A experiência de uma residência artística da Bienal Sesc de Dança por alguém que não é da dança.
Quando topei participar da residência artística Barricada, na Bienal Sesc de Dança 2023, eu não fazia ideia exatamente do que me esperava. A proposta era acompanhar o grupo de artistas, em sua maioria composto por pessoas ligadas à dança, para ensaiar e apresentar o trabalho criado pelo coreógrafo, pesquisador e performer piauiense Marcelo Evelin. A partir dessa experiência, eu deveria escrever um texto sobre a minha participação no projeto, em primeira pessoa. O texto é esse que você lê agora.
Não sou uma pessoa ligada à prática da dança, ou com rotina regular de atividades físicas: estou mais próximo do sedentarismo que de uma vida ativa. Quando cheguei às 14h na Sala dos Toninhos, dentro da Estação Cultura, para o primeiro dia de residência, notei rapidamente que as minhas roupas leves não seriam leves o suficiente para enfrentar o calor e as dinâmicas que faríamos naquele antigo galpão ferroviário, hoje transformado em sala de ensaios e apresentações.
A proposta do trabalho era relativamente simples: montar uma barricada humana, onde as pessoas, entrelaçadas umas às outras, se movimentavam de um lado para o outro em linha reta (ou quase), sem deixar espaços entre si e sem perder o contato com as pessoas mais próximas. O toque físico é incessante, do começo ao fim. As pessoas dão as mãos e os braços e os olhos e as pernas e as costas para subir; e os quadris para segurar e a cabeça para apoiar e o corpo inteiro para esfregar e dançar coletivamente. Quando ensaiamos pela primeira vez, a sensação de compor aquele emaranhado de corpos me remeteu à Guernica, de Picasso. Porém, diferente do quadro, cuja imagem de resistência é feita de ferocidade e desespero, a nossa barricada humana era feita de ferocidade e ternura.
Para chegar nesse resultado, Marcelo Evelin propunha dinâmicas que levavam os artistas participantes (segundo a minha percepção) a olharem uns para os outros com empatia, no sentido de trazer a Barricada para um lugar onde a individualidade dos corpos se dilui e a multiplicidade do coletivo está em cada corpo. Dito de outra forma e usando expressões usuais da dança, é como se cada corpo fosse contaminado e atravessado pela presença dos demais corpos, numa dança onde o eu só é possível em relação ao outro. Ninguém é um só.
A primeira dinâmica proposta foi também a que mais me impactou. A ideia consistia na formação de duplas, onde uma pessoa deveria deixar-se conduzir pelo movimento da outra, como se fosse uma espécie de marionete. Talvez por eu ser uma pessoa tímida, num ambiente estranho e totalmente fora da minha “zona de conforto” (sic) tenha demorado um pouco para encontrar uma dupla, porém o olhar expressivo da Bia logo me convidou para aquela insólita dança.
Quando a gente tira uma pessoa para dançar forró, por exemplo, a regra do jogo é bem definida: dançamos um ritmo conhecido, executamos passos característicos do estilo e conduzimos ou somos conduzidos pelo par, também de acordo com códigos pré-estabelecidos. Essa outra dança não tinha música e o código de entendimento era construído naquele momento entre o par. Para além da novidade de ser manipulado e articulado por um corpo desconhecido, tive a sensação de, através dos movimentos e olhares, conversar com aquela pessoa por meio de uma linguagem totalmente nova para mim. Não saberia definir se linguagem das artes do corpo, se linguagem da empatia ou do brincar, mas o certo é que conversamos, demos risada e nos entendemos sem palavras ou coreografia. Quando chegou a minha vez de conduzir, me dei conta de quão limitado era meu repertório de movimentos, muitas vezes associados a um imaginário da dança clássica, porém isento de qualquer coordenação. – Bia, muito obrigado pela paciência!
Ao final do ensaio, meus pés estavam imundos e a minha roupa completamente ensopada, cheirando a pelo menos trinta pessoas. Chegando em casa, senti meu corpo desperto e cansado e eufórico como nunca. A vontade era de habitar a cama por uma semana e, ao mesmo tempo, viver intensamente e sem repouso. Uma sensação de estranhamento e re-conhecimento de si, pulsando feito onda na beira da praia, ou bafo de locomotiva, estufando e arfando o acúmulo de energia, e seguindo adiante, em ondas idas e vindas, até onde a linha do trem e a barricada humana se encontravam.
A residência resultou em duas apresentações que aconteceram na Estação Cultura, antiga estação de trem transformada em espaço multiuso para eventos culturais, amplamente utilizada pela comunidade campineira. Além de ser a minha estreia participando de uma peça de dança enquanto performer, essa experiência também inaugurou uma outra etapa de consciência e percepção corporal em minha vida. Até então, eu não havia me dado conta de como as contingências do trabalho e os corres de todos os dias nos impedem de perceber o corpo que habitamos. Mais que isso: o ritmo acelerado da vida tem nos levado mais e mais a reforçar uma dissociação nada saudável entre corpo e mente, entre o eu e o outro, acentuando o individualismo nas relações humanas… talvez porque estejamos demasiadamente desatentos e cansados para reparar em nós mesmos e nos outros.
Vi na Barricada um movimento em oposição a essa ideia: estar junto e perceber o próprio corpo e os corpos que nos cercam, é também uma estratégia para o estabelecimento e fortalecimento das relações coletivas. Estar atento ao outro. Estar junto como posicionamento político. (A)firmar-se com e no outro. A barricada humana que criamos atesta a necessidade de estarmos juntos para nos protegermos e para não deixarmos passar o que nos ameaça. É a afirmação do cuidado e afeto coletivo como ferramenta de luta.
Por Fernando Bisan, editor web do Sesc Campinas.
Participaram da Barricada: Andrea Elektra, Babi Fontana, Bia Torres, Cami Felice, Cesar Guirão, Diego José, Diez, Fernanda Toito, Fernando Bisan, Flavi Lima, Helena Veliago, Joel Carlos, Júlia Bacci, Kora Prince, Lais Schalch, Lígia Villaron, Lívia Porto, Maira Baltazar, Manuela Libman, Marcela Reichelt, Marcelo Evelin, Marcos Mattos, Marina Dubia, Martim Gueller, Maya Matta, Monique Alves, Mário Roberto, Nara Rosa, Nicole Melissa, Olívia Blanc, Paula Regi, Tiago Mariusso Vini e Yara Ligiéro.
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