Por Débora Silva Carvalho | Fernanda Silvestre | Flávia Eugênia Gimenez de Fávari
Não quero o que a cabeça pensa, eu quero o que a alma deseja
Arco-íris, anjo rebelde, eu quero o corpo
Tenho pressa de viver (…)
Meu bem, talvez você possa compreender a minha solidão
O meu som e a minha fúria e essa pressa de viver
E esse jeito de deixar sempre de lado a certeza
E arriscar tudo de novo com paixão
Andar caminho errado pela simples alegria de ser
(Coração selvagem, Belchior)
Imagine a cena: o silêncio de um bairro tranquilo quebrado pelos berros estridentes de uma senhora perturbada por crianças que tocam a campainha e saem correndo, às gargalhadas, num misto de euforia e medo. A casa é sempre a mesma, não foi escolhida ao acaso, a residente peculiar é o motivo para tal travessura: uma idosa altiva, ranzinza, tida como louca pela cidade. Nem precisamos imaginar, todo mundo já viveu uma história dessas, ou pelo menos, ouviu falar.
É de uma dessas memórias da infância do diretor Allan Deberton – vivida em Russas, interior do Ceará – que surge a figura excêntrica descrita acima. Na vida adulta, ele descobre um outro lado da tal “velha doida” a partir de entrevistas e depoimentos de antigos moradores e conhecidos e a trajetória de vida de Pacarrete passa a ser inspiração para o filme homônimo.
A trama se constrói em torno dessa personagem, que desde o primeiro momento causa impacto em quem a assiste. A sua complexidade vai sendo apresentada ao público aos poucos, não sem certa aspereza. É um tanto quanto árduo acompanhar o desenrolar da protagonista na história, curiosamente a única personagem com trejeitos teatralizados e performáticos. Paradoxalmente, não é daqueles filmes em que se cogita desistir na metade.
Entre pétalas e espinhos: quem é Pacarrete?
Maria Araújo Lima, mais conhecida como Pacarrete, corruptela de pâquerette, pequena margarida em francês, é uma bailarina que retorna à sua cidadezinha natal para cuidar da irmã, também idosa, depois de ter morado anos na capital.
Sempre elegante, chama atenção da vizinhança pelos seus vestidos e chapéus démodé, sua postura pomposa e pelas expressões em francês, que emenda entre uma frase e outra. Em sua rotina na pacata Russas, divide seu tempo entre lavar freneticamente a calçada e dançar balé na frente da casa, comprar carne no armazém da esquina e acompanhar a cotação do euro e entre regar as plantas e tocar piano.
Alvo facilmente identificável em um contexto de iguais, acaba desenvolvendo uma convivência pouco amigável com as pessoas, exceto com seu amigo Miguel, interpretado pelo ator semi-homônimo João Miguel, um dos poucos que a compreende. Age quase sempre de forma rabugenta, arrogante, pedante e impositiva. Não bastasse o gênio espinhoso, vive apegada às próprias convicções do que seria ser chique e da “alta” cultura – sem dúvidas, para ela, francesa – noções as quais seus conterrâneos são completamente indiferentes.
A beleza do filme se desdobra, no entanto, nas passagens que vão dando à artista maciez e densidade singulares: nas cenas em que ela se desmancha de amor pela arte que dá sentido eufórico à sua vida, nos momentos de dedicação afetuosos que tem com a irmã ou, ainda, nas vezes em que interage efusivamente com o cachorro He-Man.
E assim, com brilhantismo, vemos desabrochar paulatinamente uma Pacarrete intensamente contraditória: grosseiramente delicada, amargamente doce, extremamente sensível e protetora com quem ama, espalhafatosamente requintada, afrancesadamente do sertão nordestino.
Quando a arte retrata a vida
Há algo de genuíno na personagem que faz com que não a abandonemos no meio da história, ou até torçamos por ela em alguns momentos, talvez porque reconheçamos esse “algo” dela em nós. Curioso pensar que, ao falarmos das pessoas excêntricas de uma cidade, estas sempre são apontadas como “o outro”. Mas, será que não há momentos de nossas vidas em que nós somos quem destoa da paisagem do pensamento comum, dentro daquilo que se supõe ser seguro, esperado, sano pensar?
Diante de tantas incertezas da vida, a protagonista tem uma confiança profunda de que a apresentação de um balé dançado por ela seria o melhor presente que a cidade poderia receber. Se, por um lado, a autoconfiança é uma virtude, por outro, quando exacerbada, pode levar à soberba. Incapaz de compreender os interesses dos munícipes de Russas, Pacarrete tem a certeza de saber o que é melhor para eles e, uma vez que estudou a “refinada” arte europeia na capital, acha que pode definir o que os demais devem consumir.
No filme, a contraposição entre balé e forró poderia até ser lida como caricatural, mas se transpusermos esta ideia de imposição de algo, que tantos outros exemplos poderíamos encontrar nas políticas públicas para cultura ou até nas relações interpessoais? Quantas vezes somos nós os “turrões” e julgamos o outro por não enxergar aquilo que nos é tão óbvio?
Vale lembrar que Pacarrete não tem nem o poder nem o prestígio na cidade para impor o seu balé. Então, todo seu esforço em convencer os demais se tornam palavras vãs, sem força, motivo de descrença e chacota. E aqui, de novo, nos identificamos com a personagem: ela é incompreendida e desprezada por defender e representar o que não é valorizado por outrem. Daí também a admiração que nos causa a sua força de espírito em seguir buscando seu sonho, mesmo que remando contra a maré, indo contra todas as expectativas que a sociedade tinha para com ela e o lugar que ela deveria – ou não – ocupar.
Nem tudo são flores
Pacarrete merece ser compreendida em seus vícios e virtudes. Ela deve ser entendida como indivíduo, que é singular, como todos somos. Devemos olhar com admiração para a trajetória de vida desta artista, que rejeita o que é esperado de uma mulher e, principalmente, de uma mulher velha: ela não se casa, não tem filhos, não é dócil e não desiste de seus sonhos. É a imagem inversa do estereótipo da idosa projetado pela sociedade: doce, servil e recatada, tendo os cuidados com o lar, os filhos e os netos como principais objetivos de vida.
Nossa bailarina recusa esse papel, provocando-nos a enxergar a velhice tal como é, em sua pluralidade. Não é uma subversão intencional, ela apenas continua fiel à sua história. Ela envelheceu, mas segue sendo quem é, com seus projetos e planos.
É exatamente por isso que quando Pacarrete diz que grita tanto porque não é ouvida sentimos um momento de comoção profunda. Ela nos leva a refletir em como é ser silenciado e o quanto silenciamos as pessoas. Nos faz pensar nesta situação tão comum aos idosos que são infantilizados, calados em suas vontades e desejos e em sua independência. Ela nos ensina a ouvir essas vozes antes que se tornem gritos, a fim de que não permitamos que essas vidas sequem e murchem pela nossa falta de cuidado.
Nesse sentido também, fica o aprendizado da necessidade de reconhecer e deferir os que vieram antes e suas contribuições. Vivemos em uma sociedade que supervaloriza o novo em detrimento do que é velho e nos esquecemos de que nada seria possível sem esse conhecimento prévio. É assim que Pacarrete é tratada: como alguém sem préstimo, descartável, depois de tanta generosidade em compartilhar seus saberes com o mundo. É mais uma entre tantos artistas que se vêm descartados ao final de suas carreiras.
Por isso, há que destacar a atuação visceral de Marcélia Cartaxo no filme, que lhe rendeu os prêmios de melhor atriz no Festival de Cinema de Gramado, Los Angeles Brazilian Film Festival, Festival de Cinema de Vitória e Festival Sesc de Melhores Filmes. Sua performance magistral dilapida a personalidade da Pacarrete em muitas nuances e coloca a figura histórica de Maria Araújo Lima na rota da memória coletiva brasileira. O filme é um convite à exaltação da vida dessa mulher nascida no início do século passado, alguém que, febrilmente apaixonada pela sua arte, ousou vivê-la.
Clique aqui para ter acesso as edições anteriores da Revista Mais 60.
Utilizamos cookies essenciais para personalizar e aprimorar sua experiência neste site. Ao continuar navegando você concorda com estas condições, detalhadas na nossa Política de Cookies de acordo com a nossa Política de Privacidade.