Obras de arte têm usado o corpo para quebrar tabus e investigar feminismos

31/08/2023

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Passeio visual por trabalhos de ana mendieta e de outras artistas cujas obras estão centradas no corpo humano como sujeito de quebra de tabus e investigação sobre feminismos

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Por Luna D’Alama

Até o século 19, as artes visuais – como pintura, escultura e fotografia – usavam o corpo humano como objeto de representação, especialmente em (auto)retratos e nus femininos. A partir do século 20, porém, o corpo passou de objeto a sujeito, tornando-se a própria obra de arte e incluindo a constituição física da(o) artista como suporte, meio de expressão e lugar das experiências e intervenções estéticas. É na materialidade do corpo que, segundo a especialista em semiótica Lucia Santaella, fundem-se o orgânico e o mecânico, a natureza e a cultura, o original e o simulacro, a realidade social e a ficção científica.

Em meio ao auge dos movimentos feministas dos anos 1960 e 1970, também emergiu, nos Estados Unidos e na Europa, a body art. Essa vertente da arte contemporânea pressupõe que o corpo em si não é tão importante quanto o que é feito com ele, e silhuetas ou simples funções fisiológicas – como a respiração ou um espirro – podem virar obras, performances, instalações ou videoarte. No livro Culturas e artes do pós-humano – Da cultura das mídias à cibercultura (Paulus, 2003), Santaella defende que o conteúdo da body art é autobiográfico, e os trabalhos coincidem com o ser carnal do(a) artista. Assim, ela primeira vez na história da arte, “a nudez e o abjeto [passaram a ser construídos] sob o ponto de vista da ação e do olhar femininos”, quebrando-se tabus.

A artista cubana Ana Mendieta (1948-1985), que aos 12 anos migrou para os Estados Unidos como refugiada política, é uma das precursoras do movimento da body art e do uso do próprio corpo como sujeito e objeto de trabalho. Pertenceu a um coletivo de artistas feministas e, para documentar e perpetuar suas obras efêmeras – performances em que seu corpo nu se fundia a elementos da natureza, como água, neve, terra, lama, areia, folhas e flores –, Mendieta utilizava fotografias e vídeos. Sua história de vida e seus traumas, assim como a violência sofrida por mulheres racializadas em território norte-americano, também reverberaram nas produções da artista, que voltou sete vezes a Havana, capital de Cuba, até morrer precocemente, aos 36 anos.

Mendieta ganhou a primeira retrospectiva póstuma em 1987, no New Museum, em Nova York (EUA). A partir da década de 1990, sua obra foi celebrada em outras exposições, principalmente nos Estados Unidos, no México e na Europa. Hoje, sua produção é pesquisada em vários campos das artes e da cultura, e seu legado serve de referência e inspiração para jovens artistas contemporâneas.

É nesse contexto que o Sesc Pompeia apresenta, a partir de 19/9, a exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, primeira mostra abrangente da obra da artista cubana na América Latina. Segundo a curadora Daniela Labra, o título surgiu a partir dos trabalhos de Mendieta com silhuetas e com o elemento fogo, que aparece em seis dos 21 vídeos que serão exibidos. Para Labra, a artista é pioneira em relacionar temáticas como corpo, ecologia, feminilidade, fertilidade, ancestralidade, cura, crítica e performance. “Sua poética visual, original e contundente consolida-se em diferentes suportes, mídias e linguagens, como desenhos, esculturas, fotografias, Super-8 e intervenções”, explica.

Fundindo mundos e buscando origens, a artista se debruçou sobre a dicotomia morte-vida e sobre religiosidades indígenas e afrolatinas. “Nessa retrospectiva, apresentamos um recorte da linguagem visual e de fronteira da artista, exploradora singular de diversas cosmogonias, tanto de seu tempo quanto de eras ancestrais”. O nome de Mendieta, finaliza a curadora, “é fundamental para compreendermos a arte contemporânea do final do século 20, por seu trabalho transcultural, visceral, atemporal e, essencialmente, político”.

Conheça algumas das obras de Ana Mendieta:

ABRINDO CAMINHOS

Em conjunto com a exposição Ana Mendieta: Silhueta em Fogo, o Sesc Pompeia também apresenta, a partir deste mês, terra abrecaminhos, mostra que aproxima a obra de Mendieta – seus aspectos arquetípicos, culturais, políticos e espirituais – com a de outras 30 pessoas representantes das artes contemporâneas. A abordagem inclui representatividade e feminismos negros, decoloniais, chicanos e ecotransfeministas, reunindo nomes como os da artista estadunidense Carolee Schneemann (1939-2019), primeira a incorporar seu corpo nu em um trabalho, Celeida Tostes (1929-1995), Laura Aguilar (1959-2018) e Márcia X. (1959-2005). Há também expoentes das artes ainda em atividade, como Suzana Queiroga, Ricca Lee, Cecilia Vicuña, Regina José Galindo, Yara Pina e a travesti Vulcanica Pokaropa.

De acordo com Hilda de Paulo, curadora da mostra, artistas de diferentes gerações, filhas da diáspora amefricana, mestiza e de fronteira, compõem essa exposição coletiva. Diversas pensadoras também embasam o discurso conceitual do trabalho, como Gloria Anzaldúa (1942-2004), bell hooks (1951-2021), Donna Haraway, Denise Ferreira da Silva, além de Paul B. Preciado. Hilda conta que terra abrecaminhos traz artistas de vários estados brasileiros, além de Cuba, Estados Unidos, Costa Rica, Chile, e brasileiras que migraram para a Europa e outras regiões. “A questão da imigração é central para nós. Essa não é uma exposição sobre mulheres ou uma tentativa de afirmação da categoria, mas sobre lugar de fala, alianças e régua de experiência – que mede as vivências de cada pessoa –, temas que são atravessados por marcadores como gênero, raça e classe”, destaca a curadora, que é doutoranda em Estudos Literários, Culturais e Interartísticos pela Universidade do Porto, em Portugal.

O título de terra abrecaminhos tem, ainda, influências das epistemologias de terreiro, do candomblé e das encruzilhadas – a partir de Exu, orixá que abre os caminhos. A mostra também propõe como recorte questões ligadas às (tr)ancestralidades, aos sonhos e aos apagamentos sistêmicos. A assistente de curadoria, Maíra Freitas, defende que a mostra é uma espécie de cápsula do tempo, ao estabelecer pontes entre pensamentos sobre o corpo, mulheridades, solidariedade e práticas políticas em diferentes épocas e regiões. “Gostamos muito do poema Semente, da chilena Cecilia Vicuña, que diz: ‘Só um gesto coletivo de amor poderia parar a destruição’. A exposição é sobre isto: o poder dos afetos como ferramenta de resistência”, complementa Freitas, que também é artista, pesquisadora e arte-educadora.

Conheça trabalhos de algumas das artistas expostas na mostra terra abrecaminhos:

Descolonizar o olhar

Ao debater os diversos tipos de feminismos, exposições Ana Mendieta: Silhueta em Fogo e terra abrecaminhos ocupam Sesc Pompeia com retrospectiva inédita

A partir do dia 19/9, a Área de Convivência do Sesc Pompeia se divide ao meio para receber as exposições Ana Mendieta: Silhueta em Fogo e terra abrecaminhos. A primeira apresenta um recorte da obra da artista cubana, como fotografias e 21 filmes – incluindo material inédito – feitos por Mendieta entre 1973 e 1981, e digitalizados/restaurados desde 2016. Em terra abrecaminhos, o público passeia por pinturas, esculturas, desenhos, instalações, performances, vídeos, fotografias e outras obras que celebram a representatividade e os feminismos negros, decoloniais, chicanos e ecotransfeministas de artistas de diversos países.

Em cartaz até janeiro de 2024, a programação oferece, ainda, uma série de atividades paralelas previstas para ampliar os debates suscitados pelas exposições, como ciclos de performances ao vivo, exibição de filmes, plenárias e concertos.

“Ana Mendieta foi pioneira nos processos de investigação do corpo e das questões de gênero, ancestralidade e natureza. A relevância dessa exposição se dá não apenas pelo ineditismo no Brasil, mas também por realçar o protagonismo de uma artista latino-americana que, por meio da performance em diversos suportes, lança luz a questões relacionadas à liberdade das mulheres”, destaca Monica Carnieto, gerente do Sesc Pompeia. Ela acrescenta que a atualidade e a relevância do fazer artístico de Mendieta “são evidenciadas a partir dos diálogos possíveis com a produção de outras artistas contemporâneas que estão em terra abrecaminhos”.

Ana Mendieta: Silhueta em Fogo | terra abrecaminhos
Exposição coletiva com curadoria de Daniela Labra e Hilda de Paulo. Assistência de curadoria: Maíra Freitas. De 19 de setembro de 2023 a 21 de janeiro de 2024. Terça a sábado, das 10h às 22h. Domingos e feriados, das 10h às 19h. GRÁTIS.

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