Música sob censura

30/01/2019

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“O grosseiro mau gosto constitui linguagem imprópria que fere o bom senso e o bom gosto comum, servindo para deseducar o povo”. “Conteúdo que permite lembrar a situação social do negro em nossa história”. “Uma descrição de um autêntico homossexual, deixando bem claro todas as suas qualidades físicas ou ‘jeitos’ que lhe são peculiares”. “Contraria as normas vigentes, ferindo os bons costumes”. “A composição é potencialmente capaz de motivar deturpação, originando incitamento à luta, à revolta e ao protesto”. “Não tem sentido. É um emaranhado de palavras jogadas a esmo”.

Travestidos de bastiões da moral e dos bons costumes, com capacitações díspares e embasados pela lei, os censores usavam justificativas como essas para barrar a circulação de letras musicais no período da ditadura militar brasileira, entre 1964 e 1985. Antes na obscuridade e algumas vezes desconhecidos até mesmo pelos próprios compositores, os pareceres da censura agora podem ser consultados por qualquer pessoa, por meio do Sistema de Informações do Arquivo Nacional. A instituição digitalizou, ente 2014 e 2016, todos os documentos disponíveis da época do regime militar. Ali é possível encontrar fichas de presos políticos, áudios completos de coletivas de imprensa de ex-presidentes e mais uma porção de documentos que não deveriam ser vistos pela população.

Para se ter ideia do volume deste importantíssimo trabalho historiográfico, só o acervo musical reúne mais de 75 mil letras. Muitas delas foram parcialmente ou totalmente censuradas, desde as manjadas “Cálice”, de Chico Buarque e Gilberto Gil, e “Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores”, de Geraldo Vandré, até as inesperadas “Tiro ao Álvaro”, parceria entre Adoniran Barbosa e Oswaldo Molles, e “Ovo de Codorna”, de Severino Ramos, gravada por Luiz Gonzaga.

O clássico “Ovo de Codorna” quase fica barrado na censura | Foto: Reprodução/SIAN

A impressionante quantidade de registros musicais nos arquivos comprova que as canções eram vigiadas de perto pelos censores. O motivo era simples: a partir dos anos 1970, a música havia conquistado um crescimento notável de alcance e influência, motivado principalmente pela Era dos Festivais, entre 1965 e 1972, pela consolidação da TV e pela chegada de novas tecnologias de reprodução. A lei de Incentivos Fiscais de 1967, que injetava o imposto arrecadado com discos de artistas internacionais nos títulos locais, contribuiu para que o consumo de sonoridades brasileiras aumentasse. Segundo o Ibope, de cada dez discos adquiridos em 1969, somente três eram de fora.

“As peças de teatro também tinham relevância cultural na época — e sofreram muito com a censura –, mas elas eram mais influentes no meio universitário, num universo mais elitizado e intelectual”, lembra Walter de Sousa Jr., vice-presidente do Observatório de Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura (Obcom), da ECA-USP. Já a música nacional caía facilmente na orelha do povo — em especial o rock, o samba e a abrangente MPB, estilos que apostavam em temáticas alheias à conformidade proposta pelo regime autoritário. “Esses três de fato conseguiram atingir um público maior e mais diverso. O alcance e o teor das letras tiravam o sono dos censores”, pontua Júnior.

“Não aprovo, pois a divulgação do homossexualismo é proibida pela lei censória” foi o parecer da censura para a composição de Luiz Ayrão | Foto: Reprodução/SIAN

O regime militar precisava, portanto, garantir que apenas as letras em consonância com a moral e os bons costumes fossem desfrutadas pelos brasileiros. Conteúdos com figuras de linguagem e subjetividade, ou que apresentassem temáticas homossexuais, antipatrióticas, esquerdistas, raciais, panfletárias e quaisquer outros assuntos considerados ilegais pelos decretos oficiais deveriam ser interditados imediatamente. Esse trabalho de triagem censória começou em âmbito regional, feito pelas unidades do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP). A partir de 1966, ficou concentrado, embora não totalmente, em Brasília, na Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), órgão subordinado à Polícia Federal e ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores.

A reportagem vasculhou o acervo destas duas entidades. Veja a seguir uma pequena amostra das composições encontradas por lá — e as histórias por trás delas.

Assinado, carimbado e proibido

“Eu nunca tinha visto nesse formato”, espantou-se Paulo Barnabe, líder da Patife Band, ao tomar contato pela primeira vez, em 2018, com uma cópia do parecer da censura para sua música “Pregador maldito”. A tarefa de negociar com a censura, em alguns casos, era feita pelas gravadoras, então os compositores não tinham acesso à íntegra do veto. A faixa de Barnabe passou pelas mãos de cinco censores e foi liberada para fazer parte da trilha sonora do filme Cidade Oculta, de Chico Botelho, lançado em 1982. Na capa do disco, no entanto, um aviso chamava a atenção: “Pregador maldito — Proibida a radiodifusão e execução pública”. As censoras Maria José Moura, Gabriela Wagner e Ana Zelinda Buffara cismaram com as palavras “bicha”, “bunda” e com o trecho “você tá sem um puto”. A gravadora WEA reencaminhou a letra sugerindo “troco” no lugar de “puto”. A substituição quase vingou: o penúltimo parecer dizia que os versos eram construídos por termos que “já se incorporaram ao vernáculo”, mas a transmissão nas rádios continuou proibida.

Letra de “Pregador Maldito” acompanhada do parecer censório. A música foi gravada, mas não podia tocar nas rádios, como mostra o documento | Foto: Reprodução/SIAN

“Uma das censoras até se dizia fã de Taiguara e muitas vezes sugeria que ele deveria voltar a ser um cantor romântico.”

Se o conteúdo de baixo calão impediu parcialmente a circulação da música de Paulo Barnabe, a crítica política foi o motivo encontrado pela censura para barrar o compositor Sérgio Ricardo. Os versos “olho aberto ouvido atento / e a cabeça no lugar / cala boca moço / cala boca moço”, da música “Calabouço” — feita em homenagem ao estudante Edson Luís de Lima Souto, morto no restaurante Calabouço, no Rio de Janeiro, em 1968 –, prontamente franziram a testa dos censores. Em depoimento ao Departamento de Ordem Política e Social, o DOPS, o compositor argumentou que o ‘cala boca moço’ era uma crítica aos meios de comunicação, nada tinha a ver com o episódio do estudante. O xaveco colou e a música passou para a ala das liberadas. “Bastava inventar uma historinha que eles caíam nela”, revela Ricardo. De fato, nem sempre a leitura dos censores era implacável. “Mais Valia”, de Taiguara, que trazia uma clara referência ao conceito empregado por Karl Marx, foi aprovada de primeira, sem passar por qualquer tipo de alteração.

Letra de “Calabouço”, de Sérgio Ricardo, e parte do argumento do compositor para a liberação da música, dizendo que a crítica era aos veículos de comunicação, e não ao governo | Foto: Reprodução/SIAN

Taiguara, no entanto, não teve tanta sorte em outras ocasiões. De acordo com os registros do Arquivo Nacional, ele foi um dos compositores mais vetados durante a ditadura, com mais de 70 canções proibidas ou retalhadas. “Uma das censoras até se dizia fã de Taiguara e muitas vezes sugeria que ele deveria voltar a ser um cantor romântico”, diz Moína Lima, filha do compositor. Mas ele foi se politizando cada vez mais e acabou virando uma figura superperseguida pelo regime. Em 1976, teve de fazer sutis alterações na letra de “Terra das Palmeiras” e reencaminhá-la para a análise prévia. Além das mudanças de métrica, outra tática foi utilizada pelo compositor. “Em vez de Taiguara, a canção foi creditada como sendo de Gheisa Chalar, primeira esposa dele. Assim, a música foi liberada e entrou em seu disco Imyra, Tayra, Ipy”.

Taiguara foi o compositor mais censurado pela ditadura militar | Foto: Reprodução/SIAN

“Sem poder trabalhar, não tínhamos como pagar as despesas da montagem dos espetáculos, e ficávamos a perigo para cobrir as despesas do dia a dia familiar. Demos a isso o nome de ‘Ditadura Econômico-financeira'”

“Nós, os compositores, tínhamos medo de passarmos do terceiro andar e irmos direto para o porão, caso não gostassem das nossas letras”, revela Ivan Lins, fazendo referência aos locais onde operavam, respectivamente, a SCDP e tortura. As agressões nunca aconteceram, embora o pianista tenha desagradado os censores algumas vezes. A música “Está tudo nas cartas”, por exemplo, teve de ser rebatizada para “Cartomante”. “Ela foi composta no período em que a Rosalyn Carter visitou o Brasil, e o movimento feminista pela Anistia, comandado pela Therezinha Zerbini, entregou umas cartas à Rosalyn denunciando torturas e violação de direitos humanos no Brasil. Essa entrega de cartas ficou muito famosa na época, então, eles mandaram trocar o título”, lembra Lins.

“Aos Nossos Filhos” foi uma das pedras que Ivan Lins colocou no sapato dos censores. Na sequência, a letra e o parecer. | Foto: Reprodução/SIAN

Ter a voz calada fazia mal tanto para a liberdade individual dos artistas quanto para seus bolsos. “Sem poder trabalhar, não tínhamos como pagar as despesas da montagem dos espetáculos, e ficávamos a perigo para cobrir as despesas do dia a dia familiar. Demos a isso o nome de ‘Ditadura Econômico-financeira’”, revela Aquiles Rique Reis, do MPB4. Mesmo sendo apenas intérprete das canções, o grupo passou por diversos contratempos com a censura. Um dos mais marcantes, relembra Aquiles, aconteceu quando o texto integral de um show do conjunto foi proibido poucas horas antes do concerto, obrigando Aquiles a telefonar para a censura e tentar aprovar o conteúdo das músicas, uma por uma.

“O Motel”, de Odair José, continua inédita. | Foto: Reprodução/SIAN

Mas nem todo telefonema resolvia os imbróglios com a Censura Federal. “O Motel”, de Odair José, “Negro”, de Djavan” e “O Intelectual”, de Carlos Didier, biógrafo de Noel Rosa, são exemplos de músicas interditadas pela censura que continuam inéditas até hoje. A composição “Céu-País”, de Gonzaguinha, banida em 1973, também não tinha sido registrada em estúdio até pouco tempo atrás. A faixa foi recentemente resgatada pelo projeto Samba Sem Censura, que usou uma nova tecnologia para conseguir reproduzir fielmente a voz do compositor, morto em 1991. Há ainda o caso de compositores que são verdadeiros enigmas dentro do cancioneiro nacional. Os nomes Otacílio Pereira Maia, Eduardo Silbert, Nadjalma Nogueira, Paulo Dantas Costa e Elias Inácio de Souza aparecem entre os vetados, mas não há registro deles na literatura sobre a canção nacional. Teriam simplesmente desistido da vida de compositor após sucessivos impedimentos? Seriam pseudônimos de artistas conhecidos tentando escapar da perseguição.

“Era comum a esposa de um censor ir ver uma peça de teatro e voltar com uma indicação de veto para o marido”

Ponto final reticente

Apesar da reabertura política, a “tesoura” continuou picotando a cultura nacional. Em um episódio icônico, ocorrido em 29 de agosto de 1985, no Teatro Casa Grande, zona sul do Rio, o então ministro Fernando Lyra, escolhido por Tancredo Neves para cuidar da pasta da Justiça, bradou aos cerca de 700 intelectuais, artistas e políticos presentes: “Está extinta a censura!”. Alarme falso. Três dias depois do evento, a música “Só as mães são felizes”, parceria entre Cazuza e Frejat, foi proibida de tocar nas rádios. Em novembro do mesmo ano, a novela Roque Santeiro, da Rede Globo, sofreu cortes, e em fevereiro de 1986, o filme Je Vous Salue, Marie, do francês Jean-Luc Godard, teve sua circulação interditada em território nacional.

Raul Seixas disse que as mudanças no contexto social justificavam a liberação de duas de suas composições | Foto: Reprodução/SIAN

A censura institucionalizada só jogou fora as canetas vermelhas em 1988, com a nova Constituição. Mas nem todo mundo celebrou o seu fim. Enquanto esteve em operação, a DCDP costumava receber cartas de pessoas que recomendavam o veto a determinadas obras já liberadas pela censura. “Era comum a esposa de um censor ir ver uma peça de teatro e voltar com uma indicação de veto para o marido”, lembra Júnior, do Obcom, da ECA-USP. Os argumentos dos censores voluntários às vezes extrapolavam o velho “atentado à moral, ao civismo, à religião e aos bons costumes”. Em agosto de 1983, a DCDP recebeu um comunicado da Sociedade Mineira Protetora dos Animais pedindo a proibição de “Rock da Cachorra”, de Léo Jaime e Eduardo Dussek. O verso “troque seu cachorro por uma criança pobre” apresentava “uma solução falsa para o problema do menor abandonado” e podia “provocar o (aumento do) número de animais errantes em vias públicas”. “Parte da população se sentia protegida do ‘mau gosto’”, completa Júnior.

A Sociedade Mineira Protetora dos Animais não curtiu os latidos de Léo Jaime e Dussek | Foto: Reprodução/SIAN

Será que a censura oficial de obras artísticas pode voltar para dar um bis? “Eu imagino que não. A burocracia envolvida em reestruturar um órgão desses, tal como existia na ditadura, é enorme e muito custosa. Além disso, atualmente a produção e a divulgação de música são bem mais simples do que antigamente. Seria preciso algum mecanismo de monitoramento virtual para identificar letras a serem proibidas”, avalia Júnior.

Acesse a nossa playlist no Spotify com músicas que por muito pouco não pararam na censura.

Para produção desta reportagem, também foram consultados os livros Cães de Guarda — Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988, de Beatriz Kushnir e A Censura Musical Durante o Regime Militar (1964–1985), de Maika Lois Carocha.

*Na versão anterior publicada desta reportagem, a canção “Cálice” era creditada como de autoria de Chico Buarque e Milton Nascimento, sendo que a mesma é de autoria de Chico Buarque e Gilberto Gil. Essa informação foi corrigida no dia 31 de janeiro de 2019, às 19h01.

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