Nessa edição, o projeto Ofício: Mancha recebe a artista carioca nas Oficinas de Criatividade do Sesc Pompeia. Com a mostra “Propostas de reencantamento” – em cartaz até janeiro de 2023 – Marcela explora a variedade de pigmentos em seu embate com a tradição da pintura, numa discussão entre o místico e a potência feminina. 

Destaque na cena artística contemporânea, Marcela Cantuária conta que seu interesse pela pintura começou cedo e nasceu do olhar apurado da mãe, que gostava de desenhar e escrever, mas abdicou de seus dotes artísticos para se dedicar ao cuidado com as filhas. “Ela sempre teve talento, eu observava isso e talvez essa vontade de realizar tenha ficado no meu inconsciente”. E ficou mesmo. Na adolescência, com aquela inquietação característica da idade, ela se envolveu em trabalhos sociais em uma ocupação no Rio de Janeiro. E por lá se deparou com uma frase que a impulsionou a ir mais longe. A citação popular diz que ninguém é tão velho que não possa aprender e ninguém é tão novo que não saiba ensinar. “A partir daí fui fazer faculdade e fui caminhando, conciliando a pintura a serviço de coisas maiores, como o aprendizado e a educação”, conta a artista, incansável na luta feminista e que busca retratar memórias femininas invisibilizadas da história. 

Atualmente, ela está em cartaz com a exposição coletiva Atos de Revolta: outros imaginários sobre independência, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em que trabalhou com a Frente de Mulheres Brigadistas. “Convidei algumas mulheres de ocupação para construir esse trabalho comigo. Foi quando a costura entrou na produção. Era algo com que elas já tinham uma certa familiaridade que pudesse agregar ao trabalho. Foi uma troca muito positiva.” 

Em São Paulo, Marcela traz ao Sesc Pompeia Propostas de Reencantamento, com quase 60 trabalhos, divididos nas séries Biombo, Oráculo Urutu, Oratórios e Estandarte. Em meio à versatilidade e a essas diversas formas de se fazer arte, a artista faz um paralelo com o anseio pela transformação da sociedade. “A premissa é construir algo novo, que vem de uma insatisfação. Se a gente quer ver um mundo diferente, tem que estar apto a vários tipos de linguagens. É parte dessa vontade de tentar forjar algo novo, mas, ao mesmo tempo, um compromisso com a memória e a verdade. Apesar de todas essas fabulações e possibilidades que a arte oferece, tenho como base a verdade.” 

Quatro criações inéditas compõem o acervo: A paixão de dizer, Fogueira doce, Senti como se um grande grito infinito atravessasse a natureza e Uma proposta para o reencantamento. Esta última é, literalmente, o grande destaque. A obra, feita sob a técnica óleo e acrílica sobre tela, tem 2×6 metros e ficará na entrada da exposição. “Ela foi pensada a partir de mulheres que já pintei antes, mas que surgem reunidas em volta de uma fogueira, quase que fazendo um conjuro, todas juntas e cada uma de uma época diferente, de territórios bem distantes uma da outra. A pintura aproxima essas narrativas, faz essa brincadeira com o tempo e espaço social delas.” 

Confira abaixo o bate-papo com a artista. 

Propostas de Reencantamento é, de fato, um convite a um novo olhar? 

[Marcela Cantuária]: Esse título foi pensado junto com o Aldonis Nino, o curador. Quando penso na arte como um território de possibilidades, está a criação de algo que ainda não existe. Propostas de Reencantamento é como se cada pintura fosse uma proposição dentro dessa gama de obras e como imaginar cada uma delas como um arquétipo, uma proposição para algo.  

Vem também desse momento político de cansaço e desilusão e que precisamos buscar um reencantamento para descobrir um desejo maior pela vida. Trata-se também de um reencantamento político. 

O ‘excesso das tintas’, as cores vibrantes que utiliza é uma tentativa de reforçar a importância de temas tão prementes, sensíveis e relevantes?  

[Marcela Cantuária]: Sim e entendo também que quando vamos falar de resgate, de uma memória invisibilizada, usar uma cor quente simbolicamente representa vivacidade. Se estou falando sobre a vida dessas mulheres faço questão de celebrá-las e o faço com as cores, os contrastes. Mas, na verdade, não é um excesso, já que quando você usa uma cor forte, não precisa usar muito, poucas pinceladas são suficientes. Ela tem muita presença.  

Quais são suas principais referências? 

Marcela Cantuária: São muitas, mas posso destacar uma triangulação: o tarot, com todo o seu simbolismo, a histórias das mulheres e a própria história da pintura. Imagine o que é fazer pintura hoje com todos os adventos, como fotografia, documentários…  

Em que medida o místico e o feminismo podem caminhar lado a lado?  

Marcela Cantuária: Entendo que essas séries falam muito de uma ordem mágica, no momento em que penso nos oráculos e nos oratórios vejo como esse espaço de depósito da fé, independente da religião que você tenha, de qual santo vai abrigar, eles são representações femininas, de mulheres guerrilheiras da América Latina. Então existe essa vontade minha de ajustamento das imagens, de trazer essas mulheres que foram invisibilizadas na história, de fazer uma justiça a elas. A ideia é torná-las parte central na discussão.  

Qual seria a finalidade da arte?  

Marcela Cantuária: Minha pintura tem intuito de trazer uma inspiração emancipatória para os povos do mundo e isso vem quando a gente se organiza politicamente, a pintura vem de uma inspiração. Se eu vou pintar mulheres livres, sem injustiça social, eu estou criando esse cenário e acredito que em algum lugar ele exista ou deva existir. É uma pré-figuração de um mundo possível, sem que a gente tenha que defender o óbvio. 

Sobre o projeto Ofício:  

Para além de sua finalidade criativa, o ofício da arte é também processo, labuta e desenvolvimento. Compreende a dedicação à artesania e potencial construção de conhecimento, tendo a experimentação como elemento primordial. Tais vocações são constituintes do espaço material e conceitual das Oficinas de Criatividade do Sesc Pompeia, cujo espaço corresponde a um efervescente lugar de encontro, onde mestres e alunos se misturam e forjam trajetórias singulares.  

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Serviço 

Projeto Ofício: Mancha: Marcela Cantuária – Propostas de reencantamento 
Local: Sesc Pompeia 
Abertura: Sábado, 29 de outubro de 2022, às 10h 

Período expositivo: 29 de outubro de 2022 a 29 de janeiro de 2023 
Horário de funcionamento: terça a sexta, das 10h às 21h; sábados, domingos e feriados, das 10h às 18h 

Classificação indicativa: Livre 

Entrada gratuita | Sem estacionamento