad (ainda uma colônia espanhola) durante a Revolução Francesa. Neste período, incontáveis revoltas de escravos se espalharam, a partir do Haiti, para todas as possessões francesas na região. Com anuência da coroa espanhola, muitos senhores e seus escravos se fixaram em Trinidad, a fim de fugir das possíveis repercussões da revolução nas estruturas coloniais.
O Kaiso e a Calenda, tem um elemento em comum: a chantwell, uma figura, em geral uma mulher mais velha, que puxava os cânticos nas rodas. Em 1814, ainda povoadas por senhores franceses e escravos negro e, após mudarem de mãos muitas vezes, Trinidad e a pequena ilha vizinha de Tobago, passaram em definitivo às mãos dos ingleses. Os novos colonizadores pouco produziram no país. Ao contrário do que se pensa, apesar da imensa população afrodescendente Trinidad tinha apenas 10.000 negros quando da abolição da escravidão pela coroa inglesa em 1833 (a Jamaica, por exemplo, possuía um contingente de 360.000), a maior parte dos negros trinitinos chegou ao país nas décadas seguintes, foram estes advindos da África ocidental que deram o tom e a forma ao Calipso moderno.
Por beber da fonte destas tradições, o Calipso nasceu cantado em um dialeto francês (patois), e, apenas em fins do século 19 é que cantantes passaram a utilizar amplamente a língua inglesa. Durante o fim do século 19 e início do 20, o Calipso permaneceu restrito aos círculos das comunidades negras nas cidades de Port of Spain e Chaguanas. Foi somente na década de 10, que o ritmo ganhou seus primeiros registros sonoros: em 1912, com a Lovey’s String Band (gravações feitas em Nova York, durante uma visita da banda à cidade), e, dois anos depois, em 1914, com Julian Whiterose, conhecido como Iron Duke, que gravou, desta vez em Trinidad, a faixa Iron Duke in the Land.
Esta fase inicial do Calipso gravado foi marcada pelas estruturas rítmicas e melódicas elaboradas pela Lovey’s String Band e pelo compositor Lionel Belasco, cujos arranjos e gravações conferiram ao gênero elementos de outros ritmos, além de estabelecer o uso de instrumentações e orquestrações ao estilo jazzístico. Foi nessa época também, que o ritmo se espalhou pelas ilhas vizinhas, chegando primeiro aos demais territórios britânicos do Caribe e, depois às Antilhas Holandesas e à Venezuela, acompanhando sucessivos fluxos migratórios das comunidades afrodescendentes. A festa, no entanto, não durou muito, o alistamento militar de jovens negros caribenhos no exército britânico durante a Primeira Guerra Mundial, as restrições econômicas impostas pelo conflito e o conturbado período pós-crise de 1929, fizeram a produção fonográfica minguar até o início da década de 1930.
Os anos 30, foram a redenção! A chamada “Era de Ouro” do Calipso, ou, ao menos, o primeiro grande boom fora do âmbito das ilhas caribenhas. As composições desta época pavimentaram o caminho para que o Calipso adquirisse a forma musical, o estilo e a lírica que viriam a caracterizar as próximas encarnações do gênero e, tornaram-se as principais referências estéticas e sonoras para as futuras gerações. No início da década, o ritmo caiu no gosto da indústria fonográfica norte-americana, que representava a vanguarda em um mercado em pleno crescimento. Nomes como Roaring Lion, Atilla the Hun, Lord Invader (alguns dos mais representativos da cena trinitina) faziam viagens anuais aos Estados Unidos para gravar nos principais estúdios de lá.
Conforme avançávamos para um segundo conflito mundial, o Calipso foi gradualmente perdendo espaço para outros gêneros igualmente de origem caribenha, ou latina, como a Rumba e o Merengue. Nos anos 40, com o espaço fonográfico reduzido, o Calipso retorna ao seu reduto para um processo de reinvenção, que coincide com a chegada dos serviços de rádio às ilhas caribenhas. É aqui que o Calipso adquire outra face. A de elemento unificador dos povos afro-caribenhos, ou ainda melhor, a de veículo sonoro de protesto contra a administração colonial. Aliás, foi justamente essa a função primária deste gênero: protestar contra a mão pesada da metrópole. O improviso fez do Calipso um discurso de contestação e comentário social (vale dizer, no entanto, que a forma popularizada nos salões londrinos tinha uma verve menos ácida e crítica).
De Lord Kitchener, em Trinidad aos Talbot Brothers nas Bermudas, passando pela Calypso Mama e Blake Alphonso Higgs, nas Bahamas, o Calipso expandiu sua área de influência, capaz de agregar as comunidades afrodescendentes destes diferentes territórios, seus descontentamentos e experiências de vida. É neste ponto da história que voltamos para o jovem negro franzino que desembarcou no porto de Essex. É nesse ponto da história também, que as trajetórias culturais, emaranhadas de maneira brutal pelos poderes coloniais, tem seu ponto de ebulição.
Embora já fosse possível encontrar discos de música afro-caribenha nas grandes lojas de Londres, antes do fim da década de 1940, foi apenas após a chegada desses imigrantes em 1948, e, sobretudo, após o sucesso de uma música em especial, que o Calipso passou a compor o cotidiano dos ouvintes europeus, ao invés de apenas uma idealização exótica das distantes e ensolaradas ilhas caribenhas. Nora, gravada por Lord Kitchener, em 30 de janeiro de 1950, importou, sem escalas, para as ondas radiofônicas britânicas o sabor e os anseios dos sons produzidos pelos jovens negros que acabavam de se mudar para a casa ao lado.
Não só este compacto vendeu excepcionalmente bem na Inglaterra, como seu sucesso se estendeu as próprias “índias ocidentais” e aos países africanos sobre domínio britânico. Em 1951, foi a vez da versão de estúdio de London is the place for me, a música que mencionei no início do texto. A letra composta por Roberts narra um trinitino (mas poderia ser qualquer imigrante, de qualquer parte do império) recém-chegado à cidade de Londres, que maravilhado, passa a cantar suas maravilhas e riquezas. O texto engendra uma sensação imediata de pertencimento, não é à toa que em uma estrofe se ouve “I am glad to know my Mother Country”, algo como “estou feliz de conhecer minha pátria-mãe”. Esta frase é especialmente importante, trinitino de nascimento, Lord Kitchner faz valer o título de cidadão do Império Britânico, claramente um recado aos colonizadores brancos da metrópole “queiram vocês ou não, estou aqui e faço parte deste universo”.
A composição fez enorme sucesso com arranjo da orquestra de Edmundo Ros, um trinitino de pai escocês e mãe venezuelana, que se tornou um dos maiores fenômenos da música de seu tempo. Ros levou a mensagem de London is the place for me às rádios e salões, projetou a imagem do imigrante bem-sucedido e atraiu milhares de jovens, que deixaram suas famílias nas ilhas — e outros territórios britânicos ao redor do mundo — em busca de trabalho e prosperidade nas industriais e agitadas cidades inglesas.
A Windrush Generation e os fluxos migratórios vindos do Caribe, no imediato pós-guerra, significaram a fundação de uma Londres verdadeiramente multicultural. Negros de diversos rincões coloniais do império britânico rumaram para a cidade, e, embora já houvesse presença significativa de comunidades afro-americanas e africanas na Inglaterra, a chegada do navio e dos quinhentos homens e mulheres representou um divisor de águas.
A chegada em massa de trabalhadoras e trabalhadores afro-caribenhos, no entanto, culminou nas décadas seguintes em um acirramento étnico causado, principalmente, pela segregação das comunidades negras nas periferias da capital e de cidades como Bristol, Birmingham e Leeds. Esses episódios são chamados Race Riots. Um dos mais conhecidos é o Nothing Hill Race Riot: ocorrido em 1958, o acontecimento legou desdobramentos negativos e positivos. Por exemplo, a prisão de 8 jovens negros (com a promulgação de uma pena exageradamente alta) e a criação da resistência cultural negra na forma de um carnaval organizado, realizado até os dias atuais neste bairro de classe média alta de Londres.
London is the Place For Me captava o otimismo da época e oferecia um pouco de alívio colorido em contraste aos tons acinzentados da capital britânica. Essa, aliás, era a tônica do Calipso. Cuja história vê paralelo na chegada dos igualmente caribenhos Ska e do Reggae aos círculos de jovens brancos empobrecidos pela crise, nos subúrbios ingleses nos anos 60 e 70, com uma diferença: ao contrário do Ska e do Reggae, o Calipso nunca foi amplamente apropriado, e seguiu essencialmente música negra por excelência.
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