O Manto foi um presente, a minha missão 

26/06/2024

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Por Glicéria Jesus da Silva 


Os mais velhos falavam do manto e temos aqui na Serra do Padeiro um canto que remete a ele: 

“Tupinambá subiu na Serra… 
Todo coberto de pena… 
Ele foi, mas ele é… 
É o rei da Jurema…” 

Quando o canto diz que o Encantado Tupinambá estava “todo coberto de pena”, ele está descrevendo o manto. Sempre achei que nossa cultura é como um pote; um pote inteiro que jogaram num lajedo, que voou em caquinhos por todos os lados e que tínhamos de fazer um trabalho de mosaico, juntando os cacos, colando-os e formando o pote novamente. Ainda que rachado, seria o mesmo pote, pois vamos trazê-lo de volta com todos os seus fragmentos 

Eu tinha esse sentimento, então decidi fazer um presente para os Encantados. Pensei em fazer um novo manto, mas não tinha informações sobre como realizar isso. Conversei com os mais velhos e com o meu pai: “Painho, como faz isso? Como se faz um manto? Ele tem trama para pendurar as penas?”. Meu pai respondeu: “Olha, você deve fazer a trama com agulha; eu sei fazer a agulha”. 

Então, painho fez a agulha para mim, ajeitou o cordão e explicou o processo da trama. Isso foi em 2006. Quando a imagem do manto Tupinambá da Dinamarca nos foi apresentada, estávamos começando a fazer a malha do primeiro manto. Todo mundo ficava admirado com a cor, a beleza, mas eu não. Fui procurar a trama, o verso do manto, para saber se eu estava no caminho certo. Na hora de colocar as penas, não tínhamos penas suficientes, então as catamos dos patos, dos gansos e quase depenamos o pavão. Tivemos sorte de ter sido no período em que as penas estavam maduras1.  

Isso foi para a festa de São Sebastião2. E assim conseguimos que o manto ficasse pronto para apresentar ao Encantado, para vesti-lo, colocando o manto sobre os ombros do pajé; eu o presenteei com esse manto e foi muito bom. Fiz, então, este pedido aos Encantados: que conseguíssemos recuperar nossa cultura, nossos fazeres, nossos trajes, tudo. E ele respondeu: “Tudo tem seu tempo”. Disse que eu não me preocupasse e que conseguiria fazer. Tudo viria, mas aos poucos, e eu iria chegar lá. Ficou muito bonito. Felizes, cantamos! 

Os Encantados me deixaram com o compromisso de realizar mais três mantos. Três! Falei: “Pronto, tá bom. Farei! Se tem que fazer, eu faço com a maior alegria”. Mas, de lá para cá, eu não conseguia fazer mais nenhum. Eu tinha vontade, mas não conseguia avançar. Ficava só pensando… tentava, mas não conseguia ir adiante. Foi quando tive a possibilidade de viajar para a França com minha sobrinha e com Nathalie Pavelic, a convite da universidade em que esta cursava seu doutorado, e lá descobri um manto Tupinambá no Museu do Quai Branly, em Paris. Conseguimos chegar na reserva do museu. A conservadora nos recebeu e pudemos acessar a sala onde o manto ficava.  

Celia Tupinambá
Célia Tupinambá Foto: Method_Av

Durante todo esse tempo de descida no museu, eu estava tranquila, mas na hora em que a porta da sala foi aberta e que fui em direção ao manto, parecia que tinha alguém me esperando e querendo falar comigo. Era uma energia muito boa, uma coisa como saudade de quem estava ali realmente a minha espera. Fui olhar o manto, ver a trama, as penas, de onde vinham as penas… Vi que eram penas de periquitos, de araras, de outras aves, porém, na maioria, eram penas de guará. E também penas muito parecidas com as do pássaro que aqui chamamos “alma-de-gato”. 

  Fiz essa análise das penas e cheguei na malha. Vi que era de algodão e lembrei das mulheres mais velhas da aldeia que faziam a linha com essa fibra, a linha de tucum; elas a faziam no fuso e usavam a cera de abelha para dar mais resistência ao algodão. Eu vi essa característica e senti a força e a presença feminina. Lembrei muito da minha madrinha. Eu senti a presença de uma mulher idosa, sentada e conseguia vê-la tecendo. E tive certeza: esse é o mesmo ponto do jereré3, e minha madrinha tem esse ponto, ele existe na minha aldeia, o povo ainda faz isso, e com esse ponto eu consigo tecer o manto. 

Lembrei, então, que os mantos eram feitos por mulheres. E mulheres muito sábias que detêm um grande conhecimento. Essa energia feminina eu tenho deste lugar, o do fazer. Há um conhecimento feminino Tupinambá que organiza a vida das mulheres, e lida com o corpo, com a terra. 

E há também uma comunidade que se estabelece ao redor do fazer do manto, juntando novamente as partes do pote quebrado. Isso é o retorno das aves nas matas e a possibilidade de capturá-las, nomeá-las e delas tirar as penas quando maduras. São os saberes dos mais velhos, das avós, das madrinhas e dos sábios que voltam a ser escutados, observados e colocados em obra. É a retomada das falas e das palavras antigas que surgem ao redor do manto e reencontram a língua do povo. É um território sendo retomado e plenamente vivenciado com a força dos Encantados. 

Com essa força, eu consegui fazer os três mantos: o que vesti no cacique; o manto em movimento, que é o manto feminino; e outro que está em exposição na Bienal de Veneza. 
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1 Todas as aves mudam regularmente de penas. Quando estas estão prontas para cair, diz-se que estão maduras e podem ser recolhidas sem machucar os pássaros, para realizar a arte plumária. Essas penas maduras são mais resistentes ao tempo e aos insetos. 

2 A Festa de São Sebastião é a principal festa tradicional religiosa da aldeia da Serra do Padeiro. Para nós, é como se fosse uma celebração de virada de ano. De modo geral, para as pessoas que não seguem essa tradição, o ano começa em 1º de janeiro, mas, para nós, é no dia 19. 

3 Rede de pescar cônica. 

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