Mostra de Trabalhos: Quem conta um ponto? investigações poéticas

18/12/2024

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Por Desiree Helissa Casale

“(…) personagens de ficção ou mulheres reais, desde as mais remotas épocas, de mãe para filha e de avó para neta, vieram nos bastidores tecendo seus fios, emendando carreiras, dando pontos e fazendo nós numa espécie de grande texto coletivo: o tecido da História composto pelas linhas entremeadas das histórias”. (MACHADO, 2013, p.194). 

O processo de bordar, além de um trabalho que evoca íntima relação com o tempo, é o ato de tornar perpétuas histórias, memórias e desejos. Ao atravessar repetidamente agulha e fio no tecido, as participantes do ateliê aberto Quem conta um ponto? teceram, de maio a novembro de 2024, ideias, memórias e histórias, costurando esse processo em coletividade, aprofundando suas pesquisas e subjetividades, em espaço que corriqueiramente acontece nas tardes de quinta-feira.

“Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são mais conservadas. Ela se perde porque ninguém mais fia ou tece enquanto ouve a história. Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo” (BENJAMIN: 1993 pág. 205). 

A Mostra de processos foi costurada por 15 bordadeiras e 1 coletivo. As artistas, em sua maioria mulheres residentes dos bairros da Casa Verde e Limão, na zona norte de São Paulo, teceram com afinco suas histórias ao longo de 9 meses.

Em geral, cada uma dessas artistas buscaram um estreitamento consigo mesmas e suas memórias como se olhassem seus trajetos de vida num processo curatorial, elencando figuras e símbolos como relicários. 

Em contato com os trabalhos, percebemos a diversidade e riqueza dessas contadoras de histórias.

O cuidado nos trabalhos de Salime Hage, Andrea Cristina e Rita Alves retomam lugares de saudade, acolhida e afeto que já fizeram ou fazem parte de em seus cotidianos.


Salime Hage

Descrição resumida: Salime Hage, Mulher branca de cabelos grisalhos, na altura do ombro, usa óculos de aro metalizado, usa  blusa preta de bolinhas brancas, com manga longa e aberturas nas laterais. usa alça de bolsa bege transpassando o peito. A frente uma bancada com linhas e tecidos; Salime apoia seu bordado em tecido azul royal, enquando borda uma das pontas do tecido. Ao fundo armarios, janelas e parede branca da sala do Eta Casa verde.

Rita Alves

descrição resumida: Rita Alves, mulher branca de cabelos grisalhos enrolados, usa blusa de alça estampada. A frente mesa cinza com rolos de linha, tecidos, e bordados. Rita separa linhas sob tecidos claros a sua frente. Ao fundo quadro branco e tv, da Sala do  ETA Casa Verde.

A identidade salta alto em bordados que narram o pertencimento de mulheres ao se reconhecerem em figuras Felinas, como no trabalho de Gileide Bispo dos Santos, retratando Jaguatiricas, e no de Flora César  Guabiraba, brincando com a figura curiosa e observadora dos gatos, fazendo um convite para contemplar o cotidiano através de um  jogo de esconde-esconde felino entre cortinas. O manto bordado de Alcione Barreto – obra que evoca referências diversas: o manto Tupinambá, devolvido pela Dinamarca, o samba enredo Nosso destino é ser Onça, de Gabriel Haddad Leonardo Bora e livro de  Alberto Mussa, Meu destino é ser onça – alinhava pertencimento e ancestralidade.


Flora César e Sonia Maria

Descrição resumida:
Flora César, guabiraba, Mulher negra de cabelos curtos, usa óculos de aro retangular, blusa de alça rosa; ao seu lado Sonia Maria, mulher negra de cabelos curtos castanhos escuros, encaracolados, usa blusa regata de gola, cinza com bolinhas pretas, ambas olham para baixo, o tecido nas mãos de Sonia Maria. A frente delas uma mesa com tecidos brancos e amarelos e com uma cara de um gato branco bordado ao fundo a vitrine do Eta Casa Verde.

Alcione Barreto

Descrição resumida:
Alcione Barreto, Mulher negra de pele clara, cabelos pretos longos e lisos, abaixo do ombro. usa o óculos na cabela, olha sob o ombro, posando com um Xale amarelo, com a aplicação bordada da cara de uma onça rugindo, e penas coloridas. Ao fundo a parede branca da sala do ETA Casa Verde.

Outros trabalhos demonstram o caráter investigativo e metafórico. Na pesquisa de Veroca Saura, o olhar ganha massa, textura de fios e pontos, disparando o pensamento sobre Olhar além do véu, ou Olhar sem medo, títulos dos trabalhos que instigam a reflexão sobre a produção artística feminina em meio ao cotidiano de cuidados familiares, domésticos e do casamento. 

Veroca Saura

Descrição resumida: Veroca Saura, mulher branca, de cabelos grisalhos, encaracolados, na altura do ombro, usa camiseta laranja. Está sorrindo, segurando e olhando para seu trabalho. Um grande olho em feltragem, coberto por Voil, envolto por um bastidor de 40cm. Ao fundo, paredes brancas, canos aparentes nas cores cinza e vermelho,  da sala do ETA Casa Verde.

Com a obra de Francisca Bernadete, podemos brincar de olhar e ser olhado pela perspectiva de um bordado amuleto com o título Zoião. 

A palavra torna-se imagem ao ser tecida nos trabalhos de Helô Loschi, com folhas secas e haicais de Paulo Leminski em tecidos com impressões botânicas, juntando o perpétuo e o efêmero. Melissa Batista Cruz trabalha um jogo de contraste de luz e sombra bem traduzido em pontos de bordado que variam a textura e a luz em meio a letra da música Poema de Ney Matogrosso, e Lara Araujo pousa na simplicidade direta de autoria própria ao mesclar imagem e palavra.

Helo Loschi

descrição resumida: Helo Loschi, mulher branca de cabelos castanhos claros, na altura do ombro, usa óculos de aro quadrado,  regata com manchas tai dai, em tons de rosa.  Está sorrindo e bordando com seu tecido e bastidor apoiados na mesa. Ao fundo, prateleiras cheias de materiais da sala do ETA casa Verde.

De que ponto as idéias germinam?

As ideias germinam nos pontos e conversas do cotidiano, em pequenos momentos de respiro, contemplação e poesia: na obra de Vanessa Nunes ao refletir sobre suas ações no chão de escola  a partir dos textos do livro Canção para Ninar Menino Grande de Conceição Evaristo; na obra de Ivonete, que se  permite ao encanto pelo movimento que a dança provoca no corpo;  e nos 3 trabalhos de Maria de Lourdes, um espaço se abre para a contemplação e reflexão sobre tempo, descanso e formas de alimentar a alma.  

Vanessa Nunes

Ivonete

Descrição resumida:
Ivonete, mulher branca de cabelos pretos enrolados na altura do ombro, usa óculos de aro quadrado metalico, regata preta, em suas mãos borda um tecido voil sobre cetim cinza. A sua frente, bancada com um pote quadrado transparente com canutilhos prata. Ao a educadora Tat e mesas e armários da sala do ETA Casa Verde.

Semelhante é a vivência de Sonia Maria Cardoso, que amplia sua percepção de relação e cuidado com as plantas, em um processo mútuo. 

Vivenciar e dar espaço para um ateliê aberto é poder experimentar esses espaços de reivindicação, desses tempos de criar e trazer luz a nossas experiências de vida e de SER no mundo. Jorge Larrosa, pedagogo e filósofo espanhol, desperta-nos a importância de dignificar a experiência e reivindicar um tempo em que a arte, a incerteza, a subjetividade e a imaginação possam ser acolhidas sem tanto receio no tempo presente. 

“Dignificar a experiência, reivindicar a experiência, e isso supõe dignificar e reivindicar tudo aquilo que tanto a filosofia como a ciência tradicionalmente menosprezam e rechaçam: a subjetividade, a incerteza, a provisoriedade, o corpo, a fugacidade, a finitude, a vida… Talvez reivindicar a experiência seja também reivindicar um modo de estar no mundo, um modo de habitar o mundo, um modo de habitar, também, esses espaços e esses tempos cada vez mais hostis que chamamos de espaços e tempos educativos” (LARROSA, 2011, p, 24). 

A base para a vivência do Ateliê aberto de bordado tem sido sair de um processo solitário de criação e habitar a coletividade criando espaços de rede. Em Mutualismo, trabalho da  APD ( Estratégia Apoiador da Pessoa com Deficiência) da Casa Verde, com o grupo Chavosos as terças feiras <3; percebemos as redes tecidas geradoras de ecossistemas de apoio e cuidado, onde Elisabete Araújo, Vivian Bertucceli de Souza, Talita Ramos, Sara Tolentino Alexandre e Daniela Gama trabalharam desde a participação nas aulas de desenho da educadora Tatiane Colevati, estendendo a prática das aulas de desenho e do  ateliê  vivenciados no Espaço de Tecnologias e Artes do Sesc Casa Verde, para as ações da APD, esticando os fios, entrelaçando-os.  

“A Estratégia Acompanhante da Pessoa com Deficiência (APD) foi criada em 2010 como um programa para atender as diversas demandas relativas à dificuldade no cuidado às pessoas com deficiência intelectual, decorrentes de situações de saúde agravadas, envelhecimento da pessoa, seus pais/cuidadores, dificuldade no estabelecimento de redes de suporte para acesso e continuidade na atenção à saúde. (…) Em 2012 foi criado pelo Ministério da Saúde o Plano Viver Sem Limites e publicada a Portaria nº 793, de 24 de abril de 2012 instituindo a Rede de Cuidados à Pessoa com Deficiência. (…) Além disso, criou serviços na Atenção Especializada, os Centros Especializados em Reabilitação – CER. A partir de então o Município de São Paulo desencadeou um processo de implementação dos NIR de forma a se constituir como CER e fortaleceu a integração das equipes APD nos CER como estratégia de suporte diferenciada para o cuidado às pessoas com Deficiência Intelectual.” (p. 18, Estratégia Apoiador da Pessoa com Deficiência. – APD; · Org. Área Técnica de Saúde da Pessoa com Deficiência · São Paulo, 2024). 

Apoiador da Pessoa com Deficiência – APD – 14 pessoas, da APD Casa Verde e Chavosos

descrição resumida: No galpão do Sesc Casa Verde, 14 pessoas, da APD Casa Verde e Chavosos as Terças Feiras,  estão bordando, ao entorno de uma mesa de madeira, com rolos de linha e folhas secas.
Descrição resumida: No jardim do  estacionamento do Sesc Casa Verde, Elisa e William homem negro de cabelos curtos, usa camiseta azul e bermuda jeans, estão colhendo folhas caídas do chão.
descrição resumida: De costas, Jonathan,  menino branco, de cabelos curtos castanhos escuros, usa camiseta azul marinho, encurva o corpo para frente,  está com o rosto bem próximo a mão que segura linha e uma folha seca bordada. em frente uma mesa cinza com tesouras, meadas de fios coloridos e folhas. Ao seu lado Talita da APD Casa Verde, mulher negra de pele clara, de cabelos lisos com luzes douradas, o cabelo está preso. Ela usa camiseta cinza abaixo de um colete azul claro, observa o bordado de Jonathan

O registro desse grupo poderia ser acolhido também no abraço do trabalho de Miriam Fukai, que tece fios, redes, nós, raízes e novos sistemas solares a partir de sentimentos que a acompanham na busca efetiva de rede de apoio para seus pares.  

Com quem estamos tecendo? Como tecemos afetos? Como tecemos nossa rede de cuidado?  

Tecer também é cuidar dos nós.  

descrição resumida: Miriam Fukai , mulher amarela, de cabelos grisalhos, presos, usa uma faixa de cabelo preta, óculos de aro quadrado transparente, e camiseta branca com desenhos de arabescos em azul. Ela está diante de uma mesa cinza, com rolos de linha e borda em um voil de 1metro. Ao fundo a sala do ETA casa verde.

O ateliê Quem conta um ponto? segue aberto para quem já borda e para quem nunca bordou; para quem mais quiser partilhar memórias, ou criá-las. É dessa diversidade de pessoas e processos que histórias partem de processos individuais e evocam o coletivo. Afinal, o ateliê de bordado só ocorre em circularidade de afeto e em porosidade com quem o habita, ensina e aprende junto, uma vez que é na convivência que retomamos a nossa humanidade. 

“Precisamos nos colocar em uma atitude de aprendizagem, o que quer dizer uma circulação de afetos e ideias através de nós e de outras pessoas na prática”. (Ponce de León ,2016. p.16) 

Abaixo, um exercício de descrição dos trabalhos. Os áudios foram gravados pelas próprias autoras dos bordados, as artistas e tecelãs da Casa Verde. E vocês podem ouvi-las descrevendo, a seu modo, em variados tons de voz, sotaques e modos de ler. 

Essa Mostra foi tecida por mãos cuidadosas das equipes do Sesc Casa Verde:  do Espaço de Tecnologias e Artes (ETA) Tatiane Colevati e Fabiana Coletta e dos setores Programação, Comunicação, Infraestrutura, Serviços e Alimentação. Toda partilha é um festejo. 

Todas as imagens possuem texto alternativo e edição por Michel Enrique e Desiree Helissa como processo da comissão de acessibilidade do Sesc Casa Verde. 

Referências do Texto:

BENJAMIN, Walter. “Rua de mão única”. Trad. de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Brasiliense, 1987

BIENAL , Fundação. “Incerteza viva, processos artísticos e pedagógicos”. In: KASTRUP, Virginia (Org). Educação e Incerteza, Artistas: Felipe Mujica, Rita Ponce de León e Oyvind Fahlström. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 2016

CHRISTOV, Luisa H. da S. “Contribuições narrativas para a formação de professores”.In: BARBOSA,R.L.L.(Org). Formação de educadores-artes e técnicas-Ciências e políticas.São Paulo:UNESP,2006 

MACHADO, Ana Maria. “Texturas: sobre leituras e escritos.” Rio de janeiro: Nova Fronteira, 2001.

MARTINS. Mirian Celeste.”Pensar juntos mediação cultural:[entre]laçando experiencias e conceitos”, São Paulo:terracota,2014

LARROSA, Jorge. Experiência e alteridade São Paulo: Revista reflexão e ação santa cruz do sul [online]. 2011. Disponivel em: https://online.unisc.br/seer/index.php/reflex/article/view/2444/1898

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