Este ano, o Brasil é palco de dois grandes marcos históricos: o centenário da Semana de Arte Moderna e suas vanguardas artísticas, e o bicentenário da Independência do Brasil.
Por isso, o Sesc SP está promovendo uma série de atividades culturais com objetivo de possibilitar reflexões críticas sobre como esses dois movimentos históricos nos impactaram enquanto país.
E em 2022, para resgatar um grande momento da Semana de 22, — a apresentação do maestro Heitor Villa Lobos, que subiu ao palco do Theatro Municipal de casaca e chinela, para misturar ritmos populares com música clássica, encerrando o terceiro dia da Semana de Arte Moderna com muita ousadia e inspiração — e para compreendermos melhor as similaridades do erudito e do popular, batemos.um papo com a musicista Fernanda Kostchak, (que provavelmente você já viu performando no palco de alguma unidade do Sesc ao lado de seus companheiros da banda Vanguart), educadora musical há mais de 20 anos e que, com seu violino, embarcou em uma jornada musical que partiu do erudito à fusão com diferentes estilos musicais.
Nessa conversa, realizada na primeira semana de maio de 2022, falamos sobre seu flerte com esses diferentes mundos, suas intersecções e suas conexões, a riqueza da produção musical brasileira, os preconceitos que ainda existem no meio artístico e a importância da arte e da cultura para a construção de uma identidade nacional.
Como surgiu na sua caminhada artística, a necessidade de partir do violino erudito para a experimentação de diferentes estilos e também a possível fusão entre eles?
Fernanda Kostchak: Eu não sei exatamente como começou, mas eu ainda era criança e sentia falta de saber tocar músicas que eu sabia cantar ou que todo mundo conhecesse. Eu me sentia um pouco isolada por tocar músicas que só eu e meus professores e colegas de conservatório (eu comecei em conservatório) conhecíamos. Mais pra frente isso se tornou mais consciente e eu queria que o violino fosse um “chegado” de todo mundo como o violão é, por exemplo. Sobre a fusão, bem, instrumento é instrumento, você pode e deve usar da maneira que quiser, mas em termos mais técnicos, foi um desafio extremo porque a música erudita é firmada sobre uma determinada escola técnica que se você simplesmente aplicar no repertório popular sem muita reflexão, entendimento, vai fazer com que a música popular soe “erudita”, não chega a ser prejudicial, tem a ver com a escolha da interpretação que se quer realizar, mas o que eu queria mesmo é que o violino ocupasse muitos outros espaços e chegasse para muito mais pessoas.
Flertar dessa maneira com diferentes mundos, do erudito ao popular, pode gerar uma confusão entre estilos ou, pelo contrário, resultar em composições mais ricas e interessantes?
Fernanda Kostchak: Voltando à questão técnica, é um pouco complicado, vou contar uma passagem da minha formação. Eu estava estudando um concerto de Mozart durante a faculdade ao mesmo tempo que estava descobrindo e já trabalhando com a música country. Cada um desses repertórios exige uma técnica de arco totalmente diferente uma da outra. Imagine que em Mozart, o final das frases deve ser executado suavizando a dinâmica, a intensidade do som, e no country é o oposto, você deve acentuar ao final das frases. Desenvolver esse controle ao ponto de um não interferir no outro foi um processo muito intenso, muito complexo, exige o dobro, triplo da dedicação porque você precisa dominar a técnica para o Mozart, outra para o country e por fim, dominar essa transição consciente e deliberada. Foi duro porque você estuda pra tornar a técnica o mais espontaneamente possível e não ter que pensar nela, você quer pensar na música e isso me ajudou imensamente a nortear minha técnica através do entendimento das diferentes linguagens, tipo, eu passei a tocar melhor o Mozart por ter passado pelo country. É louco mas é real, o country é mais próximo da gente, afinal, é popular, essa vivência me trouxe uma sensação de proximidade com a linguagem que através de Mozart eu não conseguia estabelecer. Mas essa foi a minha história e essa construção durou muitos anos.
Você se apresentou em grandes orquestras e festivais internacionais, mas também insere a musicalidade do seu violino em uma banda que mescla indie, folk, rock, jazz e que já foi bastante premiada por isso. Acredita que o diferencial da música do Vanguart está justamente nisso?
Fernanda Kostchak: Está também. Poxa, essa pergunta não deveria ser feita pra mim… mas foi, ok… então, o Vanguart é uma banda que tem referências gigantes e consegue celebrar essas referências em forma de música autoral, e isso muito antes de eu chegar, mas que depois sim, foi o lugar perfeito, com a galera perfeita pra tudo isso que vc disse aí na pergunta poder se manifestar, porque sim, é o que trago da minha vida para dentro do Vanguart.
As opiniões sobre a participação de Villa-Lobos na Semana de 22 se dividem. Há quem ache que ele foi um grande expoente modernista e outros que pensam que sua produção chegou ao ápice anos depois. Nos dias atuais existe alguma frente de artistas que fundem o erudito e popular? Essa linha é bem recebida pelo público e o meio musical?
Fernanda Kostchak: Sabe, setorizar o que é subjetivo é bem complicado, pode ser necessário do ponto de vista pedagógico e nem sempre atende à complexidade da coisa musical. Quer ver? Existem inúmeras obras do repertório erudito que se tornaram extremamente populares sem que sofressem alterações ou ganhassem versões, essas obras (do século XVIII por exemplo) se tornaram queridas da grande massa, tornaram-se populares. Eu acho espetacular, eu celebro quando a pessoa que nunca ouviu falar no nome J.S. Bach ou Beethoven cantarola uma de suas peças icônicas espontaneamente. Acho que Villa Lobos transmite um pouco dessa quebra de paradigma. Sobre artistas da atualidade que fazem essa fusão atualmente, bem, existe sim, mas uma coisa é fazer fusão e outra coisa é apresentar algo autêntico, mas que revela influências de outras escolas musicais, é diferente, mas tem também.
Qual o legado de Villa-Lobos, cujo auge na década de 30 era representado em suas composições que refletiam uma combinação de Bach com música popular instrumental brasileira, deixou para as diferentes gerações de músicos?
Fernanda Kostchak: A proximidade e a possibilidade de se ser próximo da sua própria música.
Para você, além dele, que outros nomes foram capazes de produzir entre o erudito e o popular com maestria nesse último século?
Fernanda Kostchak: São muitos, a produção musical brasileira seja erudita ou popular é riquíssima, mas em meus tempos de orquestra, uma peça em especial me cativou, “Ritual” de Lindembergue Cardoso, onde ele faz dialogar uma orquestra sinfônica tradicional com percussões de matriz africana, desde a primeira vez que ouvi e toquei aquelas notas ficou claro pra mim que eu queria causar a mesma sensação em outras pessoas, a de que não há regras limitantes, há regras para conduzir a liberdade, a estrapolação, a ruptura.
Como é hoje para as mulheres compor e produzir entre esses dois mundos? Você acredita que a participação feminina na criação de grandes composições musicais ascendeu e é respeitada hoje em dia?
Fernanda Kostchak: Não é. Pelo contrário, recentemente testemunhamos line ups inteiros ocupados apenas por homens, festivais de composição e instrumentais vergonhosamente ocupados por apenas homens, é uma vergonha, é uma limitação, um atraso, além de ser sim um indicador de que para nós mulheres, tudo é mais difícil e que o machismo se manifesta também nas artes. O avanço que podemos notar e vivenciar é por conta da nossa própria luta em querermos estudar e buscar meios de mostrar nosso trabalho. Para a mulher, mostrar um trabalho artístico nunca é somente mostrar excelência no que se faz, mas vencer muitas barreiras sociais, preconceitos e assédios que os homens não precisam vencer e se quer sabem que existem.
Quais são os próximos passos da Fernanda Kostchak na carreira musical? E como vê a cena musical atual?
Fernanda Kostchak: O que posso dizer é que não existe amanhã musical sem que entendamos a função social e econômica do que fazemos, a cultura arrecada até 4% do PIB, existe uma idéia toda equivocada de artistas não trabalham ou não precisam receber para trabalhar ou até que não precisam trabalhar. Estamos numa confusão profunda entre artista x celebridade x influencer, entender nossa classe artística como trabalhadores da cultura é urgente e não acredito em nenhum olhar sobre a arte que não considere a questão sóciopolítica não só por conta do momento de obscuridade que estamos vivendo, mas também independente dele. A arte liberta o pensamento, convida à reflexão através de mecanismos desconhecidos, não podemos mais aceitar ataques à arte e à educação. Não existe bem-estar sem autonomia e para construí-la, precisamos de uma sociedade sensível e não repetidora de padrões aleatórios, o indivíduo pode gostar do que for, do erudito ao popular ao bizarro, mas que em suas escolhas haja um caminho tanto para se ir e vir sendo-se livre quanto para se ter a tranqüilidade de que sim, o que se gosta é aquilo mesmo.
Sobre Fernanda Kostchak:
Violinista formada na Universidade de São Paulo, Fernanda é performer, solista e educadora musical com formação clássica erudita e também popular tendo incluído ritmos como folk, rock, jazz, latino, celta, irishfiddle e música eletrônica em sua jornada musical. É educadora musical há mais de 20 anos, atuou em diferentes orquestras e atualmente integra a banda Vanguart.
A artista se apresentou em importantes palcos e salas de concerto e integrou orquestras paulistas sob a regência de maestros como Eleazar de Carvalho, Lorin Maazel, Aylton Escobar e Jamil Maluf.
No Vanguart, venceu o do Prêmio MTV Awards 2012 de melhor banda, o selo Eldorado de qualidade dado pela Rádio “Eldorado FM” e melhor álbum pela Folha. Na Europa, se apresenta regularmente no Festival Interceltique de Lorient na França além de ter disputado em 2013, o troféu LoïcRaison, ficando seu grupo entre os 10 finalistas.
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