Novo livro do escritor, biólogo e jornalista moçambicano Mia Couto reúne contos sobre a capacidade humana de ser resiliente frente às injustiças sociais
POR MARIA JÚLIA LLEDÓ
FOTOS ADRIANA VICHI
Leia a edição de NOVEMBRO/23 da Revista E na íntegra
Saímos do corpo quando nos contam histórias”, pensou Analízia, que antes de ser criança já era empregada, e antes de ser adolescente já era esposa, na trama do conto O colchão. Fisgado por essa frase, o leitor veste a pele da protagonista e torce, com ela, para que escape do destino opressor ao qual foi lançada. Afetado pela ficção, quem lê desenvolve outro olhar para o outro e seu lugar no mundo. E é exatamente isso que busca o autor moçambicano Mia Couto, que lançou, neste semestre, a obra As pequenas doenças da eternidade (Companhia das Letras, 2023). “Eu acho que a sociedade em que a gente vive, em todo lado, infelizmente, ela se globalizou e tem essa tentação de olhar para o outro como alguma coisa que pode ser humano. Isso eu acho que a gente tem que enfrentar. A literatura faz isso porque retrata esse outro como alguém que está dentro de nós, que existe dentro de nós. Essa diversidade não nos é externa”, disse à Revista E.
No recém-lançado livro, o escritor reúne O colchão a contos anteriormente publicados na revista portuguesa Visão – alguns deles escritos durante a pandemia de Covid-19 – e outros inéditos, numa coletânea que fala, sobretudo, da resiliência humana frente a guerras, racismo, finitude e solidão. O autor de poesias e romances, como Terra sonâmbula (1992), Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra (2002) e O mapeador de ausências (2021), todos publicados no Brasil pela Companhia das Letras, ainda transita entre a literatura e a biologia (área na qual também atua). Diferentes repertórios que no papel se encontram para descrever outras cosmogonias. Formas de explicar o universo pela perspectiva e sabedoria das culturas ancestrais de seu país, ao sul do continente africano. Nesta Entrevista, Mia Couto fala sobre o novo livro, a influência da família e da biologia em sua escrita, e reflete sobre um processo de desumanização a ser subvertido pela alteridade e empatia.
A edição brasileira de As pequenas doenças da eternidade diferencia-se da edição portuguesa e moçambicana ao trazer contos inéditos e um novo título com o nome de outro conto. Como foi essa curadoria dedicada aos leitores brasileiros?
Há uma certa defasagem entre aquilo que está sendo publicado em Moçambique, em Portugal e, depois, o que é publicado no Brasil. Algumas dessas crônicas, que depois são convertidas em contos – eu sempre parti do princípio que a crônica tinha sido feita para um formato de revista – precisavam ser mais trabalhadas para se tornarem contos, mas o que tinha acontecido é que nessa primeira edição que saiu em Moçambique e em Portugal se recuperaram aquilo que eram contos num certo período. O Brasil, quando pensa em publicar estes contos, já tinha publicado muito mais crônicas, porque é uma rubrica bissemanal [na revista Visão]. Então, a curadoria, que é da editora, pensou que talvez algumas dessas histórias estivessem datadas e muito marcadas por um certo contexto. E por outro lado, já tínhamos o volume suficiente para escolher outras novas que foram, também, refeitas. Agora já está a sair o segundo volume em Moçambique e em Portugal.
Na epígrafe do seu novo livro, você traz a cena de uma pedra que finge estar morta. Essa pedra animada simboliza obstáculos que estão por vir ao longo dos contos?
Eu acho que a presença simbólica dessa pedra tem mais a ver com o fato de que a fronteira que a gente desenhou para aquilo que é vivo e não vivo, orgânico e não orgânico, é uma fronteira que não está presente em todas as culturas. Eu vivo num país onde essas outras culturas têm uma outra ideia de fronteira. Então, uma pedra pode ser uma entidade viva, como um rio, uma montanha e uma árvore. Se eu disser que esta noite eu fui uma pedra, as pessoas acreditam e perguntam se eu acordei cansado, por exemplo. Então, não é que essa seja a verdade. Quer dizer, as culturas não têm verdades, não são donas de verdade, mas elas têm a capacidade de pôr em diálogo e de fazer com que escutemos o outro não como uma coisa engraçada, folclórica e exótica. Acho que essa viagem é importante fazer.
Eu acho que o mais importante – e o grande segredo – é estarmos disponíveis a sermos outros. Esses outros que, no fundo, quando vamos descobrir, já estavam dentro de nós
As crônicas escritas no período da pandemia de Covid-19 e que depois se tornaram contos, como O caçador de elefantes invisíveis, no qual um agente de saúde aconselha um caçador a se isolar por conta da pandemia, são resultado de experiências próprias na época?
Havia ali um conflito porque, para mim, tinha que ser sentido como escritor, mas eu também fazia parte da comissão científica que apoiava o governo [no período da pandemia em Moçambique]. A ideia era: “como é que vamos falar com as pessoas para que percebam o que é esta doença – e para que percebam que tipo de procedimentos devem adotar – numa sociedade em que é difícil explicar o que é um vírus?” Dizer para uma sociedade tão gregária que as pessoas têm que ficar separadas e ficar em casa. Em famílias que são pobres, vivem 30, 40 pessoas numa pequena casa. Então, tudo isso me obrigou a pensar e adequar para o contexto local aquilo que eram preceitos. E foi muito curioso, porque os moçambicanos tiveram um entendimento muito rápido da situação. Não é tão difícil explicar que há um ser invisível que pode provocar esse tipo de desordem, porque essa cultura acredita profundamente nesse lado invisível do mundo. Nós tivemos uma capacidade de resposta muito boa, basta dizer que durante toda a pandemia, em Moçambique, morreram duas mil pessoas, número de pessoas que morriam por dia, às vezes, em países como o Brasil, infelizmente. E, portanto, sendo um país que tinha condições que são estruturais – por exemplo, a quantidade de jovens que existe em Moçambique é enorme, 60% dos moçambicanos têm menos de 15 anos –, a incidência da pandemia foi outra. E não havia a ideia de um fim do mundo. Quer dizer, não foi vivida com o lado trágico como foi vivido em outros países do mundo. Portanto, a concessão do mundo, da história e do tempo histórico é outro. Não houve princípio, não há fim, portanto, a ideia de que estávamos a chegar a uma coisa que era apocalíptica nunca surgiu. Por aí eu quis viajar. Há histórias que mostram como é que códigos eram diferentemente percebidos e adotados.
Seus contos são marcados por enredos que tratam, também, de injustiças sociais, racismo, misoginia, violência, finitude, abandono, entre outros temas. Como você trabalha o processo de desumanização em suas histórias?
Nós estamos dentro de um processo que é antigo. E essa desumanização é feita, muitas vezes, não só nesses momentos trágicos, como numa guerra. A nossa espécie não é, por essência, violenta, mas recorre à violência sempre que pensa que isso é absolutamente necessário para a sobrevivência, e sempre que acredita que aquele que ela vai agredir, ou matar, não é humano. Ela precisa saber isso para que haja uma permissão no nível inconsciente, para que possa ser uma agressora. Então, eu acho que a sociedade em que a gente vive, em todo lado, infelizmente, se globalizou e tem essa tentação de olhar para o outro como alguma coisa que pode ser humano, mas não tanto como nós. Isso eu acho que a gente tem que enfrentar. A literatura faz isso porque retrata esse outro como alguém que está dentro de nós, que existe dentro de nós. Essa diversidade não nos é externa.
A presença do mundo orgânico e não orgânico nos seus textos são reflexo da sua formação e atuação também como biólogo. Podemos dizer que você leva conhecimentos da biologia para a literatura e da literatura para a biologia? Como faz esses atravessamentos?
É uma espécie de contrabando que faço, permanentemente, entre aquilo que tem de irreverente na biologia, é isso que eu gosto. A biologia é uma disciplina que é muito indisciplinada, vamos dizer assim. Agora não tanto, porque ela está capturada por interesses financeiros muito poderosos, pela indústria farmacêutica etc. Mas, a biologia propõe coisas para repensar o mundo que são muito radicais. E uma coisa que ela propõe, por exemplo, é esta ideia de diversidade que a gente sempre coloca fora de nós. A biodiversidade está nas florestas, nos ecossistemas, mas também está dentro de nós. Somos profundamente diversos e só uma pequena parte de nós é puramente humana. A maior parte do que vive dentro de nós, e que nos faz ser quem somos, são bactérias, fungos, vírus etc. Portanto, quando eu estava no Ministério da Saúde, apareceu um grupo de curandeiros que disse o seguinte: “Nós não sabemos o que é um vírus, não conhecemos essa doença. Vocês são cientistas. Quando descobrirem que língua fala este vírus, ensinem-nos a falar essa língua. Nós queremos conversar com o vírus”. Isso parece uma coisa ingênua, mas, na verdade, nós conversamos com os vírus. A ideia que persiste hoje é que nós o vencemos como se fosse uma batalha militar, mas o vírus cumpriu a sua parte. Isto é, ele reajustou-se para um convívio mais sereno conosco. Se ele não tivesse tido as mutações que teve, até chegar a esta Ômicron, nós estaríamos, ainda hoje, em pandemia. Mas, é muito difícil que se admita que isso foi uma coisa feita a dois. Portanto, a tal conversa existiu no nível invisível. E tem uma coisa: mesmo onde a gente se pensa mais puro, dentro dos nossos genes, 8% são genes de vírus, não nossos. E a gente tem medo de perguntar o que é que estão a fazer esses genes dentro de nós.
De que forma sua escrita – desde obras como Terra sonâmbula até este último livro – serve como uma ferramenta para elaboração de memórias da Guerra Civil de Moçambique (1977- 1992), que tirou um milhão de vidas?
Ela [a guerra] nunca morreu. Essa presença sempre esteve lá na forma de alguma coisa que precisa ser convertida numa história para que a gente possa aceitar o que não é aceitável. Houve um sofrimento enorme e vocês, no Brasil, não conhecem, e mesmo o mundo não conhece. Se Moçambique fosse na Europa, toda a gente saberia dessa história e estaríamos todos fazendo o luto, mas essa guerra fez um milhão de mortes, a metade do país teve que sair na forma de refugiados e isso marcou muito. É uma ferida muito dolorosa. Só que nas culturas moçambicanas, a ideia é não falar do que se sofreu, é fazer com que isso seja esquecido ao longo do tempo. Só que é um esquecimento falso. E o que a literatura pode fazer como ajuda? Ela pode propor converter isso numa outra coisa, numa história que possa ser visitada por nós. João Guimarães Rosa [escritor brasileiro (1908-1967)] dizia que as histórias não querem ser convertidas em História – na grande História. E esse jogo de como a História se constrói através de pequenos episódios ficcionais é constante em todo lado.
Seus contos também são fruto dos momentos que experimentou na infância. Como foi esse período? É daí que brota a vontade de ser escritor?
A cozinha [de casa] era o lugar onde a minha mãe, com as vizinhas, contavam histórias. E aquele lugar era um encantamento, porque elas falavam sempre meio em segredo, em murmúrio. Havia ali uma coisa que parecia me convidar a uma certa subversão também, mas eu queria pertencer àquele universo. E essas vozes estão presentes, dentro de mim, quando eu tenho que escrever uma história e, sobretudo, quando eu tenho que escrever uma história de personagens femininos, por exemplo. Elas me ajudam a perceber que esse meu lado feminino foi construído nessa infância, nessa cozinha e principalmente com a minha mãe.
Em entrevista que realizamos no ano de 2019, você compartilhou a recordação de sair com seu pai, que foi um poeta, pela linha férrea da estação de trem onde ele trabalhava, na cidade moçambicana de Beira, e catar pedras brilhantes. Essa figura paterna também é transportada para os personagens de seus livros?
Ele tinha isso de abrir a porta para uma outra coisa que me permitia desvalorizar a realidade. Quando ele me levava ao longo da linha férrea a catar pequenas pedras com brilho, como se fosse a coisa mais importante do mundo, eu olhava para ele e, de repente, ele não era meu pai. Ele era meu irmão, era uma criança e estava fazendo uma coisa completamente tonta ou desobedecendo a nossa mãe, que era um grande prazer que tínhamos os dois. Ele mostrava que, afinal, isso que chamavam “mundo real” não pode ser tido em conta como a gente pensa. Porque havia ali uma guerra já. Quando meu pai fazia isso, o país já estava em guerra, portanto, nesse mundo que se dilacerava, o meu pai mostrava que é essa pequena coisa que se pode encontrar no meio da poeira. Algo que depois eu reencontro em Manoel de Barros (1916-2014), quando ele mostra como se pode encontrar poesia no meio da sujidade. Essa é a lição de poesia que ele [meu pai] me deu.
Sua relação com seu pai e o legado da poesia seguem com a Fundação Fernando Leite Couto, em Maputo. Qual o papel da fundação no fomento à leitura e à literatura?
Meu pai apoiava dezenas de jovens, e nós nem sabíamos qual era a dimensão disso. Quando ele morreu é que recebemos várias cartas que mostravam o que ele tinha feito, seu empenho, a vida inteira, foi em ajudar crianças e jovens a escreverem, e depois a publicar, porque ele trabalhava numa editora. Então, nós pensamos: “temos que continuar este trabalho”. E temos uma fundação que é gerida por três irmãos, somos três, e que agora faz isso de maneira mais institucional. Temos uma equipe que trabalha com jovens, fazemos tutoria durante o ano e depois publicamos seus livros. Já publicamos várias dezenas de livros de jovens que, de outra maneira, nunca publicariam. Não fazemos isso por caridade. Fazemos porque também aprendemos com eles.
Você costuma dizer que “está escritor”, porque esse verbo reflete transitoriedade entre as letras e a biologia. Como essas vontades e desejos lhe convocam?
Agora eu estou escritor. Acho que a ideia que eu percebo é que só posso ser feliz se eu puder ser várias identidades ao mesmo tempo, e exercer essas identidades. E faço isso porque sou privilegiado, porque muita gente no mundo não pode fazer. E eu sinto que se a minha primeira identidade, aquela que me determina, é ser escritor, eu fecho janelas que são importantes para mim. Isto é, a biologia é uma delas e, por isso, eu quero me manter disponível. Eu acho que o mais importante – o grande segredo – é estarmos disponíveis a sermos outros. Esses outros que, no fundo, quando vamos descobrir, já estavam dentro de nós.
Vivemos um século que valoriza a inteligência artificial e desconsidera a inteligência das plantas, por exemplo. Como escritor e biólogo, qual sua observação sobre esse cenário?
Alguém disse já, e eu estou citando, que o que mais me aflige não é a inteligência artificial, mas a estupidez natural, isso sim. Mas, na verdade, aflige-me essa ideia de que se possa pensar que uma máquina pode fazer aquilo que uma pessoa faz. Porque isso nasceu há muito tempo. A gente está aflito agora, estamos agora preocupados com isso, mas nasceu desde que se adotou, como lógica dominante, essa lógica mecanicista, que compara, por exemplo, o computador com o cérebro humano. Então, aquilo que é a confusão entre mecanismo e organismo, e que está fundamentada e muito enraizada no nosso pensamento, ela tem que ser questionada. Portanto, não é só neste momento que se deve ter essa preocupação, mas é preciso revisitar, um bocadinho, como é que construímos a nossa visão de mundo. O orgânico se constrói a todo tempo e é composto por vida que constrói vida. Nenhuma técnica pode fazer isso, nenhum mecanismo, nenhum engenho pode fazer isso. É preciso questionar também essa falsa dicotomia entre o vivo e o não vivo, entre o orgânico e o não orgânico. Amanhã, quando eu me olhar no espelho, milhões de células minhas já terão desaparecido, outras nasceram. Havia um amigo que dizia assim: “pede lá uma máquina para organizar a primavera”. Ou seja, é perceber que a gente tem que questionar, porque somos um pequeno grão no meio de várias outras coisas. Não somos o centro. Ninguém legitimou a nossa posição de administradores do planeta. Fomos nós próprios, sozinhos.
E quanto a ameaça à literatura com a popularização de plataformas geradoras de textos, como o ChatGPT? Elas podem, de fato, comprometer a literatura?
Eu não me lembro de nenhuma história que o meu pai e minha mãe tenham contado quando eu era criança. Eu não me lembro. Mas, eu me lembro da voz deles, lembro-me do olhar, lembro-me do momento, daquela coisa encantada de estar a dormir, dessa presença que eu próprio inventei e isso eu acho que nenhuma máquina vai substituir. Seria trágico que a gente pensasse e investisse numa máquina qualquer para essa outra função que é essa ligação invisível que nós temos e que passa por coisas que não podem ser transcritas em uma outra linguagem.
Quando lemos, nos transportamos para outros mundos e nos colocamos no lugar de diferentes personagens. Você acha que a literatura pode nos tornar mais empáticos? E, em larga escala, mudar o mundo?
A literatura bebe numa coisa que é profundamente humana, e que nos humaniza, que é a capacidade de criar histórias e a necessidade de ouvir histórias. Isso sim. Mais grave que um menino ou uma menina não saber escrever bem, ou não ler muito, é essa criança não saber contar histórias. É não ter a potência para ouvir histórias através dessa forma humana, o que sempre aconteceu na nossa espécie. O livro é só a continuação disso. Precisamos que haja um sentido, a nossa espécie precisa criar sentido. Esta coisa, a vida, o tempo, a nossa existência tem que ter um sentido. E como é que se constrói um sentido no meio desse caos todo de sinais que nos chegam a todo tempo? Através de uma história que faz essa ligação, que tece isso que parece desligado. Então, isso é absolutamente essencial.
Assista ao vídeo com trechos da entrevista com o escritor Mia Couto:
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