Produzido dentro do Sesc: inquietações sobre música. Nesta edição, a realidade absurda dos musicais por bárbara carneiro
bárbara carneiro é formada em História e mestranda em Culturas e Identidades Brasileiras. É de São Paulo, de algum lugar entre a Ponte da Casa Verde e a Ponte Cruzeiro do Sul. No colégio, representou os personagens Senador Romano 2 e Mercador do Templo 1 em montagem de Jesus Cristo Superstar. Atualmente trabalha com comunicação digital no CineSesc.
Eu acho que começou em 1993, com a minha mãe apertando o botão REC do videocassete para gravar Mary Poppins da televisão em um domingo à noite. Ela dormiu pouco depois do primeiro intervalo comercial e por muito tempo precisei assistir às propagandas antes de ver como Jane e Michael iriam ao centro da cidade para conhecer o trabalho do Sr. Banks. No meu aniversário de 16 anos, um amigo chegou com um DVD de Hair para assistirmos na festa e, como fiquei obcecada, outro amigo me entregou na escola um CD em que se lia a palavra de quatro letras escrita em sua grafia um pouco torta. Foram exatos dez anos até a Doida do Musical que mora dentro de mim ter mais uma chance de se manifestar: a internet estava fissurada em uma produção da Broadway que conta a história do primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos. Por se tratar de uma peça encenada em Nova York, muitas pessoas só viram trechos em programas de televisão ou uma versão gravada por um anônimo no teatro. Essa não é apenas a cronologia do avanço tecnológico no meu período vital, mas também uma defesa apaixonada do gênero musical.
Alguns fãs envergonhados podem não se incomodar com quem diz que o musical falha por ser irreal. Acontece que uma parte da beleza dos musicais reside nessa irrealidade, nesse estado de ânimo pautado por melodias e acordes, que une personagens em cenas coletivas ou expurga pensamentos em solos emocionantes. Se pararmos pra pensar, no cinema a irrealidade é quase parte motora da produção. É só que já nos acostumamos à técnica convertida em linguagem: ao ver montada uma cena com campo e contracampo entendemos logo como aquilo funciona para conhecer reações de personagens em diálogo ou então acreditamos no uso de câmeras subjetivas para acompanhar protagonistas em seus caminhos pelo filme. No cinema, quase tudo é artifício: da fotografia à trilha sonora. A irrealidade de personagens que entoam canções em plenos pulmões não faz as obras serem menos verossímeis. Ao pensar em musicais, talvez a melhor saída seja ver a semelhança justamente através do absurdo.
“Podemos arriscar dizer que as contradições dos personagens é uma força de realidade nos musicais. Apenas personagens completamente bons ou completamente maus não são contraditórios e nada poderia ser mais irreal do que isso.”
Segurando firmemente a mão do absurdo, podemos parar para analisar um pouco a força narrativa de alguns musicais. Voltemos para a fita com a qual minha mãe me presenteou na primeira infância: Mary Poppins. O filme, de 1964, foi inspirado no livro da escritora P. L. Travers publicado 30 anos antes. A história apresenta uma Londres poluída, em que limpadores de chaminé são o coro mais expressivo sobre os telhados da cidade. Ali, a tensão entre ricos e pobres assume diversas formas: na vontade das crianças darem seu dinheiro para a mulher que alimenta os pombos e não para o banco onde trabalha o pai, na subserviência do Sr. Banks a seus chefes enquanto cantarola que é em casa comparável ao rei que comanda a Inglaterra, na irreverência de Bert, que faz bicos pela cidade. As contradições também não são poucas e recaem inclusive sobre a Sra. Banks, animada sufragista, que canta que as filhas de suas filhas as adorariam pela luta pelo direito ao voto feminino, enquanto as empregadas da casa se atropelam em afazeres domésticos.
Em Hair, musical que estreou em 1967 e ganhou versão fílmica em 1979, a contradição não é menor. A história acompanha um grupo de jovens hippies, preocupados com a busca por uma sociedade ideal baseada em paz, amor, felicidade e transcendência. Essa busca, por mais que leve a uma sociedade alternativa, esbarra em alguns contratempos e, eventualmente, esses jovens idealistas precisam da ajuda dos pais — a representação máxima da caretice naqueles anos 1960 — para contornar seus problemas. Se estivermos de acordo que a cena em que eles sobem na mesa de um casamento enquanto cantam I Got Life/Ain’t Got No é o mais puro e belo absurdo aplicado para explicar a tensão entre gerações e visões de mundo, podemos arriscar dizer que as contradições dos personagens é uma força de realidade nos musicais. Apenas personagens completamente bons ou completamente maus não são contraditórios e nada poderia ser mais irreal do que isso.
A transgressão pode ser também de outras ordens, como a auto-ironia de alguns musicais. Cantando na chuva, de 1952, ri da própria indústria cinematográfica, ao contar a história da transição para o cinema sonoro. O star system que para vender notícias inventa celebridades e relacionamentos falsos entre atores que trabalham no mesmo set é alvo de sátira do musical. Já Chicago, montado dentro de uma prisão feminina, também ironiza a fama ao criar um cabaré onde as detentas defendem-se ao mesmo tempo em que tentam ser celebridades do momento, ocupando páginas de jornais com seus julgamentos.
Alguns musicais cantam o improvável, como as dificuldades de um grupo de amigos dos anos 1980 em Rent, ou então as agruras de um coveiro sensível como em Sinfonia da Necrópole. Nesse último, de 2014, a estranheza acompanha o filme inteiro: os cenários são os ambientes de um cemitério, os personagens são coveiros e administradores da necrópole, as músicas falam de especulação imobiliária, caixões e alma penada (vale mencionar, porém, que o filme cai em um clichê: paulistanos cantando a música “Evidências” apaixonadamente em um karaokê no centro da cidade).
“Essa é possivelmente a distinção maior entre o teatro musical e a ópera: o primeiro prioriza as palavras, enquanto o gênero tido como clássico coloca a música em primeiro plano.”
O contato dos musicais com a indústria fonográfica mais popular não é algo estranho ao gênero. Além de serem gravados, disponibilizados para compra e reprodução em streaming, alguns deles tem uma relação bastante simbiótica com as paradas de sucesso. Moulin Rouge, de 2001, é quase uma colagem de sucessos pop. No cenário da Paris de início do século XX, letras de David Bowie, Madonna, The Police e até Marilyn Monroe ajudam a contar a história de amor entre um poeta e uma prostituta. Ao ouvir Gwen Stafani e Eve cantando “se eu fosse uma garota rica”, talvez nem todos saibam que os “na, na, na, na, na, na, na, na” entoados pelas cantoras tem origem nos “yubby dibby dibby dibby dibby dibby dum” de Tevye, leiteiro judeu que cria cinco filhas na Rússia imperial, em Um violinista no telhado.
Com o destaque do musical Hamilton (aquele do Secretário do Tesouro), em 2016 foi lançado um álbum com versões feitas por artistas como SIA, Regina Spektor, Usher e Alicia Keys. Em 1968, um ano após a estreia de Hair, a cantora Nina Simone gravou uma versão do medley Ain’t Go No/I Got Life do musical em seu álbum Nuff Said.
Se não prestarmos atenção, podemos ficar presos eternamente neste infinito túnel onde tudo é referência de tudo: ao chegarem à Fantástica Fábrica de Chocolate reimaginada por Tim Burton em 2005, as crianças vencedoras da promoção são recepcionadas por um Willy Wonka que diz “Bom dia, estrelinhas. A Terra diz ‘Olá!’”. Elas fazem uma cara de quem não entendeu nada, mas o personagem de Johnny Depp as saúda com uma das últimas músicas de Hair. Essa é possivelmente a distinção maior entre o teatro musical e a ópera: o primeiro prioriza as palavras, enquanto o gênero tido como clássico coloca a música em primeiro plano.
Para além das brincadeiras de encontrar citações em filmes ou de rir de músicas que zombam quase de si mesmas, há um conjunto de musicais que apresentam corpos ingovernáveis. Da Judéia criada por Andrew Lloyd Webber e Tim Rice na ópera rock Jesus Cristo Superstar de 1970 ao ser travesti do planeta Transylvania de The Rocky Horror Picture Show, as coreografias simétricas e as danças bem ensaiadas dão conta de um espírito de rebelião e contestação.
Inspirado no romance de Victor Hugo, Os Miseráveis é um desses casos. Ao tratar do período de convulsão política que tomou a França no século XIX, o musical conta a história da perseguição do Prisioneiro 24601 — condenado a 19 anos de prisão por roubar pão e tentar fugir — pelo guarda Javert. São dois atos, com o ápice sendo a rebelião de 1832 que tomou Paris em oposição ao retorno da Monarquia como regime político, em que jovens revoltosos construíram e defenderam suas barricadas, com ânimos revolucionários que teriam começado em 1789 com a Revolta da Bastilha e que em 1848 finalmente tirariam o rei Luís Felipe do trono. Com traços do romantismo de Victor Hugo, vivos e mortos encerram o musical perguntando se o público escuta o que o povo canta, canções de homens bravos, a música do povo que não será escravo outra vez em um amanhã que logo chegará.
Cem anos adiante, Cabaret acontece em 1931, na Berlim da República de Weimar. A história principal é a da dançarina e aspirante a atriz Sally Bowles, interpretada por Liza Minelli, e sua paixão pelo poeta bissexual Brian Roberts (Michael York). Os dois vivem um caso de amor com outro homem ao mesmo tempo em que símbolos do nazismo começam a ocupar espaços na narrativa. E por símbolos do nazismo entende-se a suástica, a juventude hitlerista e a violência contra grupos étnicos. A história é contada por uma estranha figura interpretada por Joel Grey, vencedor do Oscar por esse papel. O cabaré é, afinal, um espaço onde o bizarro ou o pouco convencional podiam existir em um ambiente de corpos doutrinados e obedientes.
Hamilton não foi um sucesso porque as pessoas desenvolveram um gosto repentino e peculiar por dividendos do Tesouro Nacional. O musical surgiu depois que Lin-Manuel Miranda leu a biografia de Alexander Hamilton, o cara que é representado na nota de dez dólares, e decidiu que aquilo renderia material para o teatro. O frisson veio da sua opção por tratar de um tema complicado como a formação de uma nacionalidade com ritmos pouco convencionais para o teatro musical: rap, hip-hop, soul e pop. O elenco era majoritariamente formado por filhos de descendentes ou afro-americanos. Apenas o personagem do rei George era interpretado por um homem branco. Não à toa, o musical esteve no centro de debates sobre política e sociedade no seu país de origem. Hamilton ensina que a história pode ser contada de maneiras diferentes sem ser traída ao mesmo tempo em que mostra como a memória — das pessoas ou de um povo — está sempre em transformação.
Surpreendentemente, a minha paixão por musicais não faz com que eu goste de todos. Alguns até me entediam ou não me cativam. Mas pensar nessas histórias contadas através de rimas e versos me dá uma sensação gostosa. A possibilidade de transformar questionamentos amorosos, políticos e sociais — às vezes tão difíceis de lidar na própria vida — em uma obra artística e encontrar nela um alívio, cômico ou não, é como uma das lições que Mary Poppins me ensinou: uma colher de açúcar ajuda o remédio a descer. Considerando que as outras lições eram Como Arrumar O Quarto Estalando Os Dedos e Como Descer Do Teto Depois De Flutuar Com Um Ataque De Risos, me alegro em saber que pelo menos uma parece ter sido bem aprendida.
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