Na região do Vale do Paraíba, uma cidade inventou suas próprias tradições de Carnaval, com fantasias, marchinhas e bonecos gigantes. Por João Rafael Cursino
João Rafael Coelho Cursino dos Santos é historiador e produtor cultural. Especialista em estudos da cultura popular com mestrado e doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo. Tem atuado como produtor cultural em diversos projetos ligados à cidade de São Luiz do Paraitinga/SP além de ministrar palestras relacionadas ao tema em instituições públicas e privadas.
Ilustrações por Ale Amaral — designer e produtor gráfico do Selo Sesc, ainda com esperança de um dia ver árvores dominando prédios.
“No Brasil, sabemos que o carnaval é uma festa especial e também uma trapalhada, uma confusão, uma bagunça. Um momento em que as regras, rotinas e procedimentos são modificados, reinando a livre expressão dos sentimentos e das emoções, quando todos se podem manifestar individualmente”1
Em um mundo cada vez mais disposto a pregar teses finalistas quanto à sobrevivência da cultura popular, tendendo a valorizar padrões culturais de uniformização, globalizantes, massificantes, nos deparamos com um Carnaval de uma pequena cidade do Vale do Paraíba no estado de São Paulo, chamada São Luiz do Paraitinga. Ali está o contrassenso dessa máxima: possui uma trilha sonora própria, autoral, com personagens locais e atrai multidões, sobretudo jovens, justamente em busca dessa musicalidade própria e fortemente ligada às raízes do lugar.
Reportagens e artigos jornalísticos colocam o Carnaval dessa cidade de pouco mais de 10 mil habitantes entre os principais do país. Nos dias de festa, a cidade chega a receber um número de turistas várias vezes maior que o número de sua população. Em 2024, por exemplo, se supõe que o público foi de 30 mil pessoas por dia de folia.2
De onde vem essa força e qual o segredo dessa musicalidade? Quem são as pessoas que foram responsáveis por toda esta história? Podemos indicar como um bom ponto de partida para entender essa construção a singular realização do Festival Nhô Frade de Marchinhas, um concurso de canções inéditas, que chegou em 2025 à sua 40ª edição, e se constitui de um acervo de aproximadamente duas mil canções.
O Carnaval de São Luiz do Paraitinga foi por muito tempo organizado como bailes em locais fechados, restritos à participação de pequenos grupos de pessoas, com trilha sonora com predominância de samba e de canções que marcavam a manifestação luizense nos moldes mais próximos dos realizados em outras cidades brasileiras.
Somente a partir de 1981, após mais de 40 anos de interrupção motivada por uma proibição pelo clero local, a folia de Momo saiu às ruas da cidade com uma proposta de valorização da cultura e da musicalidade da região. Rapidamente, transformou-se na principal manifestação cultural da cidade em termos de divulgação, presença de público e reconhecimento externo. Houve divulgação nos principais canais midiáticos do país e até do exterior, como a reportagem de capa do caderno Travel, do jornal estadunidense The New York Times. Com o título Carnaval on a Smaller Stage3 [“Carnaval em um palco menor”], o texto valorizava justamente o caráter tradicional e particular da folia. Apesar de ter sido publicada em 2008, segue sendo comentada na cidade. Nela, lê-se (tradução nossa):
“Esta pequena cidade no interior do estado de São Paulo fica a cerca de 115 milhas (185 km) da capital e a apenas 30 milhas (48 km) da estrada da famosa cidade litorânea de Ubatuba. Aqui, o Carnaval entrou em um hiato de 60 anos a partir da década de 1920, quando um padre italiano o aboliu por motivos morais. Mas as coisas recomeçaram em 1981, e agora a cidade é conhecida por ter um dos melhores carnavais de rua à moda antiga.
Um decreto oficial na verdade proíbe ritmos mais modernos como samba e axé; o gênero musical oficial dos blocos aqui é a tradicional marchinha, que remonta à década de 1920 e foi um marco do Carnaval até meados do século XX. Mais de 1.500 marchinhas locais foram compostas localmente desde que o Carnaval recomeçou, e você ouvirá muitas delas. As fantasias usadas pelos blocos são semelhantes às dos carnavais de todo o país, com temas específicos de cada bloco, que este ano incluem desde bebês até motoristas de ônibus.”4
A reportagem do The New York Times faz referência ao Monsenhor Ignácio Gióia, que proibiu, além do Carnaval local, as manifestações ditas “profanas” das festas do Divino. À primeira vista é difícil traçar uma comparação entre a Festa do Divino, um evento essencialmente religioso, e as festividades carnavalescas. Contudo, ambas as festas são representativas de um ambiente que foge ao cotidiano, marcadas pela rua, pelo improviso, pela oralidade e pela possibilidade de inversões sociais, sendo, portanto, limítrofe a separação entre o sagrado e o profano.
Como citado pela reportagem do The New York Times, a cidade passou quase todo o século XX sem Carnaval em decorrência de proibições religiosas, originando assim um mito de que Carnaval era coisa do demônio e causava “rabo e chifre”. Com este imaginário estabelecido em meados do século XX cessam, inclusive, os bailes de salão.
Não foi por acaso, então, que o tema da retomada da festa na cidade foi o Carnaval do “Rabo e Chifre”. Em 1981, uma reportagem do Jornal Nacional da Rede Globo de Televisão tratava da localidade com ironia por não realizar a festa mais tradicional do país, por medo de “pragas religiosas”. O músico e compositor José Roberto, vulgo “Quadô”, conta em entrevista:
“Minha primeira composição, em 1981, foi ‘Rabo e Chifre’. Passou uma reportagem grande no Jornal Nacional que praticamente chamou a gente de bobo por não realizar o carnaval com medo de pragas. Esta primeira canção foi praticamente um samba. Não era bem a marcha ainda, mas estávamos justamente construindo nosso novo estilo. Aliás, depois começamos a fazer marcha e nunca mais fizemos samba para o carnaval. Considero muito importante para o início do carnaval luizense o conjunto ‘Sambolero’, uma típica banda de baile dos anos 80. Tocávamos em outras cidades: Lorena, Ubatuba, São José dos Campos, entre outras e estava mais do que na hora de tocar em nossa cidade. Aproveitando a ocasião e ajudados por vários músicos locais – como a turma da família do Grupo Paranga – convidamos o presidente do Clube na época, o Zezé do Mikilin, para que fizesse o primeiro carnaval da cidade… que ainda foi dentro do Clube. Ele ficou com medo de dar prejuízo e fizemos assim mesmo! Acabou sendo um sucesso e, já em 1982, quando definitivamente apareceram as primeiras marchinhas, o carnaval começou a crescer e ganhou as ruas, surgiram os primeiros blocos – Zona do Agrião, Ovelhas Negras, Petróleo, Melindrosas, Rua Nova – e depois disso, só cresceu…“5
São Luiz do Paraitinga criou um Carnaval diferenciado do realizado em outras localidades de nosso país destacadamente por ter uma fórmula única: o repertório musical é obrigatória e exclusivamente composto por marchinhas carnavalescas. Entretanto, não são as mesmas do começo do século XX, como cita a reportagem do jornal estadunidense. A tradição foi reinventada e fortemente influenciada pela musicalidade dos grupos folclóricos, das bandas e da fanfarra local desde sua retomada na década de 1980.
O estilo musical da marchinha teve seu auge em diversas comemorações carnavalescas nas primeiras décadas do século passado a partir de composições como as de Chiquinha Gonzaga ainda em fins do século XIX. Muitos dos hinos dos maiores clubes de futebol brasileiros foram compostos como marchinhas. Contudo, o estilo musical entrou em decadência em meados do século XX. Por isso chama a atenção a escolha da cidade de São Luiz do Paraitinga pelo caminho da sua retomada nas décadas finais daquele século.
Com mais de 40 anos de composições, novas tendências e ritmos da música brasileira passaram a fazer parte da marchinha luizense em um processo de miscigenação cultural muito interessante, que fazem deste um gênero assentado no popular, mas sem receio de se assumir como pop. Receber em seus festivais nomes como Chico César, Zeca Baleiro, Wanderléa, André Magalhães, Hélio Ziskind, Luiz Tatit, Arnaldo Antunes, Marcelo Jeneci, Suzana Salles, entre outros tantos conferiu legitimidade a este movimento cultural.
Os blocos carnavalescos luizenses são organizados pela própria comunidade e constituem o momento de maior público durante a festividade de Momo. Não reverenciam personagens tradicionais do Carnaval europeu como o Pierrô e a Colombina, mas ícones da cultura local como o bloco Juca Teles, o bloco do motorista Barbosa e personagens das lendas locais no bloco do Encuca a Cuca. Apesar da cidade possuir mais de 40 blocos carnavalescos, esses três exemplos são pioneiros e emblemáticos na proposta de valorizar a cultura popular local e serem muito aceitos pelos turistas que frequentam a festa luizense.
O bloco Juca Teles surgiu em 1985 com o intuito de homenagear o artista luizense – e também oficial de justiça – Benedito Souza Pinto, muito atuante nas primeiras décadas do século XX e que sempre utilizava o pseudônimo Juca Teles do Sertão das Cotias para se defender contra um preconceito da época frente aos artistas. Ele era um dos principais responsáveis por manter muitas tradições culturais da cidade como a “malhação do Judas” no Sábado de Aleluia, danças folclóricas e confecção dos bonecos gigantes – que viraram outra marca do Carnaval de São Luiz do Paraitinga.
Benedito Souza Pinto, falecido em 1962, tevesua memória oficialmente retomada pelo artista plástico Benito Campos com a criação do bloco cuja principal marca é realizar uma grande festa sempre ao meio-dia dos sábados de Carnaval. A utilização pelos participantes de fantasias coloridas, cartolas e tiaras, faz dele o bloco mais colorido, atraindo muitas famílias em suas passagens pelas ruas históricas de Paraitinga.
É bastante interessante o desfile do Juca Teles ser interrompido diversas vezes para que Benito Campos com seu megafone – representando a atuação de Benedito Souza Pinto – faça um discurso onde milhares de pessoas atentas param de pular, repetem os trechos de enaltecimento da importância da diversão e de valorização da vida, e voltam à canção e à folia na sequência.
Três anos antes do surgimento do Juca Teles, em 1982, o professor de artes da cidade Luis Homero dos Santos, já havia inaugurado este movimento de valorização do imaginário local atrelado a composição das marchinhas. Criando a composição Encuca a Cuca, deu início à tradição de retomar lendas locais através da criação de novos bonecos e letras de marchinhas. O bloco do Encuca a Cuca conta hoje com mais de 20 bonecos gigantes que resgatam histórias como a do Homem do Saco e do Cabrá – que raptam crianças desobedientes – do Gato Preto – que faz travessuras noturnas – sempre com o intuito de reforçar o imaginário de lendas locais.
As técnicas de construção dos bonecos dos blocos são as mesmas utilizadas nos bonecões João Paulino e Maria Angu presentes nas festas do Divino, utilizando o balaio e o papel machê como elementos principais. As fantasias e alegorias dos foliões são também muito inventivas e a cultura luizense tem praticamente criado uma “nova moda”. São confeccionadas fantasias – sobretudo pela população local ou visitantes que já conhecem as características do Carnaval da cidade – muito coloridas e baseadas no tecido florido da “chita”: um tecido muito barato, utilizado tradicionalmente para remendos ou confecção de peças simples e que tem estado mais presente nos grandes centros, como na manufatura de bolsas, cortinas, toalhas, entre outros.
Por fim, o bloco que atrai mais público na atualidade no Carnaval Luizense é o Bloco do Barbosa. No ano de 1999, o Sesc Santo Amaro, na cidade de São Paulo, realizou um evento específico com os músicos do Carnaval de São Luiz do Paraitinga. Benedito dos Santos, conhecido como Barbosa, era o motorista que ficou responsável em levar os artistas para a capital paulista. Durante a viagem ao realizar uma manobra brusca o ônibus balançou e aquele mote foi o suficiente para surgir uma nova marchinha que homenageava o mesmo. Desde então, o Barbosa se veste de motorista de ônibus e sai em cima do trio elétrico que leva seu nome arrastando multidões pelas ruas de Paraitinga.
Um fenômeno que começou a partir de 2010, quando a cidade de São Luiz do Paraitinga sofreu uma grande inundação nos primeiros dias do ano e que causou o cancelamento oficial do Carnaval naquele ano, foi a exportação dos blocos de Carnaval de São Luiz para outras cidades da região. De lá para cá, blocos como o Juca Teles e o Barbosa percorrem diversos municípios como Pindamonhangaba, São José dos Campos, Tremembé, Caçapava, Lorena, Paraty (RJ), Aiuruoca (MG), expandindo as fronteiras desta manifestação. É bem comum no atual Carnaval de rua da cidade de São Paulo nos depararmos com blocos que cantam as marchinhas luizenses como o bloco “Nois trupica mas não cai”, demonstrando a universalidade deste estilo.
Se os blocos constituem uma parte fundamental da estrutura do Carnaval luizense, podemos completar este arcabouço com as bandas musicais da cidade e seus compositores.
Assim que a cidade retomou o Carnaval de rua e ele começou a crescer com a opção das marchinhas locais, criou-se a exigência natural de produção de novas composições e arranjos para a continuidade da festa. No Carnaval de 2025, a programação oficial contou com 16 bandas locais, todas com repertório exclusivo das marchinhas compostas na cidade.
São Luiz do Paraitinga sempre se destacou no campo musical e tem em Elpídio dos Santos (1909-1970), seu primeiro grande compositor. Mesmo vivendo em um momento onde não acontecia o Carnaval como conhecemos hoje, Elpídio tornou a música local conhecida por uma obra muito vasta gravada por grandes nomes da época, tais como Renato Teixeira, Almir Sater, Cascatinha e Inhana, Irmãs Galvão, Sérgio Reis e principalmente por ser o compositor de quase a totalidade das músicas dos filmes de Amácio Mazzaropi. Trilhas sonoras de novelas como Rei do Gado e Cabocla (TV Globo), Pantanal (TV Manchete) e Meu Pé de Laranja Lima (TV Band) foram regravadas a partir de composições dele.
Como proposta de dar continuidade ao seu acervo de mais de mil composições, incluindo marchinhas de carnaval, seus filhos criaram ao final da década de 1970 o Grupo Paranga que passou também a se destacar no cenário musical paulista, sobretudo por suas apresentações no Teatro Lira Paulistana e participação no movimento musical denominado “Vanguarda Paulista”, que revelou nomes como Itamar Assunção, Arrigo Barnabé e o Grupo Rumo.
Lançado o disco “Chora viola canta Coração” em 1983, o Grupo Paranga se tornou conhecido nacionalmente estando presente em programas televisivos como Som Brasil e Viola Minha Viola. Já neste disco consta uma marchinha luizense do compositor Marco Rio Branco: “Das festas, fogos, para-raios”.
A partir daí, o Grupo Paranga passa a tocar todas as noites do Carnaval de São Luiz do Paraitinga, e junto daquela produção de novas composições propiciada pelo festival de marchinhas foi se constituindo um caminho e um acervo dessa trilha sonora própria.
Galvão Frade, um dos fundadores do Grupo Paranga, se tornou no decorrer dos anos o compositor mais conhecido desta festividade. A maioria dos blocos tem composições suas, além de ter sido o principal idealizador do Festival de Marchinhas.
Falando em festival, realizado semanas antes da festividade todos os anos desde 1982, ele envolve uma parcela importante da comunidade e visitantes durante os ensaios e apresentação das canções.
Mostrando a constante capacidade de adaptação às novas situações – típica daquelas manifestações que são realizadas na rua – nas últimas edições o festival de marchinhas ganhou proporções ainda maiores com as transmissões online de suas apresentações. Durante os anos de pandemia da Covid-19, os eventos foram exclusivamente virtuais.
Assim como nos dias do Carnaval, onde as bandas se apresentam no palco principal do evento mesclando a programação com a passagem dos blocos, nos dias do Festival de Marchinhas, além das músicas inéditas do festival, as bandas de música – como o próprio Grupo Paranga, e também Banda Estrambelhados, Quar de Mata, entre outras – comandam a propagação deste repertório, hoje disponível nas principais plataformas de streaming.
O Carnaval – este momento de excepcionalidade do cotidiano com um tempo diferenciado e, por sinal, cíclico – em São Luiz do Paraitinga cresceu muito rapidamente sobre uma fórmula que prima pela manutenção de elementos típicos do universo popular. A opção da cidade pelas marchinhas como gênero musical primordial da festa se junta ao personagens e temas locais e influências musicais regionais. Criam-se, assim, simbologias próprias que reúnem a comunidade em seu entorno. Também chama a atenção que um grande público jovem seja atraído para um evento no qual não se tocam as principais canções da indústria musical.
O crescimento desse evento impressiona pela rapidez com que foi abraçado pelos inúmeros turistas originários das mais diversas cidades do país que ali aportam. O Carnaval das marchinhas de São Luiz do Paraitinga contribui imensamente para a afirmação de muitos signos comuns e fundamentais à manutenção do perfil cultural de sua comunidade através de uma identidade cultural presente nas composições que extrapola a temática carnavalesca.
A economia da cidade tem no Carnaval um dos principais momentos de arrecadação durante o ano, bem como de divulgação do nome da municipalidade nos mais diversos meios de comunicação, o que contribui para o desenvolvimento de sua verve turística e cultural. A população confirma a cultura local, ainda que muitas vezes a partir do sucesso midiático da festa – um dos recursos de reconhecimento no mundo moderno.
A tão buscada resposta sobre o segredo do sucesso do Carnaval luizense está justamente na valorização da sua história, do seu cotidiano, da sua musicalidade propriamente dita. A realidade da festividade da cidade não deve ser interpretada como uma singularidade local. Podemos enxergar que a maior potencialidade de todas comunidades está justamente na valorização daquela que é a sua História local, suas vivências, suas escolhas. E que um estilo musical novo pode sempre surgir quando se permite um caminho autônomo de escolhas e decisões durante o processo.
Viva os 40 anos do Festival de Marchinhas Luizenses!!!
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