Luthier — uma reflexão

26/07/2018

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Charles Gavin, paulistano, baterista autodidata, tocou com várias bandas da cena paulistana. Ingressou nos Titãs em janeiro de 1985, onde permaneceu até fevereiro de 2010, e participou de importantes eventos do show business brasileiro: Hollywood Rock edições de 1988, 1990 e 1994; Rock in Rio (1991); abertura do show de David Bowie em São Paulo em 1990, e abertura do show The Rolling Stones, em Copacabana (RJ), em 2006. Paralelamente à carreira com os Titãs, Gavin passou a atuar na área da produção musical e cultural, e desde 2006 apresenta e dirige (com Gabriela Gastal) O Som Do Vinil, programa exibido semanalmente pelo Canal Brasil.

Ilustrações por Heloisa Etelvina é artista gráfica graduada em Gravura pela Escola de Belas Artes da UFMG com mestrado em Artes Visuais pela Faculdade Santa Marcelina, em São Paulo. Desde 2005, trabalha com experimentações gráficas utilizando-se de um pequeno acervo tipográfico. Participou de exposições de arte nacionais e internacionais. Garimpando ornamentos de gráficas antigas até ferro-velhos, incorpora as falhas e o improviso para criar estampas e desenhos únicos, ricos em detalhes. Utiliza da linguagem da gravura para construir imagens.

Quer queira quer não queira: o termo luthier nos leva, primeiramente, à imagem daquela pessoa solitária, instalada em seu ateliê, dispondo de todo o tempo do mundo, cercada de ferramentas, com violinos, violas, violões, bandolins e cavaquinhos amontoados por toda parte. Bem, essa associação não deixa de ser verdade — a palavra vem da língua francesa, derivada do vocábulo lute/ luthe (alaúde) e se referia, originalmente, no século XIX, àqueles que construíam e reparavam instrumentos acústicos de cordas que possuem caixa de ressonância.

Atualmente o significado de luthier é mais do que isso — é aplicado também a quem redesenha, reformula e fabrica guitarras, contrabaixos e baterias, além dos instrumentos que formam uma orquestra sinfônica.

Certa vez, logo no início da gravação de um álbum dos Titãs, o produtor Liminha nos propôs uma pausa nos trabalhos para que pudéssemos fazer alguns reparos em nossos instrumentos de cordas, totalmente desregulados por conta de seu uso incessante na turnê (para quem não sabe, as condições que a estrada nos impõe são o principal obstáculo para a boa conservação de qualquer equipamento). Assim sendo Carlos Martau, músico e exímio restaurador de guitarras, foi convocado. Ao final de quase dois dias, Liminha examinou tudo e atestou: “como seria a nossa vida sem esses caras?” E as gravações seguiram seu curso.

Bom, o fato é que quando nos dispomos a enxergar o ofício do luthier por outros ângulos, outras leituras sobre o assunto aparecem. Vejamos por exemplo, a história do mestre da arte de fabricar e tocar o pífano, João do Pife. Em entrevista à minissérie Brasil Adentro — Música de Pernambuco que apresentei no Canal Brasil, em 2016, José Alfredo Marques dos Santos (este é seu nome verdadeiro) descreveu minuciosamente seu método, particular e intuitivo, de avaliação do material a ser escolhido, o mais importante segundo ele. João do Pife começa batendo de leve com a mão na taquara selecionada e pacientemente decide se a madeira é boa ou não — é o começo. Na sequência vem o corte, as perfurações, a limpeza e a finalização, etapas que ele executa com muita calma e experiência. O próximo passo é testar várias vezes cada exemplar feito, antes de colocá-lo à venda na tradicional feira de Caruaru (PE), onde suas famosas flautas são procuradas por gente de todos os cantos do planeta. O sustento de sua família vem daí e, portanto, João precisa comercializar uma determinada quantidade de instrumentos para viver. Mas nunca abriu mão da qualidade em sua produção e adverte: “para ser mestre na fabricação é preciso ser bom músico antes”. Curiosamente ou não, João é sempre convidado a dar aulas e palestras em instituições estrangeiras. Já lecionou e fabricou pífanos para alunos e professores da Universidade da Flórida, onde exercitou e transmitiu seus sofisticados saberes — ele também produz zabumbas, contrassurdos e caixas, instrumentos que as bandas de pífanos do Agreste Nordestino utilizam em sua formação. Apesar de ser pouco conhecido em nosso país, João do Pife é dos grandes nomes da música popular brasileira, seja como artesão, como ele mesmo se intitula (ou como luthier para outros), seja como flautista e comandante da incrível Banda Dois Irmãos, fundada por seu pai em 1928.

Já outros luthiers experientes como Sérgio Abreu, Tércio Ribeiro e o paraibano João Batista estabelecem outra relação com o ciclo de seu trabalho — o método e a arte de cada um deles está submetido ao tempo que cada um precisa, o que torna único cada instrumento construído. O tema fica mais interessante ainda quando consideramos a consultoria, a aproximação, o retorno que grandes músicos oferecem aos luthiers, como é o caso do magnífico Hamilton de Holanda, um dos maiores bandolinistas do mundo, que levou suas necessidades e ideias a Tércio Ribeiro, responsável pela construção de seu bandolim de dez cordas, imprescindível em seu trabalho.

Outro mestre que também se destaca, que chama a atenção com seus métodos de trabalho é Shigemitsu Sugiyama, japonês radicado no Brasil desde 1973 — ele constrói apenas dois instrumentos por ano. Seu círculo de clientes abriga grandes nomes da MPB como Chico Buarque e João Bosco. Mas antes de qualquer coisa, Shigemitsu informa que “só irá saber se seu violão deu certo anos mais tarde”, por conta do desenvolvimento, ao longo dos anos, das características acústicas e físicas das madeiras que estuda, seleciona e utiliza. E acrescenta que ainda vai precisar de muito mais tempo para decifrar “o enigma da madeira…”

A ótima matéria publicada na revista Época Negócios, em 2015, nos reporta a história de Sugiyama e dentro dela está sua relação com Turibio Santos, violonista, concertista e produtor maranhense, radicado no Rio de Janeiro há décadas. Em 1977, num encontro decisivo em sua casa, Turibio desafiou o artífice nipônico a produzir um instrumento melhor do que aquele que usava, da renomada marca espanhola Fleta. E de quebra, sugeriu a Sugiyama que buscasse a melhoria do volume e da qualidade das notas altas no instrumento. “É o agudo que puxa a orquestra“, explicou.

Sete anos mais tarde, Sugiyama apresentou o seu violão à Turibio, que o submeteu a um juri especializado para uma avaliação. Para surpresa de muitos, o instrumento desenvolvido pelo mestre japonês saiu-se melhor na comparação com o rival espanhol e foi reconhecido por sua excêlencia técnica. A tempo: Shigemitsu Sugiyama, que já construia instrumentos em sua terra natal, trabalhou na Giannini, a antológica fábrica nacional de instrumentos e amplificadores, em 1974.

A história desta e de outras tradicionais companhias de fabricação de instrumentos de cordas no Brasil começa na cidade de São Paulo, no início do século XX, edificada no pioneirismo e know how de grandes luthiers italianos como Tranquillo Giannini, Angelo Del Vecchio e Romeo Di Giorgio, que chegaram ao nosso país na imensa leva de imigrantes europeus que se deu na época. Quem não conhece os violões dessas marcas? Décadas mais tarde, a Giannini desempenhou papel importante no mercado brasileiro — nos anos 60, onde a demanda por guitarras e baixos elétricos, provocada pela mega explosão dos Beatles e da Jovem Guarda, cresceu em números exponenciais. E foi assim também na década de 70, com a consolidação do rock brasileiro. Neste cenário socioeconômico, os instrumentos de fabricação nacional se apresentavam como solução para quem não tinha dinheiro suficiente para bancar a compra de uma Fender, Gibson, Epiphone, Gretsch ou Ludwig. Os nacionais acabaram dando certidão de nascimento artística a muita gente — de músicos amadores aos semiprofissionais, das bandas colégio aos conjuntos de baile. Naturalmente, outras marcas apareceram: Phelpa, Snake, Finch, Sonelli, Ookpik, Pinguim, Gope, Saema, Caramuru e muitas outras. Fizeram história, além da própria Giannini, e ainda continuam presentes em nossa memória afetiva. Todavia, nem todos estavam confortáveis com aquela situação — não ter acesso aos instrumentos e acessórios importados utilizados por Jimi Hendrix e Eric Clapton.

O próprio Sérgio Dias Baptista, integrante de um dos grupos mais importantes da música brasileira de todos os tempos, Os Mutantes, afirmou à revisa britânica Mojo, em 2015:

“Cláudio construía instrumentos para nós simplesmente porque não conseguíamos lidar com aqueles de fabricação nacional. Naquela época não era possível comprar pedais ou efeitos. Então, ele estudou acústica e encontrou uma forma de distorcer minha guitarra, utilizando um pick-up específico para cada corda. Eu tinha um som em minha cabeça e ele tentava descobrir uma forma prática de materializá-lo”.

Sérgio Dias | Foto: Ricardo Ferreira

A pessoa a qual Sérgio Dias se refere é seu irmão mais velho, Cláudio César Dias Baptista, luthier autoditada com conhecimentos de acústica e eletrônica. Cláudio desenhou e construiu as famosas guitarras Régulus, contrabaixos, pedais, amplificadores e uma mesa de som para seus irmãos ensaiarem com sua banda, num estúdio improvisado no bairro da Pompeia, em São Paulo. O irmão mais velho de Arnaldo Baptista e Sérgio Dias acabaria se tornando responsável também pela sonoridade singular dos Mutantes, presente em sua antológica discografia e em suas históricas apresentações, repletas de experimentalismos estéticos, fato que os colocava como pontas de lança no painel da música pop brasileira de vanguarda. Suas gravações são consideradas até hoje muito à frente de sua época — isso não seria possível sem o trabalho e a genialidade de Cláudio César Dias Baptista que para muitos, era o sexto mutante, ao lado de Arnaldo, Sérgio, Rita Lee, Dinho e Liminha.

Ainda no final dos anos 60, a Universidade Federal da Bahia, sediada em Salvador, promoveria oficinas de experimentação sonora com o violoncelista, compositor e inventor suíço Anton Walter Smetak. Nesses encontros estavam Caetano Veloso, Gilberto Gil, Tom Zé e o músico e pesquisador mineiro Marco Antônio Guimarães, futuro fundador e líder do Uakti, coletivo que iria desenvolver seus trabalhos com seus próprios instrumentos acústicos, inventados e construídos a partir de materiais pouco convencionais. Marco Antônio se inspiraria, em parte, nos passos de seu professor que, aos seus seguidores, afirmava: “um novo mundo requer homens novos e uma música nova — para isto são necessários instrumentos musicais diferentes”. Baseado em suas pesquisas sobre métodos de fabricação e funcionamento, Smetak criou novos objetos utilizando canos de PVC, isopor, placas de metal, bambus e cabaças, que ele mesmo batizara de “instrumentos esculturas”. Sobre uma de suas criações, disse: “utililizava as cabaças como caixas acústicas, aquele fruto da cabeceira onde o nordestino come sua farinha e bebe sua água. Atava elas um cabo de vassoura e uma corda de violão, e colocava uma casca de coco dentro. Trata-se da estrutura mais simples que existe, um monocórdio. Descobri depois que é visível a semelhança dos meus objetos sonoros com os instrumentos hindus, africanos e dos índios brasileiros”.

Instrumentos do Uakti | Foto: Alexandre Nunis

Ao longo dos treze álbuns, lançados entre 1981 e 2012, o universo de timbres e sonoridades do Uakti brilhou. Os objetos/instrumentos desenvolvidos por Marco Antônio, eram pilotados por ele mesmo e também por Paulo Sérgio Santos, Artur Andrés Ribeiro e Décio de Souza Ramos, integrantes do grupo. Alguns destes objetos/instrumentos tornaram-se cultuados — dentre eles estavam a Trilobita (formada por 10 tubos de PVC afináveis, montados num suporte de madeira); a Marimba d’Angelim (fabricada com esta madeira, a Angelim, normalmente utilizada na construção civil — a marimba é normalmente feita com Jacarandá da Bahia); o Grande Pan e o Pan Inclinado (formados por tubos de PVC de diversos tamanhos, montados numa disposição semelhante à da flauta pan).

A força criativa de Marco Antônio Guimarães foi vital para que a música do Uakti fosse além e se tornasse uma zona de exploração, de pesquisa e acima de tudo, de emoção. Ver e ouvir o grupo tocando era como estar numa performance/concerto/exposição. Cabe aqui, uma ponderação até onde a experimentação dos Mutantes — elétrica — estabelece pontos de contato com a do Uakti — acústica.

Paulo Santos | Foto: Laura Rosenthal

Como disse no início deste artigo, o ofício do luthier visto por outros ângulos, nos revela outras leituras — histórias de vida, histórias da própria música brasileira que continua se reinventando a cada momento. Que o diga Robertinho Barreto, guitarrista e compositor do coletivo Baiana System, no qual as guitarras baianas fabricadas por Elifas Santana tem papel essencial em sua música.

Inegavelmente o instrumento que cada luthier desenvolve e prepara, traz em si a história da procura daquilo que ele entende como sendo o melhor para músicos e musicistas, sua técnica e seu som. O trabalho deste incrível e raríssimo profissional, que muitos consideram ser um dom, não seria, de certa forma, corporificar a música que está nos sonhos de cada um?

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