Em todo o Brasil, comunicadores de diferentes etnias criam e ocupam espaços com suas pautas, vozes e demandas por direitos
Por Maria Júlia Lledó
Leia a edição de agosto/23 da Revista E na íntegra
Quando a jovem Samela Sateré Mawé, da Terra Indígena Andirá-Marau, no Baixo Rio Amazonas (AM), começou a criar conteúdo para as redes sociais, foi pelo perfil do coletivo Artesanato Sateré Mawé no Instagram (@amism_sateremawe), que divulga o trabalho feito pela Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé. Enquanto postava informações sobre as peças criadas com sementes da floresta – arte circulada de geração em geração –, Samela teve, em 2018, a oportunidade de participar da oficina Jovens Cidadãos da Amazônia, realizada pela agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real, criada pelas jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias. Desde então, a jovem faz parte de um levante de comunicadores indígenas que produzem, a partir de seus territórios, reportagens, fotografias, vídeos e podcasts compartilhados na internet.
“A gente é comunicador nato, comunicador popular, comunicador indígena que atende à pauta da comunicação de uma forma descomplicada e democrática. Antes, a gente não tinha jovens indígenas referências nas redes sociais para pautar a luta do seu povo e, agora, a gente tem”, celebra Samela, que é colunista do Projeto Colabora, coordenadora política de comunicação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA). E no seu perfil pessoal (@sam_sateremawe), onde veicula seu trabalho, Samela já tem mais de 100 mil seguidores.
Para o jornalista e professor da Faculdade Cásper Líbero Eduardo Nunomura, “o que temos visto é algo não só original, com conteúdos plenos de significados, mas também capaz de forçar uma inovação dentro do próprio jornalismo, mal-acostumado a narrativas já consagradas”. Um novo cenário impulsionado, principalmente, pelo alcance da internet. “Com a emergência do ambiente digital, ficou mais fácil e possível todos se tornarem emissores. Indígenas e quilombolas, por exemplo, estão descobrindo que eles próprios podem contar suas narrativas, sem a intermediação do profissional de imprensa”, complementa.
Engajado neste contexto, Richard Wera Mirim, da Terra Indígena Jaraguá, faz da Mídia Guarani Mbya (@midiaguaranimbya) um canal de comunicação dos povos que vivem aos pés do pico mais alto da cidade de São Paulo. “Agora temos a tecnologia em nosso favor. Podemos fazer uma denúncia o mais rápido possível com o nosso celular mesmo, não precisamos esperar a mídia tradicional chegar para fazer uma matéria. Podemos falar por nós mesmos”, explica Richard, que faz a cobertura fotográfica de marchas contra a especulação imobiliária na TI Jaraguá, contra o Marco Temporal, entre outras lutas, além de registros do dia a dia e de rituais dos Guarani, desde a criação da página, em 2020.
“Assim a gente consegue dar mais visibilidade pro nosso povo, mostramos o que realmente nós passamos dentro das comunidades. Porque muitas pessoas ainda acham que só existem indígenas na Amazônia, não sabem que em São Paulo tem indígenas”, ressalta. Além do trabalho de coordenação da Mídia Guarani Mbya, o fotógrafo realiza oficinas nas quais ensina outros jovens a manusear o celular para fotografar e publicar suas pautas. “É uma forma que a gente achou de formar novos comunicadores indígenas, fotógrafos, cineastas, para que eles mesmo possam falar por eles em suas aldeias”, acrescenta.
A multiplicação de comunicadores indígenas nas redes sociais não só oferece outras perspectivas acerca do que acontece nos territórios dos povos originários – e que está fora da cobertura de grandes mídias –, como também derruba preconceitos e estereótipos. “Ainda tem gente com uma ideia estereotipada do indígena de 1500. Isso foi construído no imaginário da população brasileira desde a invasão, de que o indígena ‘é assim’. Só que essa história sempre foi contada pelo não indígena. O processo colonizador não acabou e ele acontece, ainda, todos os dias, quando negam a nossa identidade, nossos direitos”, lamenta Samela. “As pessoas não entendem que, para a gente, estar nas redes sociais é uma forma de honrar a nossa cultura, a nossa ancestralidade, de utilizar os nossos adereços, nossos cocares. Pelas redes sociais, a gente tem a oportunidade de alcançar essas pessoas”, observa a comunicadora, que também cria vídeos para as redes sociais da plataforma Sumaúma, idealizada pela jornalista Eliane Brum, para cobertura da Amazônia sob o olhar dos povos da floresta.
Hoje, a força desse grupo de comunicadores, que já somam milhares de seguidores nas redes sociais, também faz com que outros veículos de comunicação reconheçam suas narrativas. “Na Amazônia Real, dizemos que não é uma questão de dar voz aos indígenas. Voz, eles sempre tiveram. O jornalismo é que não os ouvia”, destaca Eduardo Nunomura, que também é editor de reportagens especiais dessa agência de jornalismo independente e investigativo, criada em 2013 pelas jornalistas Kátia Brasil e Elaíze Farias (cuja família materna é do povo Sateré Mawé).
Pautada nas questões da floresta e de seus povos, a Amazônia Real defende que as populações tradicionais sejam protagonistas de suas narrativas. Para isso, além de ter comunicadores indígenas na redação, também realiza, desde 2018, oficinas com foco na comunicação como estratégia de educação para gerar reflexões sobre identidade étnica, pertencimento e responsabilidade no uso das redes sociais. “Eu fui, na verdade, provocada pela cacique Mandeí Juma, quando visitei, em 2014, o território dela [a Terra Indígena Juma, em Canutama, sul do Amazonas], e ela me disse que tinha vontade de conhecer as redes sociais, porque gostaria de falar nesses espaços, mas não sabia como. Por isso, a gente começou a ofertar a Oficina Jovens Cidadãos da Amazônia”, recorda Kátia Brasil, que há mais de 30 anos faz cobertura jornalística da região.
A primeira turma, em 2018, foi voltada exclusivamente para mulheres e formou 10 comunicadoras, entre elas a própria cacique Mandeí Juma e outras lideranças, como Vanda Ortega dos Santos Witoto e Samela Sateré Mawé. A segunda oficina, em 2019, contou com 10 estudantes, entre eles Purê Juma Uru Eu Wau Wau, que ainda faz parte da equipe de colaboradores da Amazônia Real, e Bitate Uru Eu Wau Wau, que cursa a faculdade de jornalismo na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Durante a pandemia, em 2020, não houve oficinas, então a agência criou o Blog Jovens Cidadãos da Amazônia, por meio de um financiamento do fundo Amazonas Rainforest Journalism, que tem o apoio do Pulitzer Center [organização norte-americana de fomento a projetos de mídia independentes]. Assim, os jovens comunicadores puderam ser remunerados para produzir conteúdo de seus territórios. “Eles escreveram num período muito difícil, tem relatos muito fortes de quando não podiam sair da aldeia, e depois vieram as mortes, os cuidados, as barreiras. Falaram sobre a saúde e a educação, que também estava precária”, conta Brasil. Segundo a jornalista, o blog “se tornou um documento muito importante daquele período que marcou o mundo”. Reconhecida em 2022 com o Prêmio Vladimir Herzog Especial, a Amazônia Real realizará, em 2024, a terceira oficina, dessa vez voltada a jovens quilombolas e ribeirinhos.
Pioneira no combate à desinformação na Amazônia brasileira, a Rede Wayuri de Comunicadores Indígenas do Rio Negro (@rede.wayuri) recebeu o Prêmio Estado de Direito 2022, do World Justice Project (WJP), na cidade de Haia, na Holanda, em maio do ano passado. Com apoio do Programa Rio Negro, do Instituto Socioambiental (ISA), e composta por 55 comunicadores de 16 etnias, a Rede Wayuri foi criada, em 2017, com o nome Rede de Comunicadores Indígenas do Rio Negro. No começo, eram 17 comunicadores de oito etnias – Baré, Baniwa, Desana, Tariana, Tukano, Tuyuka, Wanano e Yanomami – que produziam boletins em áudio para levar informações sobre os territórios indígenas do Rio Negro para suas 750 comunidades.
Uma das integrantes da Rede desde sua criação, a cientista social Elizângela da Silva, do povo Baré, lembra que quando assumiu o departamento de mulheres da Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (FOIRN), em 2017, junto a outras três coordenadoras, teve a ideia de fortalecer a comunicação nas terras indígenas. “A gente resolveu criar a rede para levar informação aos territórios sem acesso à televisão, computador e internet”, conta.
“Na nossa região, a gente sempre faz muitos mutirões – capinar, fazer canoa. Esse trabalho coletivo a gente chama, em nheengatu [Língua Geral amazônica], de wayuri. Então, a gente escolheu esse nome porque precisava fazer, juntos, com que a comunicação chegasse nessas comunidades”, explica Elizângela. Sem estúdio para gravar os boletins, nem experiência em radiojornalismo, a parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) possibilitou a formação de comunicadores.
A ferramenta seria o celular e o ambiente para gravação, a maloca. A jornalista Letícia Leite, que estava, então, à frente do programa Copiô, Parente!, realizado pelo ISA, ministrou a formação em São Gabriel da Cachoeira (AM), voltada para jovens indígenas do território. Mensalmente, os comunicadores indígenas, mobilizados pela Rede Wayuri, iam até a cidade para aprender sobre roteiro, edição e, então, produzirem o programa Papo da Maloca, que é mensalmente compartilhado por WhatsApp, pela transmissão de arquivos via bluetooth e também por plataformas de streaming de áudio.
“Esse foi o nosso propósito: que a comunicação de fora chegasse lá dentro, e a de dentro chegasse para fora”, explica Elizângela Baré, que até 2021 participou integralmente da Rede Wayuri, na qual segue como colaboradora, e desde 2022, é locutora do programa Rádio Sumaúma. Essa via de mão dupla, aliás, é o que a cientista social e comunicadora, que hoje cursa o mestrado na Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP), acredita ser essencial para a mobilização da sociedade nas causas indígenas.
“A gente fala coisas que a gente sente, que a gente vive, que a gente acha que precisam ser ouvidas pelas pessoas, não só por nós. Então, a gente acredita que a comunicação não serve só para você dizer: ‘hoje vai chover’, ‘hoje vai sair sol’. É alguma coisa que tem que tocar o coração daquela pessoa e dizer: ‘Poxa, aquele tema que foi falado pela Rede Wayuri ou pela Sumaúma é, de fato, uma coisa que me atinge e atinge aquela população que eu nunca vi, que eu não conheço’. As pessoas precisam conhecer nossas causas”, finaliza.
Em celebração ao Dia Internacional dos Povos Indígenas, projeto do Sesc São Paulo realiza apresentações, exibição de filmes, bate-papos e outras ações ao longo deste mês
De proporções continentais, o Brasil possuía, em 2010, segundo o Censo, 305 etnias indígenas, falantes de 274 línguas. Ou seja, em nosso país habita uma profusão de cosmologias e tecnologias dos povos originários, ainda pouco conhecidas. A fim de celebrar os saberes e valorizar os direitos dos povos originários, o Dia Internacional dos Povos Indígenas (9 de agosto) foi instituído pela ONU. Em São Paulo, a data inspirou a Lei 17.311/2021, que determina no calendário oficial do estado o Agosto Indígena.
O Sesc São Paulo desenvolve, ao longo de todo o ano, ações programáticas voltadas à valorização e ao reconhecimento dos direitos dos povos originários, e neste mês realiza nas unidades da capital, interior e litoral uma programação especial para a ação Agosto Indígena. Esta edição, nomeada Brasil Terra Indígena, abrange apresentações, exibição de filmes, bate-papos, cursos, vivências e outras atividades com o propósito de visibilizar a presença indígena. Como explica Danilo Santos de Miranda, diretor do Sesc São Paulo, ao valorizar a diversidade desses povos no Brasil, o Agosto Indígena “busca reforçar um movimento no qual o protagonismo e a representatividade de comunidades e pessoas são aspectos inegociáveis para uma sociedade que se pretende plural e comprometida com o futuro”.
Confira alguns destaques da programação:
CONSOLAÇÃO
Abertura do Agosto Indígena
Sarau UruKum
Encontro multiétnico com intervenções artísticas que abordam questões relevantes aos povos indígenas na contemporaneidade.
Dia 9/8. Quarta, das 18h às 18h45. Grátis.
Avaxi Nhenhoty
Cerimônia de encontro dos Guarani do Jaraguá com multiartistas indígenas, inspirada no plantio de milho do povo Guarani. Com o Coro Guarani Kyre’y Kuery, David Vera Popygua Ju, Xeramõi José de Quadros Vera Popygua, Glicéria Tupinambá, Uýra Sodoma e Zahy Tentehar. Direção de Cibele Forjaz.
Dia 9/8. Quarta, das 19h30 às 21h30. Grátis.
SOROCABA
O céu dos povos Tukano: entre miradas e histórias
Bate-papo sobre a cosmovisão indígena do céu noturno para os povos Tukano Orientais, da região do rio Tiquié, no Alto Rio Negro (AM), e a perspectiva astronômica acadêmica. Com Kisibi Durvalino Moura Fernandes, kumu do povo Desana, e o astrônomo Walmir Thomazi Cardoso.
Dia 24/8. Quinta, das 19h às 21h30. Grátis.
Programação completa:
sescsp.org.br/agostoindigena
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