Sorocaba foi batizada como Terra Rasgada: uma terra rachada, fácil de cavar e dividida pelo rio Sorocaba.
Curiosamente uma terra batizada em feminino, onde os fluidos vívidos do rio que a dividem, aguaram, brotaram, floresceram e continuam a renascer de uma maneira plural e resistente.
O Mulheria 2025 nos leva a pensar em constelações: uma constelação ancestral, plural e resistente, onde a ousadia de uma trabalhadora trouxe melhores condições de trabalho nas fábricas têxteis para mulheres e crianças; onde o dom e o sonho de uma jovem a levou a ser a maior radialista negra do país; onde uma mulher quilombola fez persistir, contrariando forças históricas e sociais pela existência e continuidade de um quilombo que é comandado por mulheres; onde uma mulher, que desde o momento que se descobriu negra, investiu na educação e resistência das crianças e jovens; onde uma professora floresceu por 103 anos dançando e espalhando o amor pela educação primária e; por fim, onde uma criança brutalmente assassinada tornou-se um símbolo de fé e esperança.
Essa constelação ancestral, aguada por contradições e paradoxos, por caminhos difíceis e sinuosos, brota e floresce, nos levando a uma constelação contemporânea que marca Sorocaba como forte polo artístico, político, educacional e cultural, com diversas mulheres no comando. Deixando ver através dos espelhos do tempo o quanto de poder existe nas bandeiras fincadas em diversos espaços pelas mulheres deste chão. E ainda assim, sabemos que precisamos de muito mais.
Nesse sentido, temporalidade e território caminham juntos. Para seguir, precisamos preservar e sempre cultivar a memória. Registros orais, escritos e desenhados fazem parte desse projeto que acontece em março de 2025, e um traço a ressaltar das propostas é a intencionalidade de levantamento, partilha e salvaguarda de imagens, reminiscências, saberes e fazeres de mulheres da região.
Regar essas memórias é demasiado importante. É nosso dever político lembrar que essa terra não foi apenas transformada pela força das águas: foi historicamente rasgada pela brutalidade do extrativismo, do escravismo e até hoje disputada e prejudicada pela irracionalidade dos ímpetos de ganância e lucro, sempre disfarçados com falsas cores de progresso. A sanha capitalista desde outrora rasga e intenciona tornar terra e território, corpos e mentes, em mercadoria. Desde a fundação, imagens de controle, violência, opressão e exploração fazem parte do processo de desenvolvimento da cidade. Assim também as imagens de resistência, de fraternidade, de teimosia e persistência, disputam lugar na nossa história. É justo que sobretudo as mulheres do povo tenham sua devida localização no espaço-tempo desta terra: suas fotos, suas frases, seus gestos, seus movimentos e seus caminhos, carecem de emergir como história legítima.
A mulheragem que semeamos em 2025 convoca os nomes de Ondina, Salvadora, Julieta, Rosângela, Zilá e Dona Cida, não só pelos feitos incríveis que ousaram realizar em vida, aguando ideais potentes e busca por liberdade em nossa região. É também pelo legado, pela imponência que esses nomes imprimem na continuidade da história que as lembramos e celebramos.
Honramos, agradecemos e aprendemos, com a arte estrategista de viver, elaborar, produzir e encantar espaços e diferentes áreas do conhecimento, artes de mulheres que com suas existências e experiências agarraram-se tão vorazmente às ideias de vida, lutaram tão aguerridamente pelas suas comunidades, por suas famílias e por sua classe. Lutaram tanto por seu povo, que se tornaram sinônimo dele. Cidadãs que amaram seu chão e o cuidaram, nos ensinando uma dimensão de amor e de trabalho que é capaz de vencer os ditames misóginos, racistas, patriarcais e capitalistas que apagam e silenciam, que empurram gerações de mulheres para o ostracismo e o esquecimento.
Não as esquecemos. E mais que isso, reconhecemos em suas trajetórias inúmeras possibilidades de aprendizado, infinitas semeaduras em todas e em cada uma. Pluriversas. Muitas, plurais e versadas pelos sonhos, estrelas que brilharam em seu tempo, tão fugazes e sagazes que o caminho deixado por esse brilho se torna uma constante, contínua e inextinguível constelação.
Assim como a terra onde se fizeram encantadas e imortais, essas mulheres empreenderam inúmeros esforços para criar, para fazer brotar o novo no mais árido e improvável contexto. Inteligência e sensibilidade, ousadia e força, pujança e altivez, vidas que se contam nas tramas e costuras do seu labor coletivo e das suas aspirações e suas mais profundas contribuições.
Todas nós, cidadãs da região de Sorocaba, de algum modo nos sentimos identificadas e tocadas com essas histórias, todas nós alcançadas pelas raízes visíveis e invisíveis plantadas por elas e tantas outras refletidas em seus nomes.
Todas nós resistências pluriversas desta Terra Rasgada, e a temos preenchido da melhor maneira possível, com a continuidade. Inspiradas e atravessadas pelo brilho e pelas sementes dessas nossas conterrâneas do passado, ressemeamos e regamos as flores sonhadas por elas.
É bruta vida se fazendo em movimento contínuo: Aguar, Brotar e Florescer!
Ariani Toledo, Daia Moura e Flávia Aguilera
Cocuradoria Mulheria 2025
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Conheça a cocuradoria do projeto:
Ariani Teodoro
Mediadora de leitura, professora de idiomas, internacionalista, pós-graduada em Gestão de Projetos e Inovação pela Facens e tradutora e intérprete pela PUC-PR. Amante de livros e clubes de leitura, ativista do Movimento Negro Unificado de Sorocaba.
Curadora da exposição de Úrsula à Ponciá, que retrata em telas os 200 anos da independência do Brasil e de Escrevivência por Mulheres Negras e do Projeto Cine por Elas, que reúne cinema e literatura feminina. Produtora do livro “Conheça-nos: Mulheres Negras na Influência e Cultura Sorocabana”. Idealizadora da página @ari_entrelinhas, no Instagram, em que escreve majoritariamente sobre literatura negra e feminina.
Atuante em projetos sociais, feiras literárias e palestrante em empresas nos temas ligados à Diversidade e Inclusão (D&I).
Daia Moura
Artista do corpo, performer, pesquisadora e arte-educadora. Doutora e mestra pelo PPGEd da UfsCar Sorocaba (Bolsista Doutorado FAPESP). Co-criadora da Plataforma de Pesquisas Cunhantã e do Projeto Entre de performance e realidade virtual. Integrante do Projeto Coletiva Mulheres e Luta e do NEGDS – Núcleo de Estudos de Gênero, Diferenças e Sexualidades. Dramaturgista do Grupo Trança de Teatro, autora da peça Ilú Okan – o que minha avó contou. Atualmente é educadora do curso livre de teatro Jovens em Atuação do IGESC – Instituto de Gestão Cultural, mantido pelo Sindicato dos rodoviários. Seus temas de interesse são: Teatro, Performance, Dança, Feminismos, Respiração, Corpo, Memória e Utopias, sempre em transversalidade com Educação para as relações étnico-raciais.
Flávia Aguilera
Artista visual, produtora cultural e pesquisadora formada em Artes Visuais pelo Centro Universitário Claretiano. Desenho, pintura e escultura são as linguagens predominantes de seu trabalho pictórico, que se combinam com práticas de pesquisa, escrita, cartografia e arquivo. É co-fundadora da feira Livre de Artes Beco do Inferno (2016), CMOS – Centro de Memória Operária de Sorocaba (2017) e presidente da Associação Cultural de Fomento à Arte e Memória de Sorocaba e Região (2023). Nos últimos oito anos produziu pinturas, esculturas e intervenções artísticas pela cidade, utilizando da pesquisa em torno da história e memória das mulheres de Sorocaba e região, com foco nas operárias da indústria têxtil.
Há mais de 10 anos ministra oficinas para diversos públicos e instituições, onde propõe práticas artísticas que se utilizam do conhecimento e da experimentação de diversas técnicas dentro da história da arte e do artesanato, tendo como assunto central a pesquisa em torno da memória e poética da cidade.
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Confira a programação completa do projeto Mulheria em: sescsp.org.br/mulheria
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